Sobre a posição do Brasil frente à escalada da violência entre Israel e Hamas: notas históricas por Mateus Santos

Na manhã do dia 7 de outubro de 2023, os olhos do mundo se voltaram para o Oriente Médio. Cinquenta anos depois da Quarta Guerra Árabe Israelense (1973), uma série de ações reivindicadas pelo Hamas, envolvendo bombardeiros e atividades terrestres, produziram centenas de mortos e feridos em Israel.

Do lado de Tel-Aviv, a resposta diante de tais acontecimentos foi marcada por uma declaração de Estado de Guerra, dando início a uma série de bombardeiros em território palestino, além da produção de um bloqueio na faixa de Gaza, afetando a circulação de pessoas e a funcionalidade de serviços básicos. Em nota à imprensa naquele mesmo dia, o Itamaraty expressou solidariedade aos familiares das vítimas e condenou a escalada da violência. Sem fazer menção direta ao grupo fundamentalista, o texto em questão reivindicava algumas características históricas da posição brasileira em contextos de conflito, tais como a defesa do diálogo entre as partes na costura de uma solução pacífica, e, de forma específica à questão árabe-israelense, a defesa da constituição de dois Estados, segundo os acordos firmados em nível internacional.

Nos mais diferentes ambientes de construção de opinião e debate político, como a imprensa, as redes sociais e nos círculos governamentais, a posição brasileira foi objeto de discussão e dissenso. No campo das críticas, segmentos vinculados à oposição ao atual governo criticaram as linhas mais gerais da nota, especialmente a ausência de referência direta ao Hamas. Entre as mais diversas interpretações fornecidas por esse setor, destacaram-se a leitura sobre a suposta equiparação entre as ações do grupo fundamentalista e o governo israelense por parte da posição brasileira ou mesmo a tentativa de constituição de um tom conciliatório frente à escalada da violência. Na contramão de tais perspectivas, outros setores enxergaram o acirramento das tensões entre Israel e Palestina dentro do histórico quadro de conflitos entre as partes, envolvendo a luta do segundo em relação à recuperação dos territórios ocupados e afirmação de um Estado verdadeiramente independente.

Sem adentrar especificamente nas repercussões do debate público sobre o tema, a posição expressa pelo governo brasileiro se mostra em relativa sintonia em relação ao histórico de interações do país com essa agenda da política internacional. Na literatura sobre as relações entre o Brasil e Oriente Médio na segunda metade do século XX, o conceito de equidistância foi mobilizado como recurso teórico para fundamentar as características mais gerais da atuação do país diante do conflito (SANTOS, 2002). Aspectos como a distância geográfica, a inexistência de interesses específicos e a presença de comunidades árabes e judaicas influentes no cenário doméstico estimulariam a adoção de uma postura cautelosa diante da elevação das tensões no Pós-Guerra. Nos primeiros anos após a constituição do Estado de Israel, um processo de afirmação de relativa autonomia frente a tal agenda pode ser observado a partir de uma série de posicionamentos que não conformariam um tipo de alinhamento em relação a uma das partes beligerantes. Se perspectivas como a defesa da internacionalização de Jerusalém e proteção dos lugares santos representavam, em certa medida, um desacordo com as posições de Tel – Aviv, outros temas como a livre circulação de navios pelo Canal de Suez e pelo Golfo de Ácaba favoreciam certa sintonia entre Brasil e Israel.

A emergência de questões que ultrapassaram o próprio conflito também influenciaria nas percepções brasileiras acerca do tema. Em relação aos árabes, o processo de mundialização e multilateralização da PEB, além do reconhecimento de agendas de interesse comum no plano internacional, favoreciam certa aproximação econômica e, em certa medida, política a partir dos anos 1960. Do lado israelense, o avanço da Guerra Fria no Oriente Médio e a consolidação de Israel como uma potência regional se tornariam vetores favoráveis ao estreitamento de laços com Tel-Aviv. Nesse sentido, um horizonte de manutenção de um relativo equilíbrio entre uma região em crise se constituiu em certa tendência na atuação brasileira para a região.

Ao gerir essa balança, talvez dois momentos históricos possam ser mobilizados como marcos de um desequilíbrio. O primeiro deles ocorreu a partir de 1973. Influenciado pelos efeitos do Choque do Petróleo sobre as economias do Terceiro Mundo e diante dos esforços de manutenção do desenvolvimento frente aos problemas estruturais e conjunturais do chamado milagre econômico, A Política Externa do Governo Geisel, conhecida como Pragmatismo Responsável, desenvolveu um movimento de maior aproximação em relação aos Estados Árabes, tendo como fato simbólico a votação favorável à resolução 3379 da AGNU (1975) que, dentre outras coisas, equiparava o sionismo ao racismo. Tal posicionamento seria revisto mais de uma década depois, durante o governo Collor. Apesar do caráter estratégico de tais movimentações nos anos 1970, o Brasil não rompeu laços com Tel-Aviv, desenvolvendo, naquele mesmo período, alguns acordos de cooperação.

Mais recentemente, durante o governo Bolsonaro, um peculiar movimento de aproximação com Israel reuniu considerações de interesse de segmentos fundamentalistas cristãos do Brasil, além de perspectivas de alinhamento, num plano mais geral, com o crescimento da extrema-direita em nível mundial. Frente às contradições da coalizão governista e as características mais gerais do comércio brasileiro com a região, um princípio de recuo foi observado frente às intenções expressas pelo então presidente em transferir a sede da embaixada brasileira para a cidade Jerusalém, rompendo com uma tendência histórica da diplomacia.

Mesmo ao longo dos dois primeiros mandatos do presidente Lula, o crescimento de relações com os países árabes não necessariamente culminou com uma alteração radical na postura do país frente ao conflito com Israel. Conforme Isabella Lamas, João Finazzi e Reginaldo Nasser (2017), o reconhecimento do Estado Palestino em 2010 coexistiu com a perspectiva de ampliação das relações comerciais com Tel-Aviv.

O que se pode esperar do Brasil atual em relação ao tema? Em primeiro lugar, uma leitura crítica sobre o comportamento de Tel-Aviv em relação à Palestina nas últimas décadas não perpassa a adoção de discursos ou posições que neguem a existência do Estado de Israel. Israel é uma realidade geopolítica consumada em décadas de um complexo processo de inserção regional e global. Do ponto de vista das relações exteriores, Brasil e Israel cultivam um relacionamento desde 1952, impulsionado por diferentes interesses como cooperação e comércio. Reconhecer tais aspectos não significa chancelar as condenáveis políticas empreendidas pelo país frente ao território e a sociedade palestina, mas estabelecer um ponto de partida importante para uma abordagem contemporânea sobre o tema.

Em relação aos palestinos, o compromisso histórico com a defesa de um Estado Independente e o fim dos assentamentos israelenses em territórios que, pela História e pelo direito internacional, não lhe pertencem deverá continuar na agenda brasileira frente a tal crise. Isso também não perpassa nenhum tipo de aceno às ações armadas, empreendidas por segmentos que não possuem legitimidade popular e institucional. Dentre as principais diretrizes que regem constitucionalmente as relações internacionais do Brasil, o combate ao terrorismo se constitui em uma das bases obrigatórias para a definição de uma política de promoção da estabilidade regional.

Na condição de membro temporário no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil, dentro das limitações estruturais dessa posição, poderá ocupar alguma posição relevante no âmbito dos debates multilaterais sobre o tema. Frente a tal janela de oportunidade, o trecho final da nota assinada pela chancelaria brasileira nos parece útil: “a mera gestão do conflito não constitui alternativa viável para o encaminhamento da questão israelo-palestina” (BRASIL, 2023). Diante de tal diagnóstico, a pavimentação de um caminho na direção da paz exige habilidade diplomática e exercício de uma postura sólida, condizente com o desafio da agenda de defesa do Estado Palestino como uma das prioridades dos mais diversos atores internacionais e em favor de um ambiente de estabilidade política no Oriente Médio, a partir da diminuição das tensões entre as partes em conflito.

Referências Citadas:

BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Ataques em Território Israelense. Nota à Imprensa nº 438. 07 out. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/ataques-em-territorio-israelense. Acesso em: 11 out. 2023.

LAMAS, Isabella; FINAZZI, João; NASSER, Reginaldo. Entre Porto Alegre e Davos. In: MARINGONI, Gilberto; MEDEIROS, Juliano. Cinco mil dias: o Brasil na era do lulismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p.134-139.

SANTOS, Norma Breda dos. Dez anos no deserto: a participação brasileira na primeira missão de paz das Nações Unidas. In: DUPAS, Gilberto; VIGEVANI, Tullo (Orgs.). Israel – Palestina: a construção da paz vista de uma perspectiva global. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

Sobre o autor:

Mateus Santos – Doutorando em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Membro pesquisador do Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos (LABGRIMA).

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