Parece oportuna a reflexão sobre diferenças na evolução das formas de convivência, entre a RPC e os chineses que incluem significativa população no Sudeste Asiático (“overseas Chinese”), e as “dificuldades nas relações” da Rússia, com países vizinhos onde vivem, como herança da União Soviética, “russos do exterior próximo”.
Isto é, a interação conquistada, na antiga área periférica da China[1], aconteceu através de sucessivas “formas de articulação” entre sociedades civis de identidades culturais variadas, ao contrário do ocorrido, por exemplo, na ex-URSS.
A questão da Ucrânia será mencionada, com referências às tentativas de negociação, na moldura dos Acordos de Minsk, na parte final deste artigo.
Assim, o sistema de governança no Sudeste Asiático absorveu influência chinesa, com base em tradições confucionistas. Não se buscou, portanto, a segregação ou mesmo a eliminação de uma ou outra etnia. Assistiu-se, ao contrário, a uma organização regional, não ao redor de blocos ou polos alternativos, mas em redes concomitantes de cooperação, rivalidades e, por vezes, conflito.
Muitos tópicos da agenda de preocupações, daquela região, então vigentes, têm influência no papel agregador que a ASEAN exerce, agora, entre o Sudeste Asiático e demais países da Ásia Pacífico. Esta tese foi exposta, por exemplo, em artigo sobre a RCEP[2] (publicado em Mundorama, em 14/01/2021 e revisto em 12/12/2022), com a ressalva de que a formação do mais recente agrupamento regional foi anunciada no Vietnam (país membro da Associação) ao invés de em Pequim — que costuma fazer os pronunciamentos de importância regional.
Recorro, a propósito da evolução do relacionamento entre os países daquela região, a conversa, em Jacarta, com Jasuf Wanandi, do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais da Indonésia, em 1994 — período durante o qual a ASEAN começava a consolidar seu papel de força motora e moderadora no Sudeste Asiático.
Naquela ocasião, ouvi longa e prazerosa explicação a respeito do conceito regional sobre “resiliência”, que predominava, então, nas discussões entre centros de estudos naquela parte do mundo.
Wanandi me explicou que: “Resiliência nacional, no plano interno, significa a habilidade de uma nação assegurar a evolução social necessária, enquanto mantém uma identidade própria. No plano externo, é expressa na capacidade de encarar ameaças com características diversas”.
A resiliência nacional, portanto, comporta o fortalecimento de todos os elementos que compõem o desenvolvimento de uma nação, incluindo os setores ideológico, político, econômico, social, cultural e militar.
Se cada nação, de um grupo geográfico determinado, desenvolver sua própria “resiliência nacional”, gradativamente, uma “resiliência regional” emergirá. Isto é, os países membros desenvolverão a habilidade de resolver, em conjunto, seus problemas em comum, bem como criarão uma visão de futuro e bem-estar compartilhada.”
Este esclarecimento me foi transmitido por ocasião de périplo realizado por capitais do Sudeste Asiático, Pequim e Hong Kong, por proposta minha e patrocínio do Itamaraty (então sob o comando do Embaixador Celso Amorim, em sua primeira “encarnação” como Chanceler), de primeiro a 25 de março de 1994.
O objetivo do esforço de estabelecimento de vínculos com estas instituições acadêmicas foi o de criar canais de interlocução com aquela parte do mundo, onde acontecia evolução econômica e política acelerada. Nesse processo, se desenvolvia a reflexão sobre estratégia própria, com a utilização crescente de núcleos de pesquisa específicos, como os visitados. Isto acontecia, fosse como reação a desafios de seu próprio desenvolvimento autônomo, fosse como resposta a questões impostas do exterior.
Propostas bastante semelhantes, a propósito, constam de discursos recentes do presidente chinês Xi Jinping, como o que diz respeito a “uma Comunidade de Nações com Destino Comum”.
A Comunidade de Nações com Destino Comum
O conceito da “comunidade de destino da humanidade”, que Xi tem proposto, articularia a experiência chinesa de convívio pacífico e solução negociada de conflitos internos e externos com sua própria concepção de cooperação econômica.
Em seus pronunciamentos, Xi ressalta que “a China, nação com mais de cinco mil anos de história, enfrentou conflitos diversos ao longo dos tempos. A pacificação do Império só foi possível pelo estabelecimento de acordos entre a China e os povos que conviviam no mesmo território. Como resultado, hoje convivem, na China, mais de 50 etnias, 24 idiomas e cinco sistemas de escrita. Há ainda templos budistas, igrejas cristãs e mesquitas por todo o território.”
Ainda segundo o dirigente da RPC, “essa experiência aplicou-se também no nosso tempo, especialmente na questão dos territórios de Hong Kong e Taiwan, onde funcionam sistemas diferentes do restante do país, mas mantém-se a unidade nacional por meio de negociações”.
“A fórmula “um país, dois sistemas”, vem permitindo o convívio pacífico apesar das diferenças e de alguns retrocessos, como a atual hostilidade da presidente de Taiwan, eleita pelo Partido Progressista. É certo que a parte continental da China teria meios suficientes para submeter as ilhas pela força. Mas essa via não é do interesse do Estado chinês, que mantém o entendimento de que a ação militar é sempre a pior solução.”
A economia tem papel destacado no conceito de comunidade de destino da humanidade: “ao contrário dos países imperialistas” (uma vez que a China sofreu, no século 19 e primeiras décadas do século 20, com a ação imperialista de europeus, japoneses e estadunidenses, que invadiram e dividiram seu território para explorar seu povo), que impõem seus próprios termos para o comércio entre as nações, o gigante asiático propõe a cooperação econômica de tipo “ganha-ganha” com países em desenvolvimento.
No momento, a China está expandindo seus interesses por acesso a recursos naturais e a novos mercados, ao Pacífico Ocidental, ao redor da periferia dos países do Sudeste Asiático, e ao Sul da Ásia, bem como em direção à Ásia Central e crescentemente sobre o continente eurasiano.
Com respeito ao relacionamento da RPC com o Sudeste Asiático, Pequim formula discurso com o realce de laços históricos que têm sido capazes de garantir a inserção internacional chinesa atual em universo de influência cultural do antigo “Império do Centro”. Procura, então, dar versão benigna às viagens do Almirante Zheng He, ocorridas há 600 anos, aos mares austrais do continente asiático.
Quanto à Ásia Central e Eurásia, registram-se formulações quanto ao ressurgimento de uma Nova Rota das Sedas. Assim, a China está empenhada na frenética construção de ferrovias, estradas e dutos para a importação de recursos energéticos, através da Eurásia. Tais vias de transporte substituirão as caravanas de camelos da antiga Rota das Sedas. Da mesma forma, a moderna Marinha da RPC substitui a frota de Zheng He, nas costas da África e do Mediterrâneo.
O objetivo é estabelecer um fluxo de livre comércio e futura integração internacional de mercados. Com essa iniciativa, a China almeja novas oportunidades de comércio, estabelecendo “network” de integração e cooperação (“conectividade” para empregar o termo preferido de seu governo atual) com vários países que se dispuserem a participar.
Assim, se materializaria a “iniciativa de um cinturão e uma rota”, lançada por Pequim, em 2013, ambicionando a modernização da massa terrestre eurasiana, onde vive (incluindo chineses e indianos) cerca de sessenta por cento da população mundial. Ademais, tendo em vista a fragilidade do sistema de poder internacional vigente, o projeto de “Belt and Road” poderia indicar um novo ordenamento nas relações entre os países a serem incluídos.
Os dirigentes chineses pretendem, de qualquer forma, resgatar as referidas expedições marítimas históricas como registro de suas “intenções pacíficas” e exemplo da permanente busca de “harmonia” — em oposição a “hegemonia” — nas relações da China com seus vizinhos ao sul de suas fronteiras. O Partido Comunista Chinês (PCC), portanto, se esforça, tanto no plano interno, quanto no das relações com o exterior, no sentido do convencimento de que, em todos os momentos de emergência do país — há 600 anos, como agora — a China pode ser forte, sem representar ameaça regional ou mundial.
Moscou e os “Russos do Exterior Próximo”
São distintas da situação dos “overseas Chinese”, no entanto, as relações entre Moscou e pessoas que conservam a identidade cultural russa, em países vizinhos, ex-integrantes da URSS. Desnecessário lembrar que, ao contrário do deslocamento de chineses para o Sudeste Asiático, resultado de ações da sociedade civil[3] e ocorrido há centenas de anos, os “russos do exterior próximo” foram estabelecidos por decisão do Governo em Moscou, no século passado, a partir da criação da União Soviética.
Existiria, a propósito, uma “visão de futuro” que “sugeriria” novos vínculos para um espaço pós-soviético, seguindo caminho no sentido de uma “União das Repúblicas do Exterior Próximo”.
Isto é, o Presidente Vladimir Putin, em documento publicado em 2008, propôs “Um novo projeto de integração para a Eurásia: o futuro que nasce hoje”. Sugeria, em suma, algo mais parecido com roteiro de um bem-organizado retorno a “passado saudoso” (para ele), do que movimento em direção a objetivo inovador.
Como se sabe, durante a existência da URSS, Moscou dirigia todos os detalhes da organização político-socioeconômica das Repúblicas Soviéticas. A réplica deste mesmo projeto permeia a referida proposta do Presidente da Federação Russa.
Assim, Vladimir Putin retomava, com o conceito da União Eurasiática, a defesa da fusão de mecanismos de integração existentes, com vistas à criação de um polo de poder no mundo contemporâneo, com sede na capital russa, situada cartograficamente entre a Europa e a região da Ásia e Pacífico.
O líder russo revelava que a meta era chegar a “patamar superior de integração”. Na prática, isso significaria a reconstrução de relações com “países do exterior próximo”, que integraram tanto o Império Russo, quanto a União Soviética.
O processo desordenado e irresponsável como foi dissolvida a União Soviética, em 1991, a propósito, provocou turbulências além das ora sofridas na Ucrânia, bem como temidas em outras ex- Repúblicas que pertenceram à URSS, como a Moldova, Lituânia, Estônia e Letônia. Em todos estes Estados que se emanciparam de Moscou, permaneceram cidadãos que utilizam o idioma russo e são chamados, pelo Presidente Putin, como “exterior próximo”.
A forma de governança, adotada a partir da criação da União Soviética, como se sabe, não favoreceu o florescimento de ideologias em competição entre si, no âmbito de fronteiras definidas no período pós-independência, em 1991. Havia que prevalecer, segundo essa maneira de pensar, apenas o conjunto de ideias-forças definidas pelas autoridades centrais. Esse processo facilitaria o congelamento de lideranças que, “à maneira antiga de pensar”, não admitia contestação.
Como resultado, este sistema autoritário permeou as estruturas básicas desses novos Estados, ainda sob influência do estilo de governança soviético e facilitou, em certa medida, que projetos de poder pessoais viessem a ser consolidados.
Lembra-se que, durante a existência da URSS, enquanto novas “Repúblicas”, traçadas a partir de Moscou, foram se consolidando, classes dirigentes fortaleceram-se com métodos de governança soviéticos, tais como julgamentos e execuções sumários, e “desaparecimentos”.
Na medida em que estas “modalidades de controle social” iam se incorporando aos hábitos locais, vínculos de cumplicidades congelavam elites que se mantinham no poder, às custas do emprego da violência contra seus próprios nacionais e minorias de “russos do exterior próximo” (inclusive na Ucrânia conforme será mencionado na sequência deste artigo).
Crises atuais, como a da invasão militar da Ucrânia e o “conflito congelado no Cáucaso” (entre Armênia e Azerbaijão) têm sua origem na forma desordenada como ocorreu o processo de desintegração da União Soviética. Na medida em que o mecanismo ideológico que a sustentava desapareceu, sobreviveram rivalidades criadas e consolidadas pelo modelo de governança stalinista.
Este privilegiava lideranças das chamadas “repúblicas soviéticas” que, após o desaparecimento da URSS, insistem em defender prerrogativas próprias que lhes foram outorgadas pelo “velho regime”.
Tais privilégios diziam respeito, principalmente, ao conceito de “autodeterminação”, que veio a provocar o surgimento de “repúblicas soviéticas” — etapa intermediária para a consolidação do socialismo — com capacidade de decisões próprias, com o emprego, até mesmo, de forças armadas a sua disposição.
O objetivo final, após aquele período, seria a inserção de todos estes minis governos na moldura de governança maior da então poderosa União Soviética. A etapa posterior ocorreria, com a universalização do poder do proletariado. A dialética marxista garantiria que, com o “desaparecimento da luta de classes”, as referidas repúblicas se dissolveriam, em favor do interesse maior compartilhado por todos, “ansiosos por serem conduzidos ao comunismo”.
Nessa perspectiva, a origem dos problemas que ainda permanecem nas antigas Repúblicas Soviéticas encontra-se na complexa interpretação stalinista sobre o significado de “nação”.
Em termos reconhecidamente simplificados, é possível entender que, para aquele líder soviético, caberia distinguir nação, de raça, tribo, grupo linguístico ou pessoas que simplesmente habitassem o mesmo território.
A nação, segundo ele, seria uma comunidade que teria “evoluído historicamente e se tornado estável”. Tal conceito poderia ser definido em termos de uma cultura comum, a incluir “idioma, território, vida econômica e características psicológicas semelhantes”.
Coerente com o raciocínio do “materialismo histórico”, Stalin identificaria, como contradição principal, o surgimento do nacionalismo, principalmente, como resposta à opressão por algum outro grupo social. Isto é, a consciência nacional — da mesma forma que a de classe — surgiria em função da circunstância de que uma comunidade nacional se encontrasse subordinada a outra.
A diferença entre o conceito stalinista de nação e o pensamento “burguês” sobre o tema seria, que, para este “o nacionalismo seria o caminho para a guerra e o imperialismo”. Para os seguidores do líder soviético, no entanto, apenas um sistema político, que permitisse a nações exprimirem seu desejo de autodeterminação, evitaria conflitos e eliminaria a burguesia do poder. Tal autodeterminação, contudo, deveria ser claramente percebida como sendo “em benefício dos interesses do proletariado”.
Dessa forma, por exemplo, não seria permitido a líderes religiosos reivindicarem autodeterminação de uma área, apenas para satisfazer anseios de muçulmanos ou cristãos. “Os interesses dos trabalhadores, como um todo, deveriam ser levados em conta, para obter o benefício em questão.”
Seria a conveniência da promessa de estabilidade — cabe ressaltar — oferecida pela proposta de Putin que agradaria autoridades destas ex-Repúblicas Soviéticas. Afinal acena-se com um “patamar superior de integração” com a reconstrução das relações com os países do “exterior próximo”, que integravam o Império Russo e a URSS.
O “encanto” deste projeto vem sendo diluído, há cerca de um ano pela “intervenção” russa na Ucrânia. Outros países, que integraram a URSS, passaram a temer o mesmo destino.
Assim, cabe não esquecer quais eram os objetivos originais de Moscou, no sentido de projetar imagem positiva de uma “Federação de Nações do Exterior Próximo”. Na prática, tratava-se de reviver o antigo Império Russo. [4]
A Questão da Ucrânia e os Acordos de Minsk
A atual questão da Ucrânia é o exemplo maior de tragédia criada em país vizinho da Rússia, como resultado da forma desordenada como aconteceu a “implosão” da União Soviética e a presença de “russos do exterior próximo”, em território ucraniano.
Para a solução do conflito, foram concebidos os Acordos de Minsk. Assinados em 2014 e 2015 por representantes da Ucrânia, Rússia, França, Alemanha e das chamadas “Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk”, onde predominavam “russos do exterior próximo”. Os referidos documentos não conseguiram solução pacífica para o conflito em Donbass, na fronteira russo-ucraniana.
Em 22 de fevereiro de 2022, dois dias antes de começar sua “operação militar especial”, Moscou reconheceu a “independência” de Donbass e Putin esclareceu que a medida fora adotada porque Kiev afirmara publicamente que não cumpriria os Acordos de Minsk.
Lembra-se que, em fevereiro de 2014, o governo democraticamente eleito da Ucrânia fora derrubado pelo chamado movimento Euromaidan, que teria sido apoiado por potências ocidentais. O golpe desencadeou um conflito sangrento nas regiões orientais do país, onde parte da população — predominantemente de expressão russa — recusou a nova liderança de Kiev. Formaram-se, então, as “Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk” (RPD e RPL, respectivamente).
Kiev, então, tentou subjugar rapidamente as repúblicas recém-formadas por meios militares, sem sucesso. Não tendo conseguido vitória decisiva no campo de batalha, visto o apoio militar da Rússia aos dissidentes e o apelo das potências europeias por uma solução pacífica para o conflito, a Ucrânia recorreu a negociações. Estas foram dificultadas pela relutância do governo ucraniano em falar diretamente com os líderes da RPL e RPD.
Foram, então, formados o Grupo de Contato Trilateral sobre a Ucrânia, composto por Kiev, Moscou, Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e o Formato Normandia, incluindo Ucrânia, Rússia, Alemanha e França. Chegou-se, assim, ao que ficou conhecido como os Acordos de Minsk, por terem as negociações sido realizadas na capital bielorrussa, considerada um terreno neutro.
O primeiro desses acordos, o Protocolo de Minsk, foi assinado em 5 de setembro de 2014. Diante da ausência de resultados positivos, foi realizada nova versão, conhecida como Acordos de Minsk-2, assinado em 12 de fevereiro de 2015.
O acordo Minsk-2 foi firmado durante uma reunião do Formato da Normandia, que incluiu o presidente russo, Vladimir Putin, a então Chanceler alemã Angela Merkel, o então presidente francês, François Hollande, e o então presidente ucraniano Pyotr Poroshenko.
As partes prometeram : cessar-fogo e retirar suas forças da linha de contato; a presença de armas pesadas na área da zona-tampão foi estritamente proibida; os sistemas de foguetes de lançamento múltiplo Uragan e Smerch, bem como o sistema de mísseis balísticos de curto alcance Tochka, deveriam ser retirados a 70 km da linha de contato; observadores da OSCE deveriam monitorar a implementação dessas regras; além da troca de prisioneiros de acordo com o princípio “todos por todos”, os lados foram obrigados a realizar a anistia dos capturados durante os confrontos armados; o lado ucraniano também deveria adotar a lei sobre o status especial dos distritos separados de RPL e RPD e realizar eleições locais, levando em consideração o posicionamento dos representantes de ambas as repúblicas de Donbass. No dia seguinte às eleições, Kiev deveria assumir o controle total da fronteira estatal ucraniana; além disso, os Protocolos de Minsk estipulavam a implementação de uma reforma na Ucrânia, que previa a introdução de um conceito de descentralização na Constituição do país que deveria ter levado em consideração as especificidades de “certos distritos das regiões de Donetsk e Lugansk”.
Segundo Moscou, contudo, nos últimos cinco anos, “o lado ucraniano simplesmente se absteve de implementar as cláusulas políticas dos Acordos de Minsk, exigindo, em vez disso, que o controle da fronteira entre os territórios da RPL e RPD fosse entregue primeiro a Kiev.”
Essas exigências, no entanto, foram rejeitadas pelas autoridades das ditas repúblicas e por Moscou, que suspeitava que, uma vez que as forças ucranianas assumissem o controle da fronteira e isolassem efetivamente as repúblicas do mundo exterior, Kiev poderia então tentar esmagar toda a oposição por meios militares.
A RPD e RPL, assim como a Rússia, também acusaram o governo ucraniano de ocupar assentamentos ilegalmente na zona-tampão e de colocar equipamento militar pesado na região.
A situação foi ainda mais agravada pelo fato de que as potências ocidentais repetidamente fecharam os olhos à recusa de Kiev em aderir aos Acordos de Minsk, ao mesmo tempo em que repreendiam constantemente a RPD e RPL por supostas violações dos mesmos acordos.
Em 21 de fevereiro de 2022, Putin assinou um decreto para reconhecer a independência das repúblicas de Donbass, que mais tarde “se tornaram parte da Rússia”. A iniciativa resultou em ataques ucranianos crescentes de bombardeios e sabotagem contra a RPL e RPD. O decreto foi seguido por anúncio de Putin quanto ao início de uma “operação militar especial russa” na Ucrânia em 24 de fevereiro.
Experiências pessoais
Durante os nove anos que servi no Sudeste Asiático (1986 a 1995), notei que eram cordiais as relações sociais entre pessoas de origem chinesa e malaios e hindus (outros grupos predominantes).
Mesmo diante do conceito de “resiliência”, explicado acima, verificava-se, contudo, uma certa tensão latente, quando um grupo ou outro sentisse que sua “identidade cultural” fosse ofendida.
Parti de Minsk antes da invasão russa da Ucrânia, não podendo, portanto, atestar sobre o relacionamento entre os nacionais dos dois países, a partir de então.
Como Embaixador em Baku, contudo, registrei, em diferentes ocasiões, que após reuniões tensas e agressivas, entre armênios e azeris, havia aparente confraternização entre os delegados dos dois países. Isto porque, tratando-se de povos originalmente voltados para atividades pastoris (criação de ovelhas), houvera interação frequente, em virtude de deslocamentos de seus respectivos rebanhos ao território vizinho.
Daí, as pessoas se conhecerem, possuírem laços familiares e terem cultivado laços de “parceria”. A criação das Repúblicas Soviéticas, conforme se procurou demonstrar, os separou, com o fortalecimento de elites que herdaram privilégios, concedidos pelo período de dominação da URSS.
De qualquer forma, proponho um “Ganbei”, (“saúde, em chinês”) aos que se expressam neste idioma no Sudeste Asiático e uma “Nasdrovia”, (em russo) como forma de brindar e preservar sua convivência ou encerrar conflito com a potência maior de suas respectivas regiões.
Conversar é preciso.
Notas
[1] Vide livro de minha autoria “A China e o Sudeste Asiático”, Editora da Universidade/UFRGS,2000.
[2] O tratado RCEP (Parceria Regional Econômica Abrangente, em sua sigla em inglês) abrangerá um terço da atividade comercial do planeta, e os signatários esperam que sua criação ajude os países a saírem mais rápido da turbulência imposta pela pandemia da corona vírus. Além dos dez membros da Asean, o tratado inclui China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia.
[3] Reitero referência a livro de minha autoria “A China e o Sudeste Asiático”, já citado em item anterior.
[4] Em “Os EUA e o colapso da ordem mundial, 1900–1941”, o historiador Robert Kagan, da Brookings Institution afirma que “Teóricos de relações internacionais nos ensinam a considerar ‘interesses’ e ‘valores’ como elementos distintos, com a ideia de que, para todos os países, os ‘interesses’ — preocupações materiais, como segurança e bem-estar econômico — necessariamente assumem primazia sobre os valores. Mas não é assim, na realidade, como as nações se comportam. A Rússia após a Guerra Fria desfrutou de mais segurança em sua fronteira ocidental do que em qualquer outro momento na história, mesmo com a expansão da Otan. Mas Putin tem se mostrado disposto a tornar a Rússia menos segura para cumprir as ambições tradicionais da grande potência russa, ambições que têm mais a ver com honra e identidade do que com segurança”. Citado por Thomas Friedman, 06/02/2023.
Sobre o autor
Paulo Antônio Pereira Pinto: Embaixador aposentado. Serviu na Embaixada do Brasil em Pequim, entre 1982 e 85 e em Embaixadas no Sudeste Asiático, entre 1986 e 1995, sucessivamente na Malásia, Singapura e Filipinas. Durante estes anos, mantiveve contatos com centros de estudos estratégicos em Manila, Kuala Lumpur, Singapura, Jacarta, Pequim e Hong Kong, na preparação de missão acadêmica, que coordenou, em 1994, e visitou Singapura, Pequim e Hong Kong. Chefiei o Escritório Comercial em Taipé, entre 1998 e 2006. Em países que pertenceram à URSS, foi Embaixador em Baku, Azerbaijão, entre 2009 e 2012, e em Minsk, Belarus, entre 2015 e 2019.
https://medium.com/mundorama/china-e-r%C3%BAssia-os-chineses-do-sudeste-asi%C3%A1tico-e-os-russos-do-exterior-pr%C3%B3ximo-fce34d206b55