As tensões na Ucrânia chegaram a um novo patamar nos últimos dias, com a decisão da Rússia de sair da posição de longa espera por diálogos construtivos sobre uma nova arquitetura de segurança na Europa e anunciar uma operação especial.
A
operação especial lançada na última quinta-feira (24) pela Rússia a pedido das repúblicas populares de Donetsk (RPD) e Lugansk (RPL) e com o objetivo de neutralizar partes da infraestrutura militar ucraniana tem sido alvo de críticas desde o anúncio feito, ainda na madrugada, pelo presidente russo, Vladimir Putin. Condenações, inclusive, derivadas de muitas vozes que se calaram durante inúmeras ações militares realizadas nos últimos anos pelos Estados Unidos e seus aliados, ao arrepio do direito internacional, que resultaram em milhares de vítimas.
O governo russo justifica sua decisão afirmando que ficou sem saída e que essa é uma reação aos avanços da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a anos de agressões das forças da Ucrânia contra as regiões do leste do país, em Donbass.
“Eu acredito que estamos assistindo agora à segunda etapa da tentativa da OTAN de chegar às fronteiras russas. Em 2014 foi a tentativa do governo [Barack] Obama, e, agora, o governo [Joe] Biden tentou, mais ou menos, fazer a mesma movimentação”, explica à Sputnik Brasil o pesquisador Charles Pennaforte, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador do Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos (LabGRIMA).
Há oito anos, um golpe de Estado apoiado pelos EUA e por países europeus destituiu o então presidente Viktor Yanukovich, eleito em 2010 com grande apoio da população do leste da Ucrânia. Insatisfeitos com a situação, os habitantes da região, muito identificados com a Rússia — e em meio ao processo de reintegração da Crimeia a esta, por decisão da população local —, se recusaram a aceitar a subordinação a um governo ucraniano provisório visto por eles como ilegítimo e manipulado pelo Ocidente.
A resposta de Kiev à insatisfação foi o lançamento de uma grande operação militar com o objetivo de endurecer o controle sobre Donetsk e Lugansk, por ordens do líder interino Aleksandr Turchinov.
Nos meses subsequentes, os conflitos se intensificaram, grupos neonazistas que participaram ativamente do golpe foram institucionalizados na Ucrânia, se tornando inclusive partidos políticos reconhecidos, e uma
série de sanções foi imposta pelo Ocidente à Rússia, acusada de tentar interferir em assuntos internos do país vizinho.
Uma tentativa de resolver a questão de maneira pacífica foi formalizada pelos acordos de Minsk, mas nem o sucessor de Turchinov, o agora ex-presidente Pyotr Poroshenko, nem o atual líder ucraniano garantiram a implementação de todos os seus pontos, mesmo Vladimir Zelensky tendo sido eleito após uma campanha baseada na promessa de acabar com as hostilidades no país.
Em vez de pacificação, o que se viu até agora durante o governo Zelensky foi uma nova ameaça da OTAN de se estabelecer na Ucrânia, quebrando mais uma vez as promessas feitas a Moscou ainda nos anos 1990 e colocando mais pressão sobre a Rússia, conforme destaca Pennaforte.
“No que se refere às possíveis responsabilidades, ou não, pelos eventos que estão ocorrendo na Ucrânia com a Rússia, eu acho que é uma questão exclusivamente geopolítica. Não se trata de opinião, por exemplo, minha, pró ou contra. São fatos. Analisando o mapa da Ucrânia, Leste Europeu e Rússia, vê-se uma expansão [da OTAN] em direção ao leste. Justamente sobre aqueles países que faziam uma cortina, uma cortina de ferro, uma cortina de segurança para os russos.”
De acordo com o professor, a aliança transatlântica, criada em plena Guerra Fria, deveria ter sido desmantelada após o término da mesma.
“Ao invés da OTAN ser desmantelada, já que o cenário pós-Guerra Fria não demanda essas questões de segurança, o que se vê é o contrário: ela continua tentando se aproximar cada vez mais, com governos próximos de alguma maneira. Quem faz parte da OTAN? A OTAN não é um bloco econômico. Certamente ela colocará mísseis, material bélico ou bases. E isso para a segurança da Rússia é injustificável.”
Embora a Rússia tenha buscado várias formas de chegar a um acordo com a Ucrânia e o Ocidente antes de optar pelo lançamento da operação, o especialista acredita que o discurso do Kremlin poderá ficar “prejudicado” junto à opinião pública “se houver, realmente, uma ocupação da Ucrânia como um todo”. Em discurso na última quinta-feira (24),
Putin disse que isso não faria parte dos planos.
“Se nós analisarmos as propostas da Rússia para não ocorrer o que está ocorrendo hoje, [a finalidade] era simplesmente essa: uma garantia, que foi dada na época do fim da União Soviética, de que não haveria uma expansão da OTAN. E está havendo uma expansão da OTAN”, afirma Pennaforte.
O pesquisador lamenta o fato de muitas discussões sobre o assunto estarem sendo feitas sem profundidade, sem abordar todos os aspectos envolvidos na atual crise.
“Infelizmente, aqui no Ocidente, a retórica pró-Washington é muito forte. Então se retira essa questão geopolítica de base para focar unicamente em questões superficiais, como se o que está ocorrendo hoje fosse exclusivamente derivado da cabeça de um governante. Ou seja, é muito pouco, é muito rasa essa análise.”