Motociclismo de estrada

Por Daiane Brites e Elise Souza

Das Harley Davidson às esportivas japonesas, a paixão de quem escolheu se aventurar sobre duas rodas.

Monstros sobre rodas ou espíritos livres? Era essa pergunta que Hunter Thompson procurava responder ao escrever a reportagem que deu origem a um novo estilo jornalístico. O jornalismo Gonzo, filho bastardo do New Journalism, nasceu da curiosidade de Thompson em descobrir a verdadeira face do Clube de Motoqueiros americanos HellsAngels. A brilhante reportagem rendeu muitos frutos, mas não colocou um ponto final no mito que ainda persiste sobre o estilo de vida dos grupos que preferem encarar a vida em cima de duas rodas.

O começo de tudo

Desde a construção da primeira motocicleta, em 1868, a prática do motociclismo sempre esteve ligada ao espirito de liberdade e aventura. As primeiras corridas de motos foram organizadas logo no início do século XX, o que aumentou não só o interesse, como também a admiração pelo novo meio de transporte, levando a criação de grupos sociais constituídos de pessoas que tinham o motociclismo como interesse em comum.

O fim da segunda guerra foi o grande catalisador para a mudança deste pacato cenário. Muitos membros das forças armadas voltavam dos campos de batalha e simplesmente não conseguiam se readaptar a rotina de cidadãos comuns. Era preciso celebrar a volta ao seu país, mas eles estavam acostumados com a adrenalina e com o desafio de seus limites. Assim, aos poucos foram se reunindo e juntos descobriram na motocicleta um novo meio de satisfação. Os ex-combatentes haviam sido treinados a guia-las nas zonas de guerra, e com o fim do conflito, elas passaram a serem vendidas a baixo custo nos leilões militares.

Logo, os veteranos adaptaram a hierarquia militar em uma estrutura de irmandade. Os membros rodavam juntos e estabeleceram cores, brasões e filosofias que passaram a defender com a mesma honra que defendiam a América nos campos de batalha. Na Califórnia se formaram inúmeros e pequenos moto clubes (MC’s), como os 13 Rebels, YellowJackets e PissedofBastards.

Percebendo que o novo contexto ganhava força, a A.M.A (American MotorcycleAssociation) passou a organizar competições e viagens na tentativa de atrair e manter os novos motociclistas. O problema é que esses novos praticantes haviam voltado do front de combate com experiências muito mais marcantes do que as vivenciadas sobre suas Harley Davidson WA45. Eles haviam sido expostos a todos os tipos de traumas e em busca do tempo perdido, eles transformavam os eventos em festas, bebedeiras e confusões.

Foi após um fim de semana em Hollister, Califórnia, que a tolerância da população com os excessos dos veteranos acabou. Até então, o fato deles terem defendido o país na guerra havia atenuado o comportamento errante dos novos motociclistas, mesmo que toda essa farra estivesse sendo financiada pelas pensões do governo.

Aquele fim de semana taxado de “negro” pela mídia sensacionalista, era o que faltava para concretizar o mito de que os grupos de motociclistas eram, na verdade, motoqueiros fora da lei, que andavam em gangues aterrorizando as cidades. Os jornais estampavam manchetes exageradas como “Revoltas…” “Motociclistas assumem Cidade” e “Motociclistas destroem Hollister”. Até a Revista Life estampou uma fotografia de página inteira de um motociclista em uma Harley, com uma cerveja em cada mão e envolto em garrafas de bebidas.

Buscando salvar a imagem da associação, a A.M. A culpou os Bastards pelo incidente, tentando mostrar à sociedade que os motociclistas não deveriam ser culpados pela depredação causada por um único clube. Mas já era tarde. Os grupos já haviam sido estigmatizados e a imagem de vândalos foi reforçada por produções hollywoodianas como o filme “Wild One” de 1954, onde Marlon Brando revivia os acontecimentos de Hollister. O que Hollywood e a imprensa conseguiram ao vendar essa imagem de motoqueiros sociopatas foi incentivar verdadeiros marginais a criarem gangues travestidas de moto clubes, transformando a década de 50 uma página negra na história do motociclismo.

Ao culpar um único grupo, argumentando que a maioria não poderia ser responsabilizada pela atitude de 1% de arruaceiros, a A.M. A acabou criando o fenômeno dos moto clubes 1% ou OutlawsMotorcycleClubs. Aliados aos veteranos do Vietnam que eram marginalizados pela população, os Outlaws tomaram para si a atitude e a imagem daqueles 1% apontados na Califórnia, e criaram uma instituição independente da A.M.A , sem regras especificas e com limites geográficos, onde cada MC teria domínio. É neste período que os Oakland HellsAngels ganham destaque, depois de dois de seus membros serem presos e acusados de estuprar duas mulheres em Monterey.

Na década de 60, os motociclistas voltam a estampar as telas do cinema, mas dessa vez de forma positiva. Filmes como “EasyRiders” levaram o tema a se popularizar, dando início a fase romântica do motociclismo que se estendeu até o fim dos anos 70.  Esta fase imprimiu ao estilo uma nova imagem de renovação, contemporaneidade, contribuição à comunidade e liberdade.

Os moto clubes no Brasil

No início do século XX nasce no Rio de Janeiro o primeiro grupo de motociclistas nos moldes de uma associação. Após as transformações na estrutura dos clubes no pós-guerra, alguns grupos se readaptaram à nova realidade, outros, como ocorreu no Brasil, se extinguiram ou continuaram como associações.

Após sofrer uma defasagem de 60 anos na história do motociclismo de estrada, durante a década de 60 a TV Tupi produziu, entre 1961 e 1962, a série “O Vigilante Rodoviário”, que inflou a cabeça de jovens e adultos com ideais de liberdade e aventura. Todos esses anos de atraso foram diluídos nos anos 70 e 80, durante o período romântico. Em 1996 o estilo finalmente se popularizou no Brasil e foram criados diversos MC’S, impulsionados pela grande cobertura midiática acerca do tema, pelas fábricas japonesas que passaram a copiar os desenhos da Harley Davidson, a abertura de lojas da própria Harley no Brasil, e os diversos eventos comerciais que grandes empresários passaram a organizar a fim de explorar esse mercado.

Hoje no Brasil existem milhares de moto clubes e moto grupos (MG’s). Somente na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, estima-se haver mais de 300. Diferentemente da filosofia dos Outlaws, os grupos de motociclistas da região liberaram-se de qualquer espírito de rebeldia e vivem sob uma conduta de liberdade, moral e união.

O professor de artes Flávio Cavalheiro, presidente do moto grupo Amigos Aventureiros, criado há sete anos, conta que cada grupo possui suas peculiaridades. De sua passagem pelos Scorpions do Asfalto, de Belo Horizonte/MG, trouxe a paixão pelo motociclismo e a prática da assistência social, mas abandonou os rígidos critérios de ingresso, característicos dos grupos do centro do país. De Belo Horizonte trouxe também a esposa, Ana Suvalski, que conheceu pela internet. Depois de passar por uma rígida criação, Ana apaixonou-se pelo motociclismo quando experimentou a liberdade que pode proporcionar e aderiu a esse estilo de vida. “A moto traz muita liberdade, aquele vento no rosto é uma coisa inexplicável, hoje eu tenho paixão por moto, é a nossa vida”, pontua. A internet além de unir o casal, também é considerada por ela uma

ferramenta de aproximação dos motociclistas, que utilizam as redes sociais para manter relações de amizade e disseminarem seus conceitos e filosofia de vida.

Em um encontro comum na sede do Amigos Aventureiros é possível encontrar diversos representantes de outros MG’s, não só de Pelotas, como também de cidades como Canguçu, Rio Grande e até Montevidéo, grande parte deles, pertencentes à Irmandade Estradeira, que reúne motociclistas de todo o Brasil.

Flávio e a esposa Ana na sede do Amigos  Aventureiros (Foto: arquivo)

Flávio e a esposa Ana na sede do Amigos Aventureiros (Foto: arquivo)

O motociclista Juan Pedro Alvarez, do moto grupo Cavaleiros Negros de Montevideo, conta que para ele a única coisa que separa brasileiros e uruguaios é a fronteira, já que são muito semelhantes em questões culturais e humanas. Por este motivo, explica sua afeição pelo povo brasileiro e justifica sua presença em maior parte das reuniões dos Amigos Aventureiros, que segundo ele, foi o grupo que o recebeu e apoiou. O aposentado de 55 anos, que já realizou longas viagens e chegou à Califórnia de moto, vê o motociclismo como uma terapia, em que os problemas desaparecem, dando lugar a uma sensação de alegria e tranquilidade. Para ele, por mais viagens que se façam, as experiências nunca são as mesmas e sempre rendem novos aprendizados. Embora admita que os motociclistas ainda sejam vistos com preconceito pelas pessoas que desconhecem sua filosofia, Juan tem apenas uma recomendação para quem quer adquirir experiência de vida, vivê-la sobre duas rodas.

Juan e a esposa, sua companheira de viagem (Foto: arquivo)

Juan e a esposa, sua companheira de viagem (Foto: arquivo)

E parece que cada vez mais as pessoas querem compartilhar desta experiência, já que o movimento tem ganhado adeptos. É o que afirma Buda, presidente e um dos seis fundadores do moto grupo Legionário do Sul, da cidade de Pelotas. De acordo

com ele, em tempos antigos os motogrupos se destacavam pela elegância e potência das motos, o que foi substituído por algo muito mais inclusivo, o que chamam de “espírito

de motociclista”. O que importa agora é a paixão, além de valores como amizade e respeito, compartilhados por integrantes de moto grupos distintos, que viajam juntos e realizam seus encontros em dias alternados da semana, para que não hajam disputas e todos possam confraternizar.

A história transformou a ânsia de liberdade de sobreviventes em um mito de rebeldes vestindo couro preto sobre máquinas potentes. A imagem, assim como a paixão, ultrapassou gerações, mas a filosofia mudou, transformando o motociclismo em um estilo de vida para aqueles a quem não basta o lugar comum.

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