Entrevista: Marismar Chaves da Silva – “Todos os dias os alunos me ensinam a ser uma professora melhor”

por Aline Vohlbrecht Souza

São 7h30min de uma fria manhã na cidade de Pelotas. O relógio ponto registra a sua entrada. Ela chega à escola com um sorriso no rosto e pronta para encarar mais uma manhã de trabalho. Assim é a rotina da professora Marismar Chaves da Silva (39) há 15 anos na escola Ginásio do Areal. Confira abaixo a entrevista que ela concedeu, falando da vida, da profissão e sua relação com os alunos.

Marismar Chaves da Silva Imagem: Acervo pessoal

Marismar Chaves da Silva
Imagem: Acervo pessoal

Aline: Você é natural de Iguatu – Ceará. Por que veio morar no Rio Grande do Sul?

Marismar: Eu vim para o RS, porque meu pai foi convidado para trabalhar com vendas, viu que a cidade tinha muito mais oportunidades do que tínhamos em Iguatu e ficamos por aqui, já estamos há 25 anos.

 

Aline: Por que você escolheu ser professora?

Marismar: Minha mãe era professora do MOBRAL, um projeto de governo no Estado do Ceará, em que as pessoas tinham aulas nas casas dos professores, porque não havia escola para onde elas pudessem ir. Minha mãe dava aula para adultos e eu tinha 4 anos de idade. Foi nessa época que eu decidi que seria professora igual a minha mãe.

 

Aline: Desde quando você está atuando em sala de aula? Tem pós-graduação? Quais as disciplinas que leciona?

Marismar: Sou formada em instituição pública. Atuo em sala de aula desde 1997. Tenho duas pós graduação como especialista em Literatura Contemporânea pela UFPel e Psicopedagogia pela UNINTER. Leciono as disciplinas de Literatura e Língua portuguesa.

 

Aline: Há quantos anos você trabalha na escola Ginásio do Areal?

Marismar: 15 anos.

 

Aline: Quantos alunos você tem?  Você os conhece pelo nome?

Marismar: Tenho em média 200 alunos e infelizmente não conheço todos pelo nome.

 

Aline: Quando iniciou seu trabalho como professora, o que você achou mais difícil? E o que surpreendeu você?

Marismar: Minha maior dificuldade foi que imaginava que professor devia vir para sala de aula, e trabalhar os conteúdos que havíamos nos preparado por anos para trabalhar. Mas os alunos queriam tudo menos saber das aulas que eu preparava. Surpreendia-me o fato de eles estarem tão pouco interessados no que tínhamos que fazer. Demorei anos para entender que meu interesse e compromisso não era o mesmo que os alunos tinham.

 

Aline: Você tem ou teve dificuldades com a disciplina em sala de aula? Como lida com isso?

Marismar: Tive muita dificuldade com a disciplina, saia das aulas chorando, tive sérios problemas emocionais por não ter o tal domínio de sala de aula. Sentia que era rejeitada, que tinha pouco valor para os alunos. Só depois da minha pós em psicopedagogia, quando passei a perceber que eu precisava olhar para o aluno como sujeito de sua aprendizagem, a buscar entender como eles pensam, como eles sentem a sua relação com a aprendizagem, que finalmente comecei a ter progresso. Mas nisso eu já era professora há mais de 8 anos.

 

Aline: Em geral, seus alunos são interessados? Como faz para lidar com aqueles desinteressados?

Marismar: Hoje, sim, posso garantir que todos os meus alunos são interessados. Aliás, o interesse é algo inerente ao ser humano, todo mundo tem algum interesse. A mágica é descobrir o interesse em quê e canalizar esse interesse positivamente. Agora se a pergunta fosse quantos alunos estão interessados no modernismo, ou quantos alunos estão interessados nos elementos da narrativa, ou quantos alunos estão interessados em aprender complemento nominal, eu diria que talvez uns 2% dos meus alunos. Mas hoje eu sei partir do que é interessante para o aluno e chegar naquilo que ele precisa aprender de forma sistematizada. Eles não querem saber do modernismo, mas estão muito interessados em adquirir liberdade e a luta pela liberdade foi o centro do movimento modernista. Todo mundo gosta de contar e de ouvir histórias e isso é a essência dos estudos da narrativa. E todo mundo se sente incompleto e precisa de algo ou alguém para que a vida ganhe significado e isso é o que o complemento nominal faz, ele completa o sentido do que não faz sentido sozinho.

 

Aline: Como você faz para lidar com a diversidade presente em sala de aula?

Marismar: Para você aceitar a diferença do outro você precisa entender que o diferente é você. O professor é diferente do aluno. Mas se ele abre mão de fazer essa diferença e trata o seu aluno como pessoa e não como aluno, você o está ensinando a tratar o negro como pessoa e não como negro; o gay como pessoa e não como gay; o evangélico, o macumbeiro como pessoa e não como praticante da religião x, o menino ou a menina como pessoa e não como menino ou menina; o morador do Dunas como pessoa e não como morador do Dunas; o filho do diretor como pessoa e não como filho do diretor. Essas distinções estão em todos os lugares e não apenas na sala de aula. Os jogos de poder da sociedade estão em todos os lugares, a nossa estrutura social, cultural está registrada no nosso inconsciente coletivo, nenhum ser social está isento de fazer distinções, o professor não pode criar um ambiente de aceitação, quando ele mesmo tem preconceitos formatados pela cultura e sociedade em que está inserido desde que nasceu. E quando a diversidade é transformada em mais um conteúdo a ser trabalhado e não uma postura de vida, fica bem difícil de ensinar essa lição. A nossa sociedade está tentando forjar o respeito a diversidade mas o caminho para isso acontecer ainda é muito longo e mal demos os primeiros passos.

 

Aline: Há alguma experiência na sua vida docente que tenha ficado marcada por algum motivo especial?

Marismar:Todos os dias há uma marca nova. Todos os dias os alunos me ensinam a ser uma professora melhor. Fico triste, quando as vezes sou reprovada dias e dias seguidos porque falhei em aprender o que eles estão tentando me ensinar. Mas me alegro muito quando tentando um, dois, três anos vejo que finalmente aprendi a falar a linguagem deles, a entender como a mente deles funciona, como desperto os sentimentos e as emoções deles e toda vez que eu aprendo essa lição, centenas de alunos se tornam tão bons alunos, quanto eu me torno melhor professora. Meu pesar é que tantos passaram por mim sem eu ainda ter aprendido o que precisava e para todos esses que passaram, eu não posso ter com eles, uma nova oportunidade.

 

Aline: O que você diria para quem pensa em seguir a profissão?

Marismar: Acalme seu coração, fortaleça seu organismo, prepare-se para viver a mais emocionante e dignificante das profissões. A relação ensino-aprendizagem é mais complexa, a mais humana de todas as relações e como tal, há dias de choro e raiva, mas também há dias de riso e amor. E o salário é irrisório diante de todo esse complexo universo de ser um aprendiz entre aprendizes.

 

Aline: Você se sente valorizado enquanto profissional?

Marismar: Financeiramente, não. No entanto, a vida me ensinou que meu valor histórico, social, cultural, político e artístico excede o valor de grandes nomes da história da humanidade, eu compartilho o valor de Jesus Cristo, de Martin Luther King e Madre Tereza de Calcutá, o que eu planto na minha sala de aula vai repercutir na eternidade. Eu sou uma pedra essencial na construção de uma sociedade melhor e mais justa. Eu transformo jovens imberbes em pensadores e meninas imaturas em mulheres de posição. Meu valor excede ao ouro e a prata das nações. E todo mundo sabe disso. Quem pode abrir mão de um Professor? Quem é louco de desprezar um mestre?

 

Aline: Mudaria de profissão?

Marismar: Não, nunca. Sou apaixonada pela minha profissão.

 

Aline: Quando não está em sala de aula, o que você gosta de fazer?

Marismar: No meu tempo livre eu cuido da minha família, descanso e passeio. Adoro mato e água.

 

Aline: A escola de hoje é…

Marismar: um campo enorme a ser trabalhado. Em algumas partes do campo a terra precisa ser preparada para receber a semente. Em outras as sementes estão germinando e é preciso protegê-las das ervas daninhas, é preciso regar, podar, fertilizar, e em outras partes a planta está madura, pedindo para ser ceifada. Esse campo precisa de trabalhadores dispostos a não deixar as sementes se perderem.

 

Aline: Para você a escola pública funciona?

Marismar:Sim e funciona maravilhosamente. Eu sou fruto da escola pública, um lugar onde as pessoas estão buscando… às vezes falta clareza do que exatamente está se buscando, mas isso acontece por ser um espaço democrático, e quando todo mundo tem direito de pensar e liberdade para falar, parece que se demora muito mais para chegar a algum lugar, no entanto, esse caminho feito de adições e contradições é que torna a escola público o lugar maravilhoso que ela é.

 

Aline: Na sua opinião, o modelo atual de ensino é eficaz?

Marismar: Primeiro é preciso falar de que modelo estamos falando. Boa parte dos professores nem sabem qual é o formato da escola atual. Nós somos geridos por pensadores como Piaget e Freyre, outros acham que somos modelos políticos e somos o quê?  Ensino Médio Tradicional, ou Politécnico? O ensino está buscando uma identidade. A nossa política de educação é ainda tão jovem que sequer sabe o que quer de si mesma. Mas uma coisa é certa, precisamos deixar de ser joguetes de programas de governo e termos metas e planejamento de Estado e não de governo. No entanto, acredito que estamos caminhando para isso.

 

Aline: Qual a maior necessidade da escola pública hoje?

Marismar:Precisamos de professores e não de funcionários da educação, isso significa que o professor tem que reconhecer seu valor social e se investir nesse valor, e o Estado tem que reconhecer esse valor e investir no professor e a sociedade tem que enxergar esse valor e lutar para preservá-lo. Sem esse reconhecimento pessoal, social e político a escola pública passa a ser depósito de alunos assessorados por funcionários do Estado.

 

Aline: Quais são as características e habilidades que se espera encontrar em um bom professor?

Marismar: Humildade, porque erramos muito e precisamos ser humildes para deixar o orgulho de lado e aceitar nossos erros. Estar aberto a experimentar e aceitar o novo porque se paramos de buscar nos reciclar, perdemos o rumo do processo ensino-aprendizagem. Acreditar em si mesmo e nos seus alunos, sem a certeza de que é possível fazer dar certo, a gente nem tenta.

 

Aline: o professor do século XXI  precisa…

Marismar: Se apropriar do conhecimento e ter autonomia na sua produção. A gente reclama que o nosso aluno só sabe copiar e dar respostas prontas, mas quantos de nós realmente produzimos conhecimento, e quantos de nós reproduzimos o conhecimento?

 

Aline: O maior desafio da educação atualmente é…

Marismar: Construir uma identidade coletiva. Enquanto cada professor estiver ilhado em seu mundo, ele vai continuar adoecendo sozinho. Enquanto o professor estiver fechado com seus alunos nas salas de aula, o pacto da mediocridade e do fracasso vai continuar. É preciso tornar o processo transparente, rico e verdadeiramente democrático e isso só acontece através da construção da identidade coletiva.

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