A arte que vem das ruas

por Luiz Ebersol, Matheus Pereira e Yago Moreira

Muito se comenta que as ruas constituem o maior palco para qualquer artista. Há o céu, as árvores, o barulho constante da rotina urbana e o contato direto com o público. As ruas oferecem liberdade e inconstância. Não existem dias iguais quando se trabalha a céu aberto. O artista é autônomo, faz seus próprios horários, vende sua arte em diferentes lugares e apenas busca capturar a atenção das pessoas que passam distraídas pelas ruas e avenidas da cidade. Pelotas, que é conhecida por ser um lugar artístico e cultural, recebe artistas que povoam o centro da cidade com cor e música. Em cada cantor há uma história; em cada pintor, palhaço ou malabarista, há um passado.

Enquanto os casais passeiam pela Praça Coronel Pedro Osório e os clientes do Aquários tecem suas conversas e bebem seus cafés, um som tenta irromper a balbúrdia constante da Rua XV de Novembro, no movimentado centro de Pelotas. O som do violino muitas vezes é abafado por alguma gritaria, buzina ou carro de som, mas todos que chegam perto podem escutar as belíssimas peças tocadas pela violinista. Antes de podermos conversar com a artista, esperamos que ela terminasse o número que executava naquele momento – tratava-se de Por Una Cabeza, tango de Carlos Gardel. Ao terminar de tocar, a violinista balança os braços cansados e sorri para um senhor que levanta de um banco e aplaude de pé o belo tango que acabara de ouvir.

Micaela Fernandez, a violinista, agradece o carinho e o punhado de moedas que recebe de dois ou três transeuntes. Todos que puderam presenciar aquele momento e escutar aquela canção sabem que as poucas moedas recebidas não são suficientes, não pagam o valor merecido. Mas as ruas são injustas e Por Una Cabeza não deve ter levado mais de três reais. Ao cumprimentar, Micaela já denuncia: ela não é brasileira. O sotaque abre diversas possibilidades: seria argentina? Chilena? Uruguaia? “Montevidéu”, ela responde. Uruguaia, afinal.

Fernandez conta que veio para Pelotas em março de 2014 e o encanto foi imediato. “Escolhi Pelotas por ser mais perto do Chuí. A cidade me encanta. As pessoas daqui são simpáticas, demonstram mais carinho e parecem gostar do meu trabalho”, revela Fernandez. Violinista desde os nove anos de idade, Micaela participou de cursos gratuitos oferecidos na escola pública onde estudava em Montevidéu.

A artista Micaela Fernandez nas ruas de Pelotas. Imagem: Amigos de Pelotas

A artista Micaela Fernandez nas ruas de Pelotas.
Imagem: Amigos de Pelotas

Muito de seu talento, porém, vem de berço. O pai é guitarrista, professor de música e maestro; assim, a família sempre deu suporte para Fernandez expressar o seu talento através do violino. Já adulta, e dominando o instrumento, Micaela deu aulas de violino em sua cidade natal. A vontade de ser livre e conhecer o mundo, porém, falou mais alto. Fernandez se juntou ao namorado, pegou seu filho de seis anos, colocou o instrumento na mala e veio para Pelotas.

Desde então, Micaela toca nas ruas da cidade. Começou no Calçadão, mas resolveu ir para um lugar mais calmo e, segundo ela, “mais artístico”: a “Quinze”. Sobre sua rotina, Fernandez comenta: “Não há rotina. Cada dia é diferente. Venho pra cá em horários diferentes e saio em horários diferentes. Se chove, não trabalho.” Ainda assim, Fernandez diz que o trabalho nas ruas é fascinante. “As pessoas se encantam. O contato é excelente. As ruas proporcionam uma proximidade com o público que o teatro não oferece”.

Micaela, então, demonstra seu amor à arte: “É o que amo fazer. Não faço pelo dinheiro, embora ele seja bom. Faço porque gosto”, afirma. A vontade de conhecer o mundo continua e, por isso, Micaela embarca com a família para Santa Catarina em breve. Ela espera obter lá o mesmo carinho e sucesso que conquistou aqui. Pelotas lhe trouxe felicidade, amigos, dinheiro, aprendizado e uma filha: Micaela ganhou seu segundo filho em setembro. A menina nasceu em Pelotas e pode ser considerada brasileira, ou melhor, pelotense. Micaela ressalta, porém, que deseja que seus filhos sejam “cidadãos do mundo”.

 

O outro lado da cidade

Nem todos, entretanto, sentem o mesmo encanto por Pelotas como Micaela. Lúcia da Silva e Francisco Teixeira, o conhecido Casal Show do Calçadão, criticam a organização da cidade e o desrespeito com que os artistas de rua são tratados. Os problemas já começam no próprio local de trabalho, onde os artistas disputam uns com os outros pelo melhor espaço do Centro. “Nós ficávamos em um ótimo lugar, mas emprestamos para outro artista ficar por uns dias. Quando voltamos para reaver o local, ele não quis sair. Perdemos o ponto”, revela Lúcia. As críticas continuam: “É só em Pelotas que encontramos dificuldade. Estou há 13 anos no Calçadão, e é muito difícil. Quando nos apresentamos nas ruas de outra cidade, o retorno das pessoas é ótimo; aqui, ninguém se importa”, conta Lúcia.

O "Casal Show" fazendo sua performance. Imagem: Divulgação

O “Casal Show” fazendo sua performance.
Imagem: Divulgação

Já para José Gomes, músico de Capão do Leão que vende seus CDs em Pelotas, a vida é difícil, mas a “Princesa do Sul” é uma das melhores cidades para ser um artista de rua. Gomes alega ter 60 anos de carreira. Diz ter trabalhado na adolescência com Lupicínio Rodrigues, conhecido diversos músicos e feito inúmeros shows. Hoje em dia, porém, depois de um severo problema de visão, Gomes tenta sobreviver vendendo seus discos no Centro. “Passei duas semanas sem vender nenhum disco. Teve um dia que vendi sete, mas é muito raro”, revela José Gomes.

O músico diz amar seu ofício, mas confessa que a música nunca foi uma boa fonte de renda. Durante a vida fez inúmeros serviços rápidos por encomenda (os chamados “bicos”), foi sapateiro, mas nunca abandonou a música. Ao fim da conversa, onde se abriu e contou um pouco de sua história, Gomes retira do bolso um punhado de cartões e nos entrega: “Liguem caso queiram um show. Mateada, aniversários, festas em geral. De graça”. A última palavra escancara a maior realidade de todas: muitos dos artistas que labutam nas ruas não querem nosso dinheiro, mas apenas mostrar a sua arte e capturar nossa atenção.

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