Nome Social: um direito renovado
Por Hillary Orestes, Roberta Muniz, Roger Vilela e Thaisa Valdez
Ter um nome é um direito, como aponta o Artigo 16 do Código Civil Brasileiro. Recebemos os nossos no momento em que nascemos. Mas, e quando uma pessoa não se identifica com o seu. Quando percebe que aquele por qual é conhecida, não a representa. Essa é uma situação em que travestis e transexuais vão se encontrar em algum momento de suas vidas.
Com o passar do tempo, as pessoas transgêneros vão conquistando direitos que as auxiliam no reconhecimento de suas verdadeiras identidades. E a possibilidade do uso oficial do nome social, designação pela qual elas preferem ser chamadas cotidianamente, é um deles.
Para Mário Rangel, 20, homem trans, o seu uso ajuda evitar constrangimentos no dia a dia: “Quando você vai num médico, por exemplo, e te chamam pelo seu nome de registro, você tem que se levantar e aí todo mundo te olha. Há outras situações desse tipo, que te causam constrangimento. Você se sente mal. Eu acho que o nome social é justamente para você ser respeitado pelo nome que você se identifica, pra você não passar por nenhuma situação embaraçosa como essa, entendeu?”.
Segundo Francine Coelho, 26, estudante da UFPel e mulher trans, poder usar o nome social no cotidiano permite a pessoa entender melhor a mudança pela qual está passando: “A gente meio que passa a se conhecer. A gente toma consciência de que tínhamos uma identidade que já não significa mais o que nós somos por dentro. Tu tinha uma identidade que não te pertence mais”.
De acordo com ela, o uso do nome social também é importante para a saúde mental e autoestima das pessoas trans: “Poder usar o teu nome social e a tua identidade conforme tu te enxerga, como tu te vê no espelho, conforme tu auto identifica como pessoa é fundamental, principalmente, na questão da saúde mental, que é um assunto tão delicado hoje em dia, tantas pessoas sofrendo de depressão. Então, poder usar um nome social, no meu ambiente de vida, que é a faculdade foi muito importante, fez uma diferença enorme, principalmente, na minha saúde mental, na minha autoestima”.
O nome é um direito que compõe o grupo dos “direitos de personalidade”, que têm como objetivo preservar a dignidade, integridade física, moral, psicológica e emocional dos indivíduos.
NORMATIZAÇÃO
Em 23 abril de 2016, o decreto presidencial nº 8.727, normatizou o uso do nome social e o “reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis ou transexuais pelos órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional”.
Em diferentes estados do Brasil, medidas para o reconhecimento do nome social foram tomadas antes da decisão federal. Em São Paulo, desde a publicação do decreto estadual nº 55.588 de março de 2010, todas as instituições da administração pública, direta ou indireta, como hospitais, escolas, universidades, polícia, Detran e outros, têm que respeitar o nome social. No Rio de Janeiro, isso ocorre desde julho de 2011.
No Rio Grande do Sul, em 2012, foi instituída por meio de decreto a Carteira de Nome Social para travestis e transexuais, que tem a função similar de uma carteira de identidade.
Para requisitar o documento, a pessoa precisa possuir carteira de identidade emitida no estado. É requisito obrigatório para confecção da Carteira de Nome Social a prévia identificação civil no Estado.
A primeira via do documento é gratuita. Em Porto Alegre, ele pode ser feito nas unidades do TudoFácil e no Posto de Identificação Azenha. Já no interior gaúcho, os responsáveis pela confecção da Carteira são os Postos de Identificação do Instituto-Geral de Perícias (IGP).
NOME SOCIAL NAS ELEIÇÕES
Nas eleições desse ano, foi a primeira vez que travestis e transexuais puderam votar utilizando o seu nome social. 6.280 brasileiras e brasileiros (sendo 330 eleitores no Rio Grande do Sul) estavam aptos para votar com um novo título de eleitor, agora com uma identidade que realmente os representa.
O direito de solicitar a emissão do título com o nome social foi assegurado pelo Tribunal Superior Eleitoral, TSE, em março, quando o plenário decidiu por unanimidade que pessoas transgêneros poderiam alterar o nome e o gênero com o qual se identificam no documento. Para o TSE, a autodeclaração do eleitor é suficiente para a Justiça Eleitoral fazer as alterações.
O processo de troca do nome no título de eleitor ficou aberto de 3 de abril a 9 de maio deste ano. Para realizar a troca, era necessário apenas comparecer a um cartório eleitoral. Com o fim das eleições o processo será retomado.
Mário Rangel, que vive na cidade do Rio de Janeiro, foi um dos 426 eleitores fluminenses que votaram utilizando o nome social. “Consegui votar com o nome social, fui respeitado ali. Eu fui até o tribunal eleitoral, cadastrei minha biometria, contei minha situação. Até eles falaram que eu tinha sido o primeiro ali, daquela unidade, a consegui tirar. Me respeitaram muito. Acho que em pouco em pouco a gente vai adquirindo nossos direitos”, conta Mário.
Alana Ribeiro, 20, estudante de pedagogia da UFPel, diz que por conta de problemas com sua documentação, não conseguiu emitir um novo título de eleitor. Utilizar seu nome de registro para votar foi algo desconfortável para ela: “É sempre uma coisa desconfortável ter contato com o nome morto. Não reconheceram minha digital, devido ao tamanho da minha unha. Tentei quatro dedos e não foi. E aí eu tive que assinar. Foi a primeira vez em quantos anos que assinei algo com aquele nome”.
Também em março, o plenário do TSE aprovou o uso do nome social por candidatos transgêneros em suas candidaturas a partir das eleições de 2018.
NOME SOCIAL NO AMBIENTE UNIVERSITÁRIO
Entrando no ambiente universitário, a Universidade Federal de Pelotas possui o Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual, o NUGEN, criado há quase dois anos. A estudante de teatro, Márcia Monks, que faz parte do núcleo, conta sobre o trabalho realizado nele: “Aqui é um local onde nós acolhemos alunos, alunas e alunes que sofrem de discriminação por conta de sua identidade de gênero ou sua orientação sexual”.
Em relação ao nome social, Márcia cita um exemplo recente para ilustrar o trabalho do núcleo: “Um caso que posso citar como exemplo é de um rapaz, o Alan. Ele é um homem trans e está passando pela transição. Ele não tinha o nome com o qual se identifica com o gênero masculino no cobalto [sistema da universidade]. Ele veio até nós, conversamos juntamente com a PRAE [Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis] e mudamos na mesmo hora, no Cobalto, no sistema, o nome dele”.
“Então, na UFPel, desde 2015, adotamos essa política de inserir o nome social quanto as pessoas trans. Até então nós tínhamos isso somente às pessoas trans binárias, ou seja, de homem para mulher e de mulher para homem, mas agora nós temos muitos alunos não-binários, que também tem que ter esse nome respeitado dentro da universidade”, complementa Márcia.
As pessoas não-binárias são as que possuem uma identidade de gênero que não é totalmente masculina ou feminina.
Hênrica Ferreira, estudante de teatro, é uma pessoa não-binária que procurou auxílio do NUGEN: “Eu tive uma conversa com a Márcia e com Aline, que é estudante de psicologia. Elas comentaram que eu poderia primeiro conversar com os meus professores, me colocar de forma mais social mesmo. Todos os meus professores acataram, exceto um, que eu não vou mencionar o nome, mas que de vez em quando deixa escapar o Henrique, mas não é aquele escapar de ‘foi sem querer’, é tipo intencional, que pra mim se torna uma agressão. Uma agressão contra a minha pessoa”.
Diferente de Hênrica, Francine, que também é estudante da UFPel, não teve nenhum problema com colegas ou professores: “Assim, na questão da faculdade o suporte foi total, desde dos meus conhecidos, colegas e tudo, até em qualquer nível acadêmico. No meu caso, eu esperei acabar o semestre antes de toda a troca, porque eu achei que fosse mais fácil para os meus professores e colegas. Para que eles tivessem um tempo para se acostumar com isso, até por uma questão de convenção, para evitar conflitos, problemas, esquecimentos, enfim, qualquer coisinha que pudesse acontecer”.
SOCIAL X REGISTRO
Ter o nome social não significa que o de registro foi alterado. Para isso, o transgêneros precisam passar por um novo processo.
Em março deste ano, o Supremo Tribunal Federal, STF, decidiu que transexuais e transgêneros podem alterar o nome no registro civil sem a comprovação de cirurgia de mudança de sexo ou decisão judicial.
No fim de junho, o Conselho Nacional de Justiça, CNJ, publicou regras para as pessoas trans mudarem nome e gênero em suas certidões de nascimento ou casamento diretamente nos cartórios.
Para fazer as alterações é preciso ser maior de idade e não ter nenhum processo judicial com o objetivo de alterar o nome ou o sexo do documento em aberto. Caso tenha, é preciso encerrá-lo.
O cartório que a pessoa trans precisa ir é o mesmo em que foi feito o seu primeiro registro, seja de nascimento ou casamento. O sobrenome da família não pode ser alterado.