Medo e insegurança marcam a realidade emocional de pelotas após as enchentes

Enchente atingiu muitos pontos da cidade de Pelotas e região – foto Gustavo Vara/prefeitura de Pelotas/ Em Pauta
Moradores e profissionais da Colônia Z3 relatam traumas e ansiedade um ano após a maior catástrofe climática do estado
Andrine Teixeira Garcia / Em Pauta
Há um ano atrás, acontecia a maior catástrofe climática da história do Rio Grande do Sul e, além dos rastros visíveis, ficaram os traumas para aqueles que a vivenciaram. Em Pelotas, é possível afirmar que a população afetada pela enchente na Colônia Z3 ainda carrega marcas profundas. O medo de uma nova inundação, a ansiedade diante de chuvas e a sensação de que tudo pode se repetir a qualquer momento fazem parte do cotidiano de muitas pessoas.
Em bairros onde a água chegou de forma menos intensa, o sentimento parece ser de maior alívio. Mas na Z3, região costeira da Lagoa dos Patos, a memória da catástrofe permanece viva. O canal São Gonçalo, que conecta a Lagoa Mirim à Lagoa dos Patos, atingiu a marca histórica de 3,12 metros, enquanto a Lagoa dos Patos elevou-se a 1,50 metros acima da cota de inundação. Moradores e profissionais que atuaram durante a crise relatam que, muitas vezes, foi preciso ligar o “piloto automático” para continuar trabalhando para ajudar a comunidade, além de ser uma forma de se desconectar dos próprios sentimentos.
Memórias do trauma
Camila Canielas reside no Bairro Laranjal, a 29km da Colônia Z3, e teve a casa invadida pela água. A família ficou um mês fora, na residência de familiares, mas ainda havia a preocupação com o pai, que permaneceu na casa. Camila afirma que a vida não parou após as enchentes. Diz que teve a sorte de conseguir recuperar a casa, a mobília, além de contar com o apoio de familiares e amigos, mas ainda sim, havia a incerteza trazendo a ansiedade.
“Sentimos medo e angústia, não sabíamos o quanto afetaria nossa casa ou quando poderíamos voltar para ela.”
Maria Ivete Falcão é Técnica em enfermagem e atuou na Unidade Básica de Saúde (UBS) na Colônia Z3 durante as enchentes, local que foi fortemente atingido. Os sentimentos que ela teve foi de solidariedade com a comunidade local e em alguns momentos, de impotência, por não conseguir fazer mais pelas pessoas. Mesmo sentindo-se sobrecarregada, trabalhou de manhã à noite e até em finais de semana, chegando à exaustão.
“A dificuldade era passar pelo caminho que nos levava a Z3, vendo a situação das pessoas que perderam tudo, com a casa cheia de água. [..] Tivemos bastante vivências nos abrigos. Foi triste, muito triste, ter que lidar com o sofrimento ao mesmo tempo em que as pessoas pediam ajuda e não podiam fazer muita coisa. Não tem como não se sensibilizar.”
Ao responder a pergunta “Você acha que os profissionais da saúde recebem atenção suficiente quando o assunto é cuidado emocional em momentos de crise?” Maria diz que na opinião dela não; que a cobrança aumenta muito nesses momentos, mas que os profissionais da saúde são os últimos a serem vistos.
Gisele Matos, assim como toda sua família, mora na Z3, e foi coordenadora do único abrigo disponível na colônia, que acolheu aproximadamente 300 pessoas. Ela afirma que não se abalou emocionalmente durante este período. Que apesar de precisar sair de casa, se sentia bem ao ajudar a comunidade. Trabalhando mais de 12h por dia no abrigo, usou essa ocupação como estratégia para não ter tempo de processar os sentimentos, até que sua mãe faleceu após contrair leptospirose, em decorrência das enchentes. A partir deste momento, ela se desestabilizou. Agora as enchentes remetem a lembrança de ter perdido uma das pessoas mais importantes de sua vida.
“Claro, eu ficava triste pelas pessoas […] Enquanto eu estava só vivendo com a água dentro da minha casa e cuidando de um abrigo com várias pessoas, estava tudo bem. Resolvia alguma coisa ali, lidava com vários problemas, mas estava tranquilo, a minha cabeça estava boa. A enchente só se tornou um horror para mim, quando perdi minha mãe.”
Quando a chuva cai, o medo volta
Cibele Santos mora no Laranjal e trabalha no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da Z3. Ela continuou trabalhando enquanto a água entrava em sua casa, em maio de 2024. Disse que não percebeu o quanto a enchente havia afetado sua saúde mental, até que em abril de 2015 – um ano depois – as chuvas voltaram com intensidade na cidade, ocasionando pontos de alagamento, despertando o sentimento de ansiedade, a deixando em estado de alerta, com medo. Cibele é formada em psicologia e já faz terapia há muitos anos, o que ela acredita que tenha a ajudado a lidar com toda essa situação crise e o pós-enchentes.
Vânia Vieira passou a vida inteira na colônia Z3, já acostumada com água no chão de casa em épocas mais chuvosas. Em maio de 2024, a sua residência foi uma das primeiras a ser tomada pela água da lagoa. Ao contar sua história, a palavra mais mencionada foi tristeza; a tristeza ao ver a velocidade na qual a água foi chegando, ao ver seus vizinhos passando pela mesma situação, de perder parte da mobília, todas suas roupas, de observar o desespero que tomou conta da comunidade.
“Meu emocional é a base do remédio […] Faço uso de medicamentos, já aumentaram a dose, mas eu passo a noite sem dormir ainda. Quando chove eu fico pior. Às vezes é 5h da manhã e eu to na cozinha, com medo de entrar água de novo”.
A mesma chuva que deixou Cibele alerta, trouxe pânico a Vânia, que acordou com alguns centímetros de água dentro de sua casa, trazendo as lembranças da catástrofe climática. Além disso, o cheiro fétido das águas continua entranhado nas paredes, a fazendo recordar diariamente do que aconteceu.
“Igual a essa daqui (enchente) nunca vi. A gente olhava e parecia Veneza, nunca imaginei que seria tanto. Tem dias que dá tristeza, vontade de largar tudo e sair sem rumo […] Não tem como esquecer o que aconteceu, viver com uma ansiedade, com a sensação de que tudo vai voltar, de que tudo vai alagar de novo e minha casa vai encher de água”
Denair da Rosa é funcionária do CRAS e não conseguiu voltar para casa, pois ela foi destruída pela enchente.
“Na hora a gente fica muito angustiado, mas a minha vontade de ajudar as pessoas era maior do que ter perdido minhas coisas. Acabou que fiquei vivendo no automático […] Só depois a gente percebe o dano. Com essa última chuva, já chegou água em algumas casas, eu fiquei desesperada, não tem como não ficar apreensivo […] Eu ainda não consegui me equilibrar emocionalmente, mas estou tentando ”
É possível afirmar que a população afetada pela enchente na Colônia Z3 ainda carrega marcas profundas. O medo de uma nova inundação, a ansiedade diante de chuvas e a sensação de que tudo pode se repetir a qualquer momento fazem parte do cotidiano de muitas pessoas.
Segundo a psicóloga Melissa Couto, especialista em emergências e desastres, é comum que pessoas diretamente afetadas por desastres climáticos apresentem reações agudas mesmo após o evento. “Diante de sinais como o som da chuva ou o céu escurecido, o corpo responde como se o perigo estivesse prestes a acontecer novamente. É uma ativação do trauma vivido”, explica.
Mas, os relatos de Cibele, Vânia e Denair não são isolados. Em diferentes regiões do estado, histórias semelhantes se repetem, e revelam como o impacto das enchentes de 2024 ultrapassou os danos físicos, deixando cicatrizes emocionais profundas. Na avaliação de Melissa, o Rio Grande do Sul vive uma espécie de luto coletivo.
Para compreender melhor os efeitos da tragédia sobre a saúde mental da população gaúcha, e a importância do cuidado continuado, confira a reportagem especial (hiperlink) que preparamos sobre o tema.
Ações de apoio durante e após a enchente
A equipe da Força Nacional do SUS realizou, ao menos, quatro ações de apoio à população pelotense. Com um time formado entre médicos, enfermeiros e técnicos em enfermagem, eram feitos atendimentos clínicos a pessoas que retornavam para casa após o recuo da água ou que, devido às condições de locomoção, não tinham como acessar os serviços de saúde. Na colônia Z3, em dois dias, 72 pessoas foram atendidas. Além da Força Nacional, equipes da Secretaria Municipal de Saúde, de saúde mental e redução de danos, faziam visitas na comunidade duas vezes por semana.
Um grupo de estudantes de psicologia da Universidade Anhanguera de Pelotas, supervisionado pela professora Cynthia Yurgel, coordenadora do curso, prestou atendimentos em abrigos de afetados pelas enchentes. A Secretaria Municipal de Saúde acolheu a equipe, formada por 12 voluntários, que era direcionada conforme a solicitação de auxílio dos responsáveis pelo abrigo. Os atendimentos ocorreram em dois abrigos, na Associação Atlética do Banco do Brasil e no Exército de Salvação. O acompanhamento era baseado em escuta ativa, mediação de conflitos entre os abrigados, distribuição de alimentos, visita aos leitos, recreação com crianças, entre outras ações. Essa assistência durou algumas semanas, até a chegada de psicólogos dos CAPS.
O que está sendo feito para proteger Pelotas
A Secretaria de Defesa Civil, coordenada por Milton Martins, possui 10 planos de contingência organizados para situações como frio, vendavais, granizo e enchentes. Segundo o Instituto Nacional De Meteorologia, em 2025 não haverá a efetivação do fenômeno El Niño no Brasil, então as chuvas se manterão dentro da média, sem previsão de inundações. Além disso, segundo o secretário Martins, há um conjunto de obras projetadas, aguardando recursos para ter início, que incluem a reestruturação e elevação dos diques, sistemas de casas de bomba e requalificação de estradas.
Onde encontrar apoio psicológico
Em Pelotas, pode-se encontrar atendimento psicológico gratuito em Unidades Básicas de Saúde (UBSs), nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e no Campus Saúde da Universidade Católica de Pelotas/UCPel, que fica na Av. Fernando Osório, 1586. No site da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, também é possível consultar os Caps disponíveis em todo o estado.


