Dormir é para os fortes

Por Marcelo Nascente

Mal abre os olhos e já tem que correr, porque o ônibus resolveu passar um minuto mais cedo, justamente no dia de chuva. Ao menos não veio lotado, embora o corredor esteja todo embarrado de solas que pisam chão de terra. E regado pelos guarda-chuvas tortos das pessoas comuns, vivendo vidas comuns.

(Foto: Divulgação)

(Foto: Divulgação)

Durante o trajeto, feito por um motorista sem habilidade com a embreagem, as pessoas dançam um estranho balé mudo, com os braços agitados, procurando alguma coisa em que se agarrar pra não cair. Dão passos temerosos e trombam uns com os outros, em meio a uma mistura de cheiros, histórias tristes e janelas fechadas.

Descem em algum lugar nem tão perto de onde precisam estar em três minutos, tentando se recompor e fazer uma cara de tudo bem comigo, pessoal. E até o final do dia ficará exposto a toda sorte de humores e atitudes.

E as horas vão se arrastar. Pessoas-lesmas vão se arrastar.  Pegajosas, por baixo das marquises carcomidas no centro fétido da cidade. O  mesmo centro que fica lindo, em papel couchê brilhoso. Mas no dia a dia a cidade não é percebido. É só cenário por onde desfilam mortos-vivos, cachorros e estupidez administrativa.

E os motores funcionam alucinadamente. Os martelos nas obras, as buzinas, sirenes, latidos, telefones e gritos; todos unidos, formando o habitat de desesperados, cancerosos de alma e toda espécie de paranoia.

A medalha de sobrevivente do dia. Faltam poucas horas. Leões, cobras, sapos. Uns mortos, uns engolidos. Hora de voltar pra casa e perceber que não tem tempo e tem mais coisas a fazer do que imaginava.

A emoção precisa durar segundos. O cansaço, a tristeza, a alegria. Tudo jogado atrás da porta do banheiro, junto com a roupa suja. Porque o corpo precisa fazer um último esforço, de chegar até a cama. E vai ter que fazer isso sozinho, porque a cabeça já entrou em stand by desde o meio do banho.

A televisão ficou ligada, derramando sangue e podridão, iluminados por modernos leds. A chuva parou e tem churrasco no vizinho. Cinco bilhões de decibéis de puro lixo musical. Mas só o corpo está ali. O resto volta em algumas horas. Foi passear. Porque dormir é para os fortes…

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