A nobre arte

 

por Vinicius P. Colares

Em toda prática esportiva – enquanto espetáculo – existe uma motivação intrínseca por parte do espectador. Na maioria dos casos o páthos que atinge o fã de um esporte tem raízes sociológicas mais profundas do que conseguimos imaginar.

O football (futebol americano), por exemplo. É paixão nacional dos Estados Unidos. Uma equipe A é responsável por conquistar o território de uma equipe B, avançando com o uso de força, habilidade individual (skills) e de táticas que foram treinadas e passadas por seus comandantes (existindo um comandante principal e outros especialistas em ataque, defesa, etc.). É evidente – inconscientemente ou não – o amor do norte-americano por esse simulacro da guerra.

O boxe vai mais longe. Se o futebol americano imita o campo de batalha, o boxe simula o duelo corpo a corpo. É o uso da técnica e do treinamento contra o adversário – e não o inimigo. O sucesso que o boxe fez durante boa parte do século XX, o levou aos olhos de artistas e intelectuais. Bertold Brecht, Norman Mailer e Jorge Luis Borges viram a sensibilidade do esporte. Era assim que o boxe passava a ser, mais do que nunca, considerado como a nobre arte.

A nobre sétima arte

O cinema também tornou-se grande durante a metade do século XX, período em que o boxe estava alcançando o seu auge. Impossível que um conseguisse esquivar-se do outro. Alfred Hitchcock, por exemplo, não escapou. Em 1927 lançou um filme chamado Ringue (Ring), considerado até hoje um dos seus melhores filmes mudos.

O Invencível (The Champion), de 1949, é outro exemplo. O ainda jovem Kirk Douglas vive um boxeador em um drama que traz como marca principal a discussão sobre a ambição humana. Marcado Pela Sarjeta (Somebody Up There Likes Me) também é inspirado pela nobre arte. O filme de 1956 traz Paul Newman e Steve McQueen no elenco e tem o roteiro inspirado na vida do pugilista Rocky Graziano.

Improvável não pensar em Martin Scorsese e seu Touro Indomável (Raging Bull), de 1980. Jake LaMotta, vivido por Robert De Niro, é um dos grandes personagens da filmografia de Scorsese. Assim como, mais recentemente, A Menina de Ouro (Million Dollar Baby) marcou a carreira do já lendário Clint Eastwood.

Robert De Niro é Jake LaMotta em Touro Indomável (imagem: divulgação)

Robert De Niro é Jake LaMotta em Touro Indomável (imagem: divulgação)

Assim vão surgindo (e ainda surgem) outros títulos que marcam “grandes produções” – para as suas épocas – e que veem no boxe alusões e reflexos do cotidiano. Mas foi na década de 1970, na Filadélfia, que nasceu o maior clássico da história desse subgênero.

Rocky: um personagem definitivo

Sylvester Stallone é o responsável por dar vida ao seu “amigo imaginário”, Rocky Balboa. Com certo preconceito em relação aos sete filmes da franquia, alguns desprezam o Garanhão Italiano sem nem conhece-lo. Fazem mal. Rocky (o filme de 1976) é um dos grandes do cinema. Rir de sua participação nos Óscares – venceu melhor filme e melhor diretor – é não entender sua força. Rocky é um dos filmes que melhor encarna o que é o cidadão “médio” e quem é seu melhor amigo: a solidão.

Definir a atuação de Sylvester Stallone como “comum” não está de todo errado. Ele tem de ser comum, assim como Balboa é. Mas foi o mesmo Stallone o responsável por ter a sensibilidade de mostrar um homem que ri do próprio destino enquanto tenta desesperadamente muda-lo. Em um ano de Taxi Driver, o maior solitário do mundo era Rocky Balboa e não Travis Brickle.

É errado, porém, esperar a mesma força de Rocky nos outros seis filmes da franquia. Nenhum deles encontra a realidade do retrato da Filadélfia que Balboa pinta. Aliás, nenhum deles encontrava – no passado mesmo – se considerarmos o surpreendente Creed (Nascido para lutar) como uma extensão da história escrita por Stallone.

O boxe vive (?)

Junto com uma queda considerável de público nas últimas duas décadas, o boxe, defendem especialistas, não morrerá jamais. É (em relação a outros combates corpo a corpo) uma arte. E a boa arte não perde a força com o passar do tempo. No máximo, reinventa-se.

No cinema o boxe continua sendo lembrado. No início de 2015 dois grandes lançamentos eram esperados: Southpaw (Nocaute) de Antoine Fuqua, e Creed (Nascido para lutar) de Ryan Coogler. O primeiro chamava atenção por trazer um ator da potência de Jake Gyllenhaal no papel principal, o segundo ia contar a história de vida do filho de Apollo Creed e trazer de volta as telas Rocky Balboa.

Sylvester Stallone volta a ser Rocky em Creed (imagem: divulgação)

Sylvester Stallone volta a ser Rocky em Creed (imagem: divulgação)

A crítica esperava muito do primeiro filme e pouco do segundo. Acabou surpreendendo-se com os dois: Southpaw negativamente e Creed positivamente. A atuação de Gyllenhaal não é forte o suficiente para salvar um roteiro comum. Já o eternamente criticado Stallone, voltou às indicações de grandes prêmios – 29 anos depois, o maior gap da história dos Óscares. Venceu o Globo de Ouro e concorre ao Oscar de melhor ator coadjuvante.

No fim de sua vida, Stallone continua sendo Rocky Balboa. Apanhando de críticos durante todos os rounds de sua duvidosa filmografia, Sylvester Stallone ressurge nos últimos assaltos de sua vida para mostrar a força que sempre teve. O boxe continua sendo a mais fina das relíquias para o cinema. É, afinal, a arte alimentando-se da arte.

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