Tempo limpo: a esperança após a tempestade

A história de Fábio Souza e sua família que lutaram contra a diabetes, a pandemia, a enchente e hoje podem contar sobre o que passaram construindo um presente de sonhos e possibilidades

Por Júlio Gemiaki

Homem (seu Fábio) com cerca de 50 anos no pátio de sua casa, ele usa camiseta verde com algumas manchas e está com expressão concentrada, tem cabelos curtos e grisalhos e a pele bronzeada. Ao fundo estão o varal, com muitas roupas estendidas, e a janela de sua casa.

Fábio Souza em sua casa, um ano após as enchentes. Foto: Pedro Vargas.

Valor material é algo subjetivo e próprio de cada um. Para uma criança que só tem uma bola para jogar futebol, este objeto tem valor inestimável, enquanto para um adulto que quebra um copo de vidro velho, ele pode substituí-lo por qualquer outro. No caso do nosso projeto – Artefatos recuperados, memórias recontadas: histórias de pessoas atingidas pela enchente em Pelotas -, objetos que não nos pertencem e que provavelmente nunca vamos fazer uso, tornam-se as coisas mais importantes do mundo no momento em que produzimos uma reportagem. Tudo isso porque, através de eletrodomésticos recondicionados, podemos chegar até pessoas que nos contam histórias de importância incalculável. 

Uma dessas pessoas foi Fábio Luís Xavier Souza, que teve uma máquina de lavar consertada pelo “Reconstruindo Lares: Projeto de Extensão para a Manutenção de Eletrodomésticos em Famílias Afetadas por Enchentes”, idealizado pelo curso das Engenharias da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Fábio foi frentista em um posto de gasolina por boa parte de sua vida. Além disso, também trabalhou no setor de vendas empresariais na região Sul do estado. Hoje em dia, ele vive com sua família no bairro Laranjal, em Pelotas, num local que foi atingido fortemente pelas enchentes de maio de 2024. Junto dele, vivem sua esposa Bianca Oliveira dos Santos (empregada doméstica), seu filho João Lucas dos Santos Souza, um estudante de dez anos, e seu enteado João Vitor dos Santos Fernandes, que foi aprovado na metade do ano para cursar Administração na UFPel.

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Mas é só ver o título e a linha de apoio desta reportagem que fica claro que a vida tranquila que a família leva hoje é uma fase de calmaria depois de uma grande tempestade. Seu Fábio não consegue mais trabalhar e está aposentado devido a diabetes, doença que é cruel em alguns casos. Nesta ocasião, a enfermidade levou o pé de um homem e ainda dificulta sua plena recuperação, embora já esteja em um estágio mais controlado. Além disso, a condição começou a se manifestar durante a pandemia, mesmo período em que sua mãe, que havia sido internada com câncer, contraiu Covid-19 e veio a falecer. Logo em seguida, como se já não bastasse, uma catástrofe climática inundou praticamente todo o Rio Grande do Sul, afetando diretamente a residência em que os protagonistas desta história moram. 

A Tempestade

Bem como a trajetória até aqui, a vida da família durante a enchente foi complicada. Tanto a casa onde residem quanto a da enteada (em outra parte da quadra) foram atingidas. “Estávamos lá na casa da minha enteada e vimos a água chegando na rua, então tomamos a decisão de ir lá pra casa. Não deu nem meia hora e a água já estava aqui na frente também”, relata Fábio sobre o dia em que deixaram as moradias para trás. Desesperada, colocando o que dava no carro, desde pertences, pessoas e até cachorros,  a família conseguiu refúgio no apartamento de um parente, localizado no bairro Santa Terezinha, seguro durante a subida das águas. Entretanto, o imóvel era mobiliado, ou seja, não havia espaço suficiente para mobília pessoal dos que estavam se mudando, mesmo com um caminhão já organizado. Logo, o que ficou no Laranjal foi quase que inteiramente perdido.

Nesse cenário, todos começavam uma nova vida temporária no apartamento que seria sua casa pelos próximos 35 dias. Não havia pátio para os cachorros circularem e brincarem, o que condicionava a rotina deles para levá-los para passear frequentemente. Além disso, a máquina de lavar ficou à mercê da enchente, o que tornava necessário a requisição do serviço de lavanderias. Criar uma normalidade em torno de tudo isso é tarefa muito difícil, mas a família se manteve unida e lutou contra toda essa situação, o que os fortaleceu para enfrentar as coisas quando a água baixou. Neste momento, a organização para recondicionar a casa já havia começado, o mais cedo possível, pois o medo era grande de que voltassem e encontrassem a casa vazia. 

A imagem mostra a fachada da casa de Fábio, com o portão aberto permitindo a vista do pátio de terra e de algumas plantas espalhadas por ele. À frente da casa estão uma pilha de tijolos e um Fiat Siena estacionado logo abaixo do número 2075 que marca o endereço.

Entrada da casa no bairro Laranjal. Foto: Pedro Vargas.

Entretanto, não foi isso o que encontraram. O local não foi vandalizado ou roubado, a casa estava lá com todas as marcas que a subida da Lagoa dos Patos deixou. Fábio e João Vitor comentam que foram 10 dias de trabalho para recondicionar a morada e fazer com que ela parecesse novamente um lar. Durante a limpeza, o aparecimento de vários ratos e uma cobra foram empecilhos que atrasaram um pouco mais a reconstrução da moradia. Além disso, um problema maior existia. Segundo o morador, a água do Laranjal encontrou o esgoto na rua e invadiu o local: “Tinha muito cheiro de esgoto. Ele [o esgoto] desemboca no canal aqui do lado, né? Aí encheu e entrou aqui em casa, a casa estava podre”.

Este último relato escancara um problema de anos no município de Pelotas, que é bastante evidente também no bairro Laranjal. De acordo com dados da Prefeitura de Pelotas, a cidade está sob a ação do Marco Regulatório do Saneamento, programa do Governo Federal que estipula que alguns municípios devem alcançar a marca de 90% do esgoto tratado até 2033. No entanto, atualmente, a Cidade do Doce só cobre 40% do esgoto que despeja no ambiente. 

A chuva passa mas as nuvens seguem no céu

A exposição prolongada à água da enchente danificou a parte elétrica da casa, o piso (que teve que ser refeito devido ao mofo), os móveis e o jardim, que costumava ser um ambiente cheio de hortaliças, árvores frutíferas e ervas de chá. Para recuperar a estrutura da morada, estima-se que foi gasto em torno de R$8.000,00, sendo que R$7.500,00 vieram dos auxílios fomentados pelo Governo Federal (R$5.000,00) e pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul (R$2.500,00). Além disso, a família contou com a doação de roupas e produtos de limpeza organizados e entregues pela Prefeitura no local. 

Dentre as coisas mais custosas para reaver estavam os eletrodomésticos. Uma geladeira da casa da enteada foi consertada pelo próprio Fábio, que a desmontou, limpou, a remontou e esperou secar para ligar novamente. Esta funciona até hoje e foi um custo a menos. Além dela, a máquina de lavar foi recondicionada pelo projeto da UFPel, e essa também está até hoje dando conta das demandas da família. No entanto, no período em que estavam voltando para casa, fizeram a compra de um tanquinho para darem seguimento aos serviços do dia a dia, já que substituir a máquina por uma outra seria muito custoso. 

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Além disso, mais um pensamento que aliviava o sentimento da família é que Bianca, esposa de Fábio, poderia voltar a trabalhar, o que não fora possível durante um bom tempo. Ela era empregada doméstica em uma casa próxima a dela e que também foi atingida pela água. Seu trabalho foi completamente impossibilitado durante o período das enchentes, e poder voltar a exercê-lo foi mais uma preocupação que cessou, trazendo mais segurança e dignidade à família

Raios de sol surgem no horizonte

No final, o sol foi capaz de ir se mostrando dentro da história, timidamente no começo, mas constantemente brilhando mais. Hoje em dia, mesmo após passar por uma sequência de eventos que poderia muito bem ser uma obra de William Shakespeare, tamanhas as dificuldades enfrentadas, seu Fábio e sua família seguem firmes e procurando melhorar de vida. O jardim ainda não tem o mesmo brilho de antes, mas está em reconstrução, já foram plantadas algumas árvores, plantas e ervas de chá que são muito consumidos pelos moradores. Tudo isso dá muita vida ao local. 

E não se pode esquecer, João Vitor, o enteado, que mora com seu Fábio, acabou de ser aprovado em Administração na UFPel. Para a família, ele é a fonte de inspiração aos irmãos (tanto ao mais novo, quanto à mais velha), para que cursem o ensino superior. Inclusive, a família, que não teve muita prospecção nos estudos, faz muita questão de que seus filhos estudem e se formem na faculdade. O personagem principal, Fábio Souza, enfatiza ao falar em frente a João: “Eu só vou embora daqui quando eles se formarem”, o que mostra o quão forte é seu desejo que os filhos melhorem de vida por meio do estudo.

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Esta história só foi possível de ser contada porque alguém sofreu nas enchentes, porque sua máquina de lavar estragou durante este período tão difícil, mas principalmente, porque existiram pessoas que trabalhavam para distribuir doações e para consertar eletrodomésticos em verdadeiros gestos de humanidade. A lição maior é que é necessário ter consciência sobre o meio ambiente, respeitar o local em que vivemos e cobrar das autoridades que medidas de prevenção sejam aplicadas e tenham a devida manutenção. Em uma última palavra à reportagem, o protagonista desta narrativa esperançosamente deseja: “Que seja o último susto!”.

 

Fotos: Pedro Vargas

Apuração: Júlio Gemiaki, Felipe Adam e Lara Nasi

Redação: Júlio Gemiaki

Edição: Felipe Adam

 

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