Museu do Doce celebra patrimônio imaterial

Trabalho e vida social de Pelotas são marcados pela tradição doceira que é resgatada todos os dias pela instituição     

Por Isabella Barcellos     

        Museu foi criado em parceria do Instituto de Ciências Humanas com Bacharelado em Museologia da UFPel em 2011            Fotos: Divulgação

 

Em meio à agitação cotidiana, entre as idas e vindas nos centros urbanos, é fácil esquecer-se do cenário marcado pela história. A Praça Coronel Pedro Osório, ponto central de Pelotas, é cercada por casarões históricos herdados do século XIX. E um deles é o ponto central de várias reportagens que o site Arte no Sul publicará a partir de agora sobre as tradições doceiras de Pelotas. O Museu do Doce é sediado no casarão número 8, a “Casa do Conselheiro”, construída para servir de lar para a família de Francisco Antunes Maciel, e, hoje, restaurada, serve de abrigo para um acervo rico da história pelotense. Na Rua Félix da Cunha, ao redor da praça principal e ocupando uma das esquinas, encontram-se as instalações do Museu do Doce.

O Museu foi criado no ano de 2011, em parceria com o Instituto de Ciências Humanas e o Bacharelado em Museologia, ambos parte da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Seu acervo é composto por uma série de objetos que têm origem nas tradições doceiras de Pelotas e a região da antiga Pelotas, que estava integrada a outras cidades hoje emancipadas, ou seja, Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro Redondo e Turuçu. A instituição reúne peças que se relacionam direta ou indiretamente com essas tradições.

Arquitetura e decoração do prédio restaurado remete à época do início da tradição doceira

 

Todas os itens expostos pela instituição surgiram a partir de doações realizadas pela comunidade. Tendo em conta vários anos de registros, movimentações culturais, estudos de historiografia e conscientização, o local surgiu com a proposta de registrar a história das tradições doceiras de uma maneira interdisciplinar.

Outrora nascidos na elite, os saberes da tradição doceira transpassam a classe, a raça ou a escolaridade de quem as possui. Se a sede do Museu, a “Casa do Conselheiro”, por si mesma, consegue evocar as crenças e o senso estético da elite gaúcha no século XIX, as exposições apresentadas pela curadoria do museu enaltecem as transformações vividas pela cidade, população, economia e pelos próprios doces ao longo das décadas. E essa missão não é cumprida apenas através de atividades presenciais na sede da instituição. Os interessados em conhecer mais sobre o local podem visitar o site oficial e fazer um passeio virtual no espaço ou, até mesmo, fazer um login na conta do Museu do Doce no Instagram. O museu propriamente pode ser visitado na Praça Coronel Pedro Osório, Casarão 8 – Centro de Pelotas, de terça-feira a sábado, das 13h às 18h. Atualmente, não está aberto à visitação nos feriados e domingos.

Objetos remetem ao cotidiano econômico e social da região de Pelotas

O princípio da tradição

Não se pode falar da história do doce em Pelotas sem mencionar o ciclo do charque no extremo sul das terras gaúchas. Charque é o nome que se dá à carne bovina desidratada e salgada e sua produção foi responsável pelo desenvolvimento econômico da antiga Pelotas (que atualmente também contempla as cidades de Arroio do Padre, Morro Redondo, Turuçu e Capão do Leão). O núcleo charqueador surge a partir da combinação de privilégio geográfico (proximidade com a Lagoa dos Patos), cabeças de gado adquiridas a partir da colonização espanhola e a numerosa mão de obra escrava.

A migração de José Pinto Martins do Rio Grande do Norte para as margens do Arroio Pelotas, em 1780, foi a chave para o surgimento do primeiro núcleo saladeril local. A partir de intensa exploração dos recursos agropecuários e da mão de obra tanto escravizada quanto assalariada, a economia do charque passou a enriquecer famílias e deu-se início a uma nova elite. Décadas depois, em 1808, a chegada da família real portuguesa no Brasil iniciou as movimentações de imigrantes europeus por todo o território nacional, e, por consequência, também no sul do País.

Objetos estão relacionados ao dia a dia da fabricação de doces ao longo do tempo

Entre a planície e a Serra do Tapes, pode-se dizer que as tradições doceiras tiveram seu pontapé inicial. Os pilares desse patrimônio surgiram a partir da presença portuguesa e a vinda de famílias de imigrantes com diversas origens, que se utilizaram da horticultura e da fruticultura de suas propriedades para criar as primeiras receitas catalogadas por diversos pesquisadores. Era inicialmente algo requintado, para ser consumido em ocasiões especiais junto de uma mesa decorada com louças caras e pessoas reunidas.

Há muitas influências inter-relacionadas ao longo da história, desde os doces mais finos de mesa (mais urbanos, portugueses com provável trabalho de mão escrava) até os doces coloniais (mais rurais e fortemente influenciados pelos imigrantes franceses, alemães e outras possíveis influências culturais).

Com a decadência iminente do ciclo do charque, as atenções passaram a se voltar para a industrialização local e os doces em conserva tomam espaço enquanto protagonistas. Em seu texto “O Doce na Rua”, o professor Mário Osório Magalhães discorre sobre o assunto: “[Com] a superação dos saladeiros, no início do século, incrementou-se a industrialização, em nossa zona colonial, das frutas de clima temperado; utilizou-se então o pêssego (a fruta mais produzida) não só ao natural: também na forma de doce, de geleia, de conserva, de passa — sem dificuldades, pois já havia aqui, domesticamente, uma tradição doceira”.

A pesquisa contínua e a participação da comunidade levam à melhoria constante do acervo

A partir da modernização, os doces passam a ocupar cada vez mais o dia a dia das pessoas. As receitas passadas de geração para geração começaram a servir como ferramenta de empoderamento financeiro para mulheres e suas famílias. Vender doces era uma das poucas tarefas que podia ser guiada junto aos afazeres domésticos, graças à falta de acesso ao mercado de trabalho. Ingredientes como amêndoas, nozes, açúcar e ameixas eram garantidos nos conhecidos armazéns de secos e molhados enquanto as frutas eram encomendadas da colônia. Com o passar dos anos, a classe média local começou a exigir a presença de doces finos no cardápio de batizados, aniversários, casamentos e outros eventos diversos.

O que celebramos hoje

O maior símbolo de persistência da tradição doceira em Pelotas durante 23 anos consecutivos é a realização da Feira Nacional do Doce. Foi inicialmente organizada pela Prefeitura em 1986. As primeiras edições eram realizadas a cada dois anos, sem uma sede fixa. Atualmente, a organização e gestão do evento anual é liderada pela Câmara de Dirigentes Lojistas da cidade e, além de exaltar as tradições doceiras, tem como objetivo fortalecer o comércio local. A feira reúne comerciantes do setor têxtil, imobiliárias, livreiros, setores da agricultura familiar e artesãos.

Tradição doceira envolve série de objetos que vão desde  fabricação até consumo 

Segundo estudiosos do Curso Tecnólogo Superior em Hotelaria da UFPel, no artigo “A importância do evento Fenadoce para a cidade de Pelotas RS e a percepção dos visitantes sobre 20ª edição”, a sua realização é de suma importância para a economia local e possui grande aprovação de público: “Portanto, considerando o expressivo potencial desse evento, a partir de referenciais e pesquisa com os visitantes, acredita-se que a feira constitui-se em um instrumento de grande relevância para o turismo na cidade de Pelotas. Contudo, a cada edição da Fenadoce, deve-se apresentar novidades em doces e entretenimentos, além de adequações de acessibilidade e de estrutura, conforme o crescimento do público visitante e, por fim, que se finalizem as reformas antes das datas previstas de início de cada evento.”

Acervo está organizado de forma a dar visibilidade para várias etapas históricas

 

Museu do doce: Memórias, Sal e Açúcar

As iniciativas promovidas pela comunidade e pelo corpo de profissionais de pesquisa e educação demonstram cada vez mais a importância da cultura doceira. Contribuem para que a sua valorização como patrimônio imaterial seja cada vez mais do conhecimento de todos os pelotenses e de todo o Brasil.

Citando novamente as palavras de Mário Osório Magalhães: “Açúcar e sal não são, portanto, necessariamente excludentes: pelo contrário, foram complementares para o florescimento desta cidade gaúcha que desabrochou no século XIX. Uma cidade tão única, tão orgulhosa de si mesma a ponto de se autodenominar, ressaltando os conceitos de opulência e cultura, ‘Princesa do Sul’ e ‘Atenas Rio-Grandense’.”

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