Morte matada contada feito morte morrida: uma reflexão sobre o feminicídio na imprensa brasileira

Palestra realizada pelo curso de Jornalismo da UFPel contou com a presença da jornalista e escritora Niara de Oliveira, em um debate sobre o feminicídio e a forma problemática como esse crime é noticiado pela imprensa brasileira.

Por Julia Barcelos / Agência Em Pauta

Niara de Oliveira durante palestra sobre feminicídio na UFPel.
Foto: Julia Barcelos.

Na segunda-feira, 24, a palestra realizada pelo Curso de Jornalismo do Centro de Letras e Comunicação (CLC) da UFPel, no Campus Anglo, contou com a jornalista e escritora Niara de Oliveira, atual delegada regional de Pelotas no Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul (Sindjors), como ministradora.

Sendo uma das autoras do livro “Histórias de morte matada contadas feito morte morrida: a narrativa de feminicídios na imprensa brasileira”, lançado em 2021, Niara foi convidada para debater o tema e as problemáticas envolvendo a maneira como os veículos de comunicação nacionais noticiam crimes de ódio contra mulheres.

A autora introduz sua fala reafirmando o dever social dos jornalistas com a defesa dos direitos humanos, mas que apesar disso o jornalismo brasileiro vem desrespeitando as mulheres, principalmente ao narrar casos de feminicídio. A jornalista justifica a problemática: “É a última coisa que está se dizendo sobre aquela mulher e é quase sempre de forma desrespeitosa, quase sempre dizendo que essas mulheres são co-responsáveis pela violência que as matou”.

O debate foi conduzido a partir de informações apuradas pelas autoras, Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues, durante o processo de escrita do livro Histórias de morte matada contadas feito morte morrida. A ideia para a obra surgiu de uma comunidade virtual, na qual Niara, Vanessa e outros usuários discutiam e analisavam a forma como os feminicídios eram noticiados pelos veículos de comunicação brasileiros.

Apesar de não se tratar de uma produção estritamente acadêmica, o livro traz uma pesquisa intensa e dados relevantes sobre o cenário de feminicídio no Brasil. A apuração englobou os mais diversos veículos de comunicação, desde os grandes jornais até pequenos sites de notícias de cidades do interior, o que confirmou que a fórmula narrativa se repete, independente de região ou tamanho do veículo.

Pensando em tornar essa análise em algo mais sólido e duradouro, as duas jornalistas decidem transformar essa crítica em um livro. Segundo Niara, a dimensão do problema só foi percebida por elas ao longo da pesquisa, que revelou padrões antiéticos na cobertura de casos de feminicídio e violência contra mulheres.

“O recurso que usamos para trazer essa dimensão foi dispor de vários títulos em sequência, para mostrar o padrão”, explica a jornalista. Entre as características dos padrões encontrados pelas escritoras e citados durante a fala de Niara, estão: a romantização do feminicídio, o tratamento do crime de forma passional e o padrão na utilização da voz passiva ao noticiar esse tipo de caso.

Imagem de divulgação do livro de Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues. Foto/divulgação.

O uso da voz passiva impressionou as autoras de tal maneira, que tiveram de dedicar um capítulo inteiro da obra apenas para esse “fenômeno”. Para contextualizar, no jornalismo, aprendemos desde cedo a escrever de forma direta e simples, preferencialmente utilizando da voz ativa e orações na formação “sujeito, verbo, predicado” para melhor compreensão do público. No entanto, não é isso que vemos em casos de feminicídio. Niara revela que em quase todas as matérias que tratavam desse tipo de crime notava-se o uso da voz passiva. Dessa forma, o assassino era colocado como sujeito passivo da oração e quem recebia o destaque na frase era a vítima, como no exemplo “Mulher é morta a facadas pelo ex-marido”, ao invés de “Homem mata ex-esposa a facadas”.

 

Outro ponto levantado pelas autoras é o fato de que muitas vezes a especificação do crime, um feminicídio, era deixada para o final da matéria ou era omitida, dando lugar a informações pessoais da vítima ou narrativas que a culpabilizam. Inclusive, a palavra “suposto” era muito utilizada ao longo das matérias, juntamente da omissão do assassino. Também era comum usar o ciúmes ou uma suposta traição como justificativa para o assassinato. Ainda, as autoras destacam a escolha das imagens das notícias que, em grande parte, são fotos das redes sociais das mulheres assassinadas, em momentos de descontração ou sensuais. Novamente gerando uma sensação de inversão de papéis, como se a vida íntima, o ofício ou as vestimentas da vítima justificassem o crime.

 

O jornalismo está longe de ser imparcial, uma vez que este nem é nosso objetivo. A imparcialidade já está presente nas palavras que usamos ao narrar um fato, já que essas são escolhas dos jornalistas. Porém, como afirma Niara: “Podemos escolher ser mais humanos, por nós mesmos e principalmente em respeito às pessoas que estão envolvidas no fato que estamos narrando”, o cuidado em tratar de notícias envolvendo tópicos sensíveis vêm da nossa ética e princípios profissionais e até pessoais.

 

Quanto mais o tempo passa, mais essa forma antiética como a imprensa trata o feminicídio se torna inaceitável, uma vez que, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de feminicídio. De acordo com dados do Monitor da Violência, foram 1,4 mil casos contabilizados apenas em 2023, ou seja, uma brasileira morria vítima de crime de ódio a cada 6 horas. Enquanto isso, além de terem suas vidas ceifadas, seus rostos eram estampados nas notícias, de formas desrespeitosas, que normalizam e atenuam o absurdo que é o feminicídio.

 

Apesar do contexto machista e misógino de nosso país influenciar esse tipo de discurso distorcido, o jornalismo deve se atentar ao reproduzir narrativas e fórmulas. Além do mais, o papel do jornalista é ser um crítico da sociedade, gerar a reflexão, trazer a atenção para causas importantes. “Nosso papel é mudar a sociedade para melhor, ser defensores dos direitos humanos. A função social do jornalista não é reproduzir o status quo, o machismo, a misoginia, o racismo”, afirma Niara.

 

Debates como esse, realizado na noite de segunda-feira, são extremamente importantes para a reflexão sobre as formas de fazer jornalismo, especialmente em ambientes universitários, que formarão as próximas gerações de profissionais. A palestrante afirma que esse era exatamente o objetivo do livro, entrar nas faculdades de jornalismo. “Tentar mudar a cabeça e a visão de mundo que eles entrem para redação e sejam moldados, fazer eles verem isso criticamente. Repensarem essa fórmula absurda de redação de feminicídio que não existe, não é estudada, nem ensinada em nenhuma faculdade, mas é reproduzida cega e passivamente”, explica a autora.

 

Esperamos que esses descasos da imprensa brasileira na cobertura de casos de feminicídio sejam reconhecidos e revistos o quanto antes. Não deveria haver espaço para reprodução de preconceitos, violência e desrespeito nessa área tão fundamental para a manutenção dos direitos humanos. “Eu já estou exausta de ler notícias de feminicídio na voz passiva… Não aguento mais feminicídios, mas ler eles na voz passiva é muito desanimador, porque não é possível que diante de um corpo, já com um assassino, se pense que a frase ‘Mulher é encontrada morta’ é o resumo da notícia”, Niara finaliza sua fala.

 

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