Ficar é um ato de Resistência
Márcia Consuelo Kraemer não moraria em outro lugar que não na sua casa do Laranjal – mesmo depois das enchentes de 2024
Por Arthur Rezer
A água
Na primeira semana de maio de 2024, começava a maior enchente que já afetou o estado do Rio Grande do Sul. Com o Canal São Gonçalo chegando a um nível de 3,06 metros e a Lagoa dos Patos ultrapassando 2,22m, a água invadiu a cidade de Pelotas sem dó nem pudor. Portas arrombadas, pisos arrancados, móveis carregados…
A necessidade foi a evacuação de todas as casas afetadas, deixando pertences para trás: móveis, memórias, valores… todos os bens que não se pudesse carregar. A pia, o fogão, máquina de lavar, churrasqueira, geladeira, e diversos móveis de madeira da casa da Dona Márcia Consuelo Kraemer foram avariados com as águas. A marca da enchente chegou a três palmos do chão. Embora Pelotas tenha contado com melhor preparo que outras cidades do estado, os impactos com que Márcia lida até hoje são irreparáveis.

Márcia Consuelo mostra que é seu dever, a cada passo que dá em sua casa no Laranjal, restaurar a forma que ela tinha antes das enchentes. Ilustração: Ana Alice Winter.
O seu genro é da Marinha, e recebeu juízos de que o canal vinha forte. Foi ele quem avisou com antecedência para que deixasse a residência antes que a água subisse. O genro e a filha de Márcia Consuelo moram no condomínio Alphaville da cidade, que se situa longe da água e não foi atingido. Ela pegou os seus três cachorros, fez as malas e foi.
Por três meses, a senhora morou com os dois.
A água da praia do Laranjal subiu muito rápido. Em cerca de 20 dias, trechos da Avenida Antônio Augusto de Assunção – a principal via, localizada junto à orla – já ultrapassavam a altura dos joelhos dos moradores. O trânsito de veículos estava impedido. A partir de 10 de maio, a faixa de areia já estava parcialmente submersa.
Na casa de Márcia Consuelo, como em tantas outras, a água invadiu com tudo.

A água subiu cerca de 3 palmos do chão, cobrindo os joelhos da dona da casa. Ainda assim, ela não cederia. Foto: Ridley Madrid.
Sem piedade, o piso da sala de entrada foi completamente avariado. O laminado descolou do chão, e o que não foi arrancado pela enchente ficou apodrecido, enquanto o rodapé de quase todos os cômodos foi arruinado. Os móveis da cozinha e da sala foram avariados, e atrás do sofá, Márcia Consuelo constatou uma infiltração – a qual ela mesma teve de resolver.
Levou tempo até que a casa fosse acessível novamente. A senhora conta que havia um “herói da praia”, como chamou Anderson “Típio” Luís Rocha Souza, morador do Laranjal dono de um barco, que se dispunha a todos que necessitavam auxílio: para transportar moradores enclausurados, ou aqueles que desejavam entrar em suas casas alagadas, para suporte com resgate de bichos de estimação, de itens deixados para trás… Foi assim que Márcia Consuelo alcançava a sua casa.
Todos os dias, entrava com galochas e luvas impermeáveis para remover dejetos, detritos e até animais mortos: “eu tive passarinho, peixe morto dentro de casa, um horror de cheiro […] eu vinha todos os dias aqui de bota e luva naquela água contaminada, fedorenta”. Foi ela sozinha quem resolveu todos os problemas dentro da casa, durante e após as enchentes.

Márcia Consuelo colocou sacos de areia na frente da casa. Embora não impedisse a água, ajudava com que a sujeira não avançasse. Foto/Reprodução: Márcia Consuelo Kraemer.
Os guarda-roupas que tinha no seu quarto e no quarto da filha foram inteiramente deteriorados – ela teve que se desfazer de ambos. A edícula, sua casinha nos fundos do terreno, tinha diversos móveis e utensílios, como pia, fogão, churrasqueira, e diversos armários: Todos foram perdidos, e o que não foi está atualmente com a madeira inchada e danificada. Lá atrás era onde mantinha sua lavanderia, com a máquina de lavar: outro móvel prejudicado.

O Projeto das engenharias da UFPel foi o impulso que muitas pessoas precisavam para recuperar o fôlego e perceber que é possível recomeçar. Foto: Ridley Madrid.
No entanto, esta máquina pôde ser restaurada graças à iniciativa ‘Reconstruindo Lares’, o projeto dos cursos de engenharias da UFPel – Universidade Federal de Pelotas, cujas ações auxiliaram diversos moradores do bairro Laranjal após as enchentes. A vida nunca voltou à normalidade para essas pessoas, porém ter esse auxílio funciona, de alguma forma, como um primeiro passo para recuperar o que um dia já tiveram – um mínimo de conforto em meio à adversidade.
Quem é Márcia Consuelo?
Nascida entre seis irmãs e dois irmãos, Márcia Consuelo Kraemer é a segunda mais nova, natural de Giruá, no Norte do Rio Grande do Sul. A família é descendente de austríacos, e hoje em dia vive em todos os cantos: ela conta que duas irmãs estão em Montenegro, duas em Maceió, tem uma em São Paulo, e outra continua em Giruá. Tentam se ver uma vez, pelo menos, todos os anos. Márcia Consuelo também conta que os dois irmãos faleceram cedo. E então, aqui encontra-se ela, morando em Pelotas desde 1978.

Sempre na companhia de seus cachorros, Márcia nunca sonhou em sair do seu lar. “Para morar em Pelotas, só o Laranjal, né?” Foto: Ridley Madrid.
São quase 50 anos na cidade, e 36 desses são na sua casa do Laranjal. Nunca pensou em se mudar, “não, o melhor lugar do mundo é o Laranjal”. Já foi casada, mas isso não lhe importa mais. Criou a filha, Ândrea, sozinha, hoje já crescida e bem-sucedida, com dois lindos filhos.
Márcia Consuelo se formou na Universidade Católica de Pelotas – UCPel, em Comunicação Social, e na Federal – UFPel, em Educação Física, respectivamente. Brilhante como é, passou num concurso para servidora da Caixa Econômica Estadual – no entanto, a Caixa fechou em 1998 –, e, a partir disso, seguiu em outros órgãos, como na Delegacia de Polícia Regional – DPR, no Instituto Geral de Perícias RS – IGP, na 3ª Coordenadoria Regional de Saúde – CRS-SUS. Hoje em dia é servidora aposentada, mas desde sempre teve sua mão envolvida na política. Ativista e lutadora, sempre investiu nas causas que julgasse certas, tanto que foi uma das fundadoras da AMPARHO em Pelotas – A Associação de Amigos, Mães e Pais de Autistas e Relacionados com Enfoque Holístico.
Na sua rua, Márcia Consuelo conta que havia um forte senso de comunidade. Haviam festas, conversas, reuniões, muita amizade com seus vizinhos. Mas nos últimos anos, ela queixa-se que isso está mudando. Ela conta que já a pandemia mudou muito a situação pela área, então imagina-se como as enchentes forneceram um abalo ainda mais radical. Grande parte do pessoal foi embora.
A vizinhança nova já não é mais o que era. O jardim que há ao lado da Igreja na rua, com altas árvores, uma fonte esculpida, pinturas nos muros, hoje já é visto e visitado por poucos. Enquanto, no passado, ela investia seus cuidados junto com a comunidade da rua, hoje… a situação é diferente. Já não acontecem mais os mesmos encontros ali, e, aos poucos, o cuidado vai se dissipando.
Ainda assim, Márcia Consuelo leva sua vida leve e feliz. Cuidando do Beto, da Floca e da Lola, os seus três cachorrinhos. Ela conta que “não tem como ficar parada aqui no Laranjal”. Mesmo que não tivessem as reformas a serem feitas, Márcia se ocupa com seu ateliê de costura. Lá atrás, na edícula, junto com a máquina de lavar, ela produz suas próprias costuras, com direito a todo tipo de formas, cores e materiais.

O seu passatempo de hoje é a alegria de alguém amanhã: As produções de Márcia Consuelo são para doações, sem geração de qualquer lucro. Foto: Ridley Madrid.
Com seus hobbies e seus cachorros, sua casa e sua inquietude, Consuelo nunca fica entediada. Sua vida é mais do que feliz aqui.
Reconstruindo
Mas como nem tudo são flores, ainda há de se cuidar das avarias da casa.
“É grana que até hoje tu não recuperas” é o que Márcia Consuelo diz, desolada, quando pensa em tudo que já perdeu. Apesar de ter recebido o auxílio emergencial do governo, de R$ 5 mil, é difícil dizer que foi suficiente. Os móveis mofados, os colchões avariados, a tintura removida… O prejuízo na casa foi tão grande que era de se pensar se voltava.
Mas ela não desistiu; “Eu me reapaixonei”.
Com muito investimento e limpeza, Márcia Consuelo tirou muito entulho da casa. “Eu comecei a morar com ela limpa em setembro”, conta a moradora, mas foi com muito trabalho duro. Agora, depois que a água passou, que o cheiro sumiu e que a sujeira foi resolvida, infelizmente, não fica mais fácil.
Os móveis da cozinha foram todos danificados, inclusive o móvel da pia – feito sob medida pouco antes das águas –, e depois das enchentes, ela teve de substituir todos, comprando o que dava na internet. A geladeira – recuperada pelo projeto do curso de engenharias da Federal – é símbolo do que aconteceu. Embora pareça nova e funcional, foi bem prejudicada com as águas, e até perdeu sua pintura durante esses meses.
Ela se desfez de muita coisa: “há males que vêm para o bem” – ela ainda mantém um olhar positivo. Ao pôr itens para fora, ela também refletiu em como havia muito consumo, e muitas coisas das quais não precisava. “Tudo tu perdes, é impressionante. E se tu não perdes, tu pões fora”.
Embora a casa em si esteja inteira, Márcia Consuelo busca reconstruir o seu lar – e tem conseguido com muito sucesso.
Ela mesma que pinta a sua casa, investindo seu suor para recuperar a paz que tinha antes das enchentes, mesmo que não seja fácil. A reconstrução não é linear: A cada dia que chove, o medo volta. Márcia Consuelo conta que todos os moradores se assustam. Ela quer recolocar o laminado do cômodo de entrada, mas ainda tem medo se valerá a pena. “Não choveu agora em maio, mas sabe-se lá, não sei como é a previsão”.
Ainda assim, ela não desiste, e continua. O próximo passo é reconstruir seu balanço da frente, e depois, ver o que fazer a seguir. Mas uma coisa é certa: Márcia Consuelo e seus cachorros não vão a lugar algum.

