Entrevista: “A crítica literária tem valor em si mesma”
Por Monique Heemann
Autora do site Livros abertos, Camila von Holdefer busca o equilíbrio entre a crítica acadêmica e a jornalística
Num cenário como o atual, em que sete em cada dez brasileiros não leram um livro sequer no ano passado e em que, recentemente, a Jornada de Literatura de Passo Fundo é cancelada por falta de apoio, é que se destaca Camila von Holdefer, 27 anos, estudante da Unisinos. As críticas literárias publicadas no site Livros abertos destoam de quase tudo que se encontra online sobre livros: “Demonstrando uma consciência maníaca tanto de interior como do exterior, reconhecendo que às vezes não há filtro e que às vezes há uma muralha entre um e outro, o norueguês [Karl Ove Knausgård] parece ampliar o contraste entre a própria figura e o mundo”, escreve Camila sobre o livro Um outro amor.
Em abril deste ano, a estudante de filosofia iniciou, no mesmo site, a série – ainda em curso – Da crítica, em que aborda os desafios da crítica literária sob a perspectiva de críticos, jornalistas, editores e – como não poderia deixar de ser – a sua. Confira a entrevista com Camila.
Em uma entrevista, o cientista político português João Pereira Coutinho afirmou que temos que ser desviados, de alguma forma, de nosso curso natural para ir, então, em direção à literatura. Você concorda?
Não exatamente. O leitor procura alguma coisa fora da sua realidade imediata, é claro. Não se pode negar isso. Porém, se parece difícil determinar o que caracterizaria o suposto curso natural, é ainda mais desafiador tentar conceber a ideia de desvio. O desvio seria alguma situação imprevista, mas desagradável, que faz com que alguém se volte para questões mais profundas? O desvio seria o isolamento daquele que não se encaixa no contexto em que está inserido? Essa linha de raciocínio deixa subentendido que o leitor é o outsider, o deslocado, o introspectivo. Às vezes é, e em outras não.
A ideia de percurso natural pressupõe uma trajetória de vida ascendente e luminosa, quando, sob qualquer perspectiva que se olhe, não funciona assim. A estrada é cheia de buracos. Muitos caminhos, quer se sobressaia a calmaria, quer se sobressaia a dor, podem nos conduzir à literatura. Há a busca por um significado maior, por entretenimento, por escapismo, pelo confronto com a realidade, por respostas e por perguntas, por beleza, por emoção, por experiências distintas. É impossível definir o que move alguém em direção aos livros. É um anseio sempre difícil de isolar e nomear.
Em relação à filosofia, você disse que serve para melhorar seu entendimento da literatura, mas não sabe se trabalharia com ela, diretamente. Antes de optar por essa formação, foram deixados de lado os cursos jornalismo e letras. O que a filosofia oferece, e que possibilita uma relação mais próxima com a literatura, que esses outros cursos não ofereciam?
Os textos de filosofia exigem um leitor atento e comprometido. Como a maior parte deles busca desvendar uma pergunta ou se aproximar de uma resposta, a relação com a palavra escrita – que precisa desenrolar o argumento de forma coerente e convincente – é muito poderosa. É um dos pontos. Para além disso, não abriria mão do conhecimento de lógica que adquiri na filosofia. Há uma espécie de má fama em torno da lógica, como se suas preocupações centrais não combinassem com as ciências humanas nem com a arte em geral. É um erro grosseiro. De resto, muitas das perguntas e tentativas de respostas me interessam; filosofia da linguagem e filosofia da mente me interessam em particular.
É preciso considerar que há um forte diálogo interdisciplinar entre a teoria e a crítica literária e a filosofia. Gosto das intersecções e dos espaços em volta dessas intersecções.De mais a mais, algumas questões de personagens de ficção são profundamente filosóficas. E não só. Enredo, cenário, forma de abordar certos problemas, tudo pode apontar, na análise posterior à leitura,para uma investigação filosófica. Ou seja, é mais do que possível usar a filosofia na crítica de literatura – nesse caso específico, elas se confundem. E é possível à literatura absorver a filosofia em seu organismo. Tudo é poroso.
Assisti recentemente a uma palestra da filósofa inglesa Susan Haack – Haack é contra o fim do ensino da história da filosofia, graças ao panorama amplo que descortina, e é, de modo geral, contra a divisão do conhecimento em áreas mais ou menos estanques. Para ela, “a fragmentação é um desastre intelectual”. Susan defende a não especialização apesar do risco de inconsistência a que isso poderia levar, porque, segundo ela, “quanto mais ambicioso você é, maior é o risco que você assume”. Ou seja: quanto maior é a sua necessidade de conhecimento ou algo do tipo, maior é o campo em que você joga. Penso assim também.
Desde as primeiras experiências com livros, o que te fascinou? Qual a melhor sensação que a leitura é capaz de provocar?
Minha relação com a leitura foi mudando ao longo do tempo, como, acredito, acontece sobretudo com aqueles que entraram em contato com os livros muito cedo. Quando ouvimos histórias durante o processo de alfabetização, sentimos o prazer do contato, da atenção, da repetição – tudo aquilo que é capaz de fascinar uma criança pequena. Depois vem o entretenimento, a fascinação com o enredo, o gosto pelas aventuras e fantasias – o que é, talvez, um dos motivos pelos quais Castro Alves não faz muito sucesso entre os alunos em idade escolar.
Diria que, no começo, a melhor sensação que a literatura é capaz de provocar é a identificação estreita e imediata, aquela que se relaciona com certas características do personagem como com um espelho. É o início da vida de um leitor. Em seguida vem a empatia: o livro como espelho não daquilo que nos singulariza, mas daquilo que temos em comum. A diversidade de vozes, de experiências, de cenários e de contextos – que ainda assim expõe conflitos e emoções universais – é o mais interessante.
É possível perceber a opção por livros fora da lista dos mais vendidos nas críticas disponíveis no Livros abertos. No entanto, mesmo com a opção por um determinado grupo (aqueles fora do circuito comercial), restam infinitas possibilidades de leituras. Como é feita a escolha?
Difícil dizer. No geral, parto de um equilíbrio entre livros que imagino (e aqui já entramos um tantinho no terreno da especulação) que despertarão pouca atenção e livros que são tão importantes que não é possível fingir que não estão circulando. Graça infinita, lançado no Brasil quase duas décadas depois da publicação original, se encaixa no último caso – ignorar a tradução de Caetano Galindo seria um erro grave.
De resto, é uma mistura de intuição e uma fuga, tanto quanto possível, daquilo que os outros espaços têm publicado insistentemente. Jamais resenho livros esgotados ou estrangeiros. Resenho o que o público é capaz de encontrar com facilidade por aqui. Ainda considero um elitismo inaceitável, em um país onde há poucos leitores e onde as listas de mais vendidos podem deixar alguns de nós envergonhados, resenhar um livro que não está disponível aqui. Não faço isso e não vou fazer. Também não me pauto por nenhum incentivo: não lanço e não participo de campanha. Tento me manter o mais independente e livre possível. Não me comprometo. Acho que é o principal: não me comprometo.
Depois de escrita, como funciona a edição da crítica feita antes da publicação? Quais são os critérios para que uma análise vá “ao ar”?
Preciso me sentir satisfeita com o resultado final, o que depende muito do livro e, consequentemente, daquilo que fui capaz de extrair dele. Não tem mistério. Pode parecer um pouco triste o que vou dizer, mas sempre escrevo como se escrevesse para um veículo reconhecido, um jornal ou revista, digamos assim. Não significa que considere um site um espaço menor. Ao contrário – por isso mesmo que o conteúdo oferecido não pode ser inferior ao de uma publicação como essas. Não trato o site como um diário. Não trato o site como um caderno de notas desencontradas de leitura.
Você afirmou, em entrevista ao site da Unisinos, que seu público é composto, em geral, por pessoas mais velhas. O grande mérito da internet (e dos blogs e canais literários), porém, é aproximar a literatura dos jovens. Se existe, qual a contradição?
Cada site, blog e canal tem seu público. Alguns são voltados à literatura young adult, com sagas e distopias e outros livros queridos pelos adolescentes, e outros à literatura adulta. (Sei, no entanto, que essa divisão é menos estanque do que parece.) O mérito da internet é aproximar a literatura dos jovens, sem dúvida, mas não é o único mérito. A internet pode aproximar a leitura de qualquer pessoa. Qualquer um pode procurar por aquilo que o interessa. No meu caso, não escrevo sobre aquilo que se convencionou chamar de literatura YA. Embora deva haver alguns adolescentes entre meus leitores, escrevo para adultos. Se tem mais de dezoito anos, já considero adulto.
Como é possível fugir da mediocridade e se destacar num meio como a internet, onde todos podem produzir conteúdo?
Vou usar uma dica do crítico José Castello: não se pode ter medo de errar. Assumir o risco é um dos pontos principais, e está diretamente ligado a outros três: (a) encontrar e sustentar a própria voz, de novo uma dica de Castello; (b) ter alguma ideia nova; (c) ter um bom repertório, um bom volume de leituras acumuladas, e não me refiro apenas à literatura.
Tudo me parece uniforme na internet, desesperadamente uniforme, da escolha do layout (o desenho de uma garota, normalmente lembrando uma aquarela) aos livros resenhados (pobre George Orwell) e mesmo à linguagem empregada (“este livro estava na minha lista há tempos”). Penso que traçar o próprio caminho é indispensável, uma vez que seguir uma estrada aberta não leva a um lugar novo. O bom é o que o observador atento pode aprender com os erros dos outros. Enfim, há muito espaço para se destacar justamente por isso – porque tudo é ridiculamente padronizado. Fugir do clichê já é um bom começo. E não é difícil.
Quais são os planos para o Livros abertos no futuro?
Não naufragar. Continuar seguindo uma rota à parte. Sentir as mudanças nos ventos, e ajustar as velas conforme a situação. Encontrar um cachalote albino, que possivelmente não pode ser capturado. Basicamente isso.
Você defende que a crítica literária tem valor em si mesma. Atualmente, qual é a sua relevância?
Pergunta difícil. É otimista demais acreditar que a crítica pode ver ressurgir a sua força, mesmo em um cenário tão desanimador? Talvez possa, talvez não. Um texto de crítica tem valor em si mesmo, claro — difícil é saber quantas pessoas (e em que medida) é capaz de atingir. Essa me parece a questão central.
Uma das alternativas propostas à crítica na internet em um dos textos da série Da crítica é que ela busque o meio-termo entre a crítica acadêmica, distante dos leitores, e a de jornal, cada vez menos aprofundada e mais dedicada apenas aos lançamentos. Como esse modelo de análise pode ajudar a formar novos leitores?
Gosto do meio-termo. O leitor médio é o grande alvo deste modelo, que agrega, em minha opinião, os pontos positivos da crítica acadêmica e da crítica jornalística. Da primeira, vêm os fundamentos teóricos indispensáveis. No entanto, o leitor médio não está habituado a certo jargão acadêmico. Não tem por que estar. Aí entra a linguagem mais simples da crítica de jornal e de revista. O texto se torna acessível, mas, ao mesmo tempo, não fica devendo na profundidade da análise.
Acredito que o modelo pode formar novos leitores na medida em que não é impenetrável como a crítica essencialmente acadêmica, e na medida em que pode mostrar, de forma acessível, onde estão as chaves interpretativas de determinada leitura. A sensação de desvendar um livro, ou de chegar perto disso — nunca o desvendaremos por completo, é claro —, é sempre boa.
Você disse que se vê, no futuro, como professora de literatura. Desde a educação primária e até mesmo na vida adulta, pouca importância é atribuída à leitura no Brasil. É possível mudar, dentro das salas de aula, essa situação?
Sou otimista. Creio que sim. Claro que nem todos os alunos que tiveram contato com a literatura vão se tornar bons leitores. Não funciona assim. No entanto, é importante criar ou manter o incentivo. No caso dos mais velhos, é urgente fugir do programa do vestibular. Já passou da hora de admitirmos que José de Alencar não é a melhor escolha para fazer com que um adolescente se interesse por livros. Ofereça ao adolescente um livro com o qual ele possa se identificar. Se tudo der certo, ele vai ansiar por repetir a experiência. Tragédia mesmo foi o cancelamento da Jornada de Literatura de Passo Fundo deste ano. É obviamente importante investir na formação de leitores. E estamos deixando isso de lado.