Aborto no Brasil: a clandestinidade que pode ceifar vidas

Por: Lunara Duarte

De acordo com a legislação brasileira vigente desde 1984, o aborto é considerado crime. O procedimento só pode ser realizado legalmente em casos extremos de risco à vida da mãe: gravidez resultante de estupro ou anencefalia fetal. A penalização da prática continua a ser questionada em razão do contingente de mulheres que recorrem a este recuso por vias clandestinas e perigosas.

Os números são alarmantes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 19 milhões de abortos são realizados de maneira insegura anualmente e a mortalidade materna se aproxima de 70 mil. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (ONU), leis restritivas contribuem para aumentar a mortalidade por abortos inseguros.

Além da possibilidade de falhas no uso do anticoncepcional, estudos revelam que o uso contínuo pode causar inúmeros efeitos colaterais. Este texto relata um caso de gravidez ectópica (nas trompas) em decorrência do uso de pílula do dia seguinte – quando o óvulo é fecundado mas a ação da pílula impede seu deslocamento para o útero.

O documentário O Aborto dos Outros, dirigido por Carla Gallo, expõe uma série de entrevistas em uma narrativa comovente das dores enfrentadas pelas abortantes. Adolescentes ou mulheres adultas, vítimas de estupro ou mulheres que decidiram dar fim à gestação por causa da pobreza, todas encaram a vergonha e o julgamento moral da sociedade. Os médicos são assertivos quanto à necessidade de reformulação do Código Penal nesse quesito para amenizar todo o constrangimento e riscos. “Aproximadamente 70 mil mulheres morrem por ano em função do abortamento inseguro. E 95% deles são feitos em países em desenvolvimento, pois neles há a manutenção de leis restritivas e proibitivas”, diz o ginecologista Jefferson Drezzett.

Cláudia (nome fictício), 60 anos, moradora de Pelotas, revelou a amarga experiência. A secretária tem uma filha adolescente e demonstra certo embaraço ao ser questionada sobre o assunto. Ela conta que tinha 30 anos quando fez o aborto, mas o fez porque estava em um relacionamento passageiro e desempregada. A pressão familiar também influenciou. “A criança não foi planejada. Eu estava desempregada e meus pais foram contrários. Não conseguiria sustentar a criança. Minha mãe estava com problemas de saúde e gastávamos muito. No fundo eu não queria [abortar], mas não tive escolha”, contou.

O fato de Cláudia ter o pai enfermeiro foi um facilitador. Ele aplicou uma injeção abortiva nela no segundo mês de gestação. Na ocasião, ela não estava fazendo uso do anticoncepcional e o paceiro se recusou a usar preservativo. “Me senti culpada por ter me descuidado”, afirmou. Apesar de tudo, é favorável à descriminalização do aborto pois considera que, quando feito na clandestinidade, gera danos à saúde da mulher. “Um aborto até o terceiro mês deveria ser controlado através da legislação.”

A dona de casa pelotense Elena Baldez, 27 anos, que está na sua segunda gestação, é reticente em relação à prática. Ela acha incorreto interromper a gravidez por mero descuido. Só considera que deve ser feito em casos de má-formação fetal. Porém, demonstra solidariedade com as abortantes, já que nem todas têm o amparo familiar como ela. “Sou contra o aborto, acho errado impedir alguém de viver, alguém que não pode se defender. Mas as mulheres que praticam têm os seus motivos. Não devem ser punidas tão severamente pela lei”, finalizou.

Já a estudante de Antropologia da UFPel, Amanda Oliveira (20 anos), é enfática no seu posicionamento. “Existem mulheres que não querem ter filhos. É simples. Não querem ser mães. E a escolha delas deve ser respeitada.” Como militante, Amanda contextualiza que a proibição do aborto é indissociável da opressão sexual sofrida por todas as mulheres. De acordo com ela, homens não podem decidir sobre aborto porque eles não engravidam. Para eles, ser pai não é tão trabalhoso, não requer tanta dedicação e abnegação quanto ser mãe. Toda a cobrança recai sobre as mulheres e elas é que devem ter autonomia reprodutiva.

Na América Latina, apenas Cuba, Porto Rico, Guiana e Uruguai permitem o aborto sem necessidade de justificativa. No resto do continente, a legislação varia de totalmente a parcialmente proibido. Estudos alegam a queda vertiginosa no número de mortes maternas nesses países já que a legalização vem aliada à implementação de políticas públicas. No Brasil, a laicidade do Estado tem sido questionada pelo movimento feminista, já que o aborto é discutido sob um viés estritamente moral e religioso. Enquanto isso, é cada vez mais difícil vislumbrar medidas verdadeiramente democráticas diante das manobras políticas restritivas impostas.

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