A Prova D’água: a Casa Reciclada nos Fundos do Laranjal
Conheça a história de Lizandra Cordeiro: uma casa reformada e um freezer recuperado pela UFPel após as enchentes de maio de 2024 no bairro Laranjal, em Pelotas – Rio Grande do Sul
Por Júlio Gemiaki
Em uma segunda-feira cinzenta e fria, cortesia do inverno pelotense, nossa equipe se juntava em frente à biblioteca do Campus Porto da UFPel. Éramos quatro pessoas usando roupas pretas, três alunos e uma professora. Tínhamos uma câmera, dois celulares e uma planilha de possíveis fontes. Um carro “ex-rebaixado” nos levaria ao bairro distante do centro, banhado pela lagoa doce, atrás do nosso objetivo: ir ao bairro Laranjal e encontrar alguém disposto a nos contar sua história durante a enchente
As duas e alguma coisa da tarde, partimos. A rota marcada no GPS guiaria as próximas três horas de nossas vidas e não sabíamos ao certo aonde iríamos parar. Não demorou muito e já estávamos batendo palmas na frente de um portão que seria nossa primeira parada, onde fomos atendidos somente pelos vira-latas que faziam a segurança da casa
Seguindo essa lógica, passamos por mais duas casas onde conversamos um pouco com os moradores e registramos alguns contatos, mas, infelizmente, não foi possível realizar entrevista com nenhum deles. E então mais um endereço e nada novamente, nem sinal de vida.
Foi quando a linha que mostrava o caminho através do Google Maps nos levou até a rua Esteio, nos fundos do Laranjal, na quadra mais remota que tínhamos visitado até então. Lá, repetimos o procedimento, batemos palmas em frente ao portão e instantâneamente fomos rodeados por cachorros. Uma voz falou pela janela, trocou poucas palavras e depois deu lugar para um corpo saindo pela porta.
Portas abertas para uma vida
Não demorou muito até confirmarmos que aquela era a pessoa que havia recebido um freezer consertado pelo projeto Reconstruindo Lares, da Universidade Federal de Pelotas. Lizandra de Ávila Cordeiro é moradora do “Laranjal – Fundos”; que é como chama carinhosamente a região onde está instalada. Acadêmica do curso de Turismo da UFPel e funcionária de uma academia, ela e seu filho Eduardo Cordeiro da Silva, de 12 anos, vivem no mesmo endereço há cerca de 13 anos. A casa foi erguida em um terreno comprado pelo seu pai na época do loteamento do lugar e é bem próximo ao dique construído em 2015, para conter a subida das águas. E aqui está a nossa personagem principal, que nos recebeu de braços abertos em sua própria casa para nos contar sobre um dos períodos mais desafiadores que precisou passar e superar.

Lizandra posa diante do dique do canal São Gonçalo, na localidade que chama de “Laranjal – Fundos”. Foto: Pedro Vargas
“A ideia de que em Pelotas se sofreu pouco com as enchentes, já que a cidade não registrou nenhum óbito humano durante o período, suaviza um pouco a visão de quem não foi diretamente afetado pela tragédia”, pontua a protagonista desta história. É verdade que não houve perdas humanas, mas existem algumas pessoas que perderam tudo. Móveis, plantas, animais, eletrodomésticos, roupas, materiais, livros, histórias. Se, de repente, todas essas coisas fossem confiscadas de você por mais de um mês, algumas para sempre, o que será que sobraria da sua pessoa?Assim como muitos moradores de áreas de risco, Lizandra perdeu tudo num piscar de olhos e teve o acesso à própria casa negado por causas ditas ‘naturais’.
Mesmo com toda a dramaticidade que a situação oferece, a moradora do Laranjal – Fundos esteve bem acolhida e assessorada quando precisou. Ela e o filho salvaram algumas coisas antes que a água alcançasse sua casa. Roupas, duas televisões, um videogame, um computador e os três cachorros, foram realocados de lá em segurança para a casa de uma amiga. Nessa fase, já não se sabia em que situação se encontrava o local onde moravam, e nem quanto tempo aquela situação iria durar. Eduardo, ou “Dudu”, foi matriculado em uma turma de Jiu-jitsu nesse período, e fazia todas as aulas possíveis que a academia oferecia, o que o ajudou a lidar com o momento que ele e a mãe atravessavam.

A casa em que vivem Lizandra e Dudu recebeu pintura nova, parte das reformas necessárias para voltar a viver no local depois que as águas baixaram. Foto: Pedro Vargas
Esse capítulo da vida de Lizandra foi marcado pela solidariedade e pela força de vontade. A primeira casa em que ficou alojada não foi a única por onde ficou. Inclusive, não foi possível levar os cachorros para lá, então eles ficaram com outras pessoas. Mas, posteriormente, tudo se resolveu. O vizinho de uma amiga abriu o pátio de sua casa para receber cachorros e logo os três que haviam sido salvos da rua Esteio se uniram novamente. E não para por aí. O dono do lugar que acolheu os pets reside no centro e tinha aquela moradia no Laranjal para desopilar da correria da cidade de vez em quando. Como ele e a família não iriam ficar por ali naquele tempo, Lizandra relembra que o vizinho disse o seguinte: “é só a Lizandra e o menino dela? Podem ficar na minha casa!”, conta. Um ato que com certeza nenhum dos envolvidos vai se esquecer tão facilmente.
A retomada “ao” e “do” lar
Quando a água veio, as pessoas foram, quando a água voltou, as pessoas voltaram. Nisso, a expressão “Vamos nos refugiar!” foi substituída pela frase “Vamos reconstruir nossas casas!”. E foi aí que o poder da união entre pessoas se materializou na reforma da construção que já estava há 13 anos no fundo daquele bairro. Foram dias e mais dias para conseguir higienizar a casa, que foi cortada por uma lâmina d’água de mais de um metro de altura por um longo período. Praticamente nada do que ficou ali pôde ser aproveitado, exceto algumas coisas de alumínio ou de madeira tratada. Quando Lizandra encontrou seus materiais da faculdade ensopados e sujos, chorou. As lágrimas não conseguiam fazer outra coisa senão cair. Aquilo representava esforço, conhecimento e estudo que pareciam ter sido afogados na enchente.
Episódios como esse fizeram parecer que o ciclo de tristeza não teria fim. Felizmente, ele foi finalizado e os sentimentos ruins deram espaço para uma inventividade engenhosa para reformar a casa que, agora limpa, precisava parecer um lar novamente. As amigas que receberam e ajudaram a nossa protagonista mostraram um senso de reforma inabalável. Quando os arredores do bairro foram transformados em verdadeiras pilhas de descarte com objetos que os moradores não queriam mais e jogavam no lixo, as mentes férteis viram além de descartes e enxergaram ali um paraíso da reciclagem.
“Tinha muita coisa boa jogada na rua porque as pessoas não queriam mais. Às vezes estavam em perfeito estado, mas o pessoal não queria ver aquilo dentro de casa porque trazia um sentimento ruim”, relata Lizandra, que viu alguma esperança na situação de calamidade. Prateleiras de supermercado se transformaram em armários de cozinha. Uma mesa frankenstein – com as pernas que resistiram dentro de casa e uma nova superfície – foi posta no meio do cômodo. Mobília de boa qualidade que fora descartada por quem já não via sentido nela deu origem a uma mesa de sala, e uma cômoda para o quarto, feita com um maleiro de um roupeiro antigo.

No momento de retomada às casas, quando a água baixou, pilhas de descarte eram encontradas nas ruas do bairro. Foto: Lara Nasi
Reformulação impermeável
Mas existia uma lógica mais apurada por trás das decisões dos móveis que foram reformados. Lembra que algumas coisas da casa resistiram? O que era de madeira tratada e alumínio? Pois bem, dessa forma, um critério foi estabelecido; a partir desse episódio da tragédia climática, todas as coisas do lar de Lizandra deveriam ser de material resistente à água. Inclusive, hoje está em andamento o projeto de fazer o roupeiro do quarto de alumínio, e se a dona ficar satisfeita, repetir o mesmo para o quarto do filho. Mas dentre essas, a ideia mais inusitada talvez seja a de se fazer um sofá de alvenaria, usando colchões como estofados. Assim, caso a Lagoa dos Patos e o Canal São Gonçalo voltem a encher e invadir o local, as perdas serão minimizadas ao máximo.
Sair de lá não é uma opção para mãe e filho. Eles gostam daquele local, são emocionalmente ligados a ele, e mesmo que vendessem e fossem embora, a iminência de novas tragédias climáticas desvalorizou muito o imóvel. “Não é só na parte emocional, pensando no financeiro também não vale a pena”, pondera a dona da casa. Portanto, a resposta encontrada foi apostar na reciclagem e criar uma casa verdadeiramente impermeável.
Para o programa da UFPel que restaurava eletrodomésticos, Lizandra solicitou o conserto de uma geladeira e um freezer, que foram danificados com a água. No entanto, apenas o último pode ser consertado e está lá até hoje em pleno funcionamento. Ele serve como uma memória tangível de tudo o que aconteceu. Os desenhos e rabiscos feitos pelo filho, que refletem sentimentos pessoais, não se apagaram durante todo o período de enchente, o que reforça a ideia de pertencimento que foi passada quando o objeto voltou para casa.
O velho freezer agora conta com novas companhias: uma geladeira nova, comprada no lugar da outra e uma cozinha toda reformada pensada para evitar o pior. Tudo mudou, mas o eletrodoméstico segue ali, assim como Lizandra Cordeiro e seu filho, Eduardo, que mudaram por dentro e por fora e não pretendem largar o lugar onde moram: a sua casa à prova d’água.
Essa narrativa só pôde ser contada devido aos projetos Artefatos recuperados, memórias recontadas: histórias de pessoas atingidas pela Enchente em Pelotas e Reconstruindo lares: projeto de extensão para a manutenção de eletrodomésticos em famílias afetadas por enchentes em Pelotas. Iniciativas dos cursos de Jornalismo e de Engenharias, que prestaram serviços à população pelotense atingida pelas enchentes no estado do Rio Grande do Sul em 2024.


