Enola Holmes 2: adaptações e equilíbrio entre o antigo e o novo
O segundo filme da jovem detetive solidifica a franquia, traz um pano de fundo histórico e resgata conceitos e personagens das histórias de Sherlock Holmes, mesmo que com muitas adaptações.
Por Jaime Lucas Mattos
Com a perspectiva do segundo filme, pode-se observar que o primeiro filme da franquia é bastante introdutório, apresentando conceitos e personagens que serão importantes para o desenro “Enola Holmes 2” é, como sugere o título, o segundo filme da franquia distribuída pela Netflix desde 2020. A sequência estreou em 4 de novembro de 2022 e conseguiu gerar grande engajamento nessas primeiras semanas de estreia, se tornando o filme mais visto da semana na Netflix a nível global.
“Enola Holmes” é uma franquia baseada na série de livros homônima, escrita por Nancy Springer. Os livros por si só já são baseados nos clássicos escritos por Arthur Conan Doyle, a série de livros do detetive Sherlock Holmes. A personagem Enola existe apenas nos livros de Springer.
Nos filmes da Netflix, somos apresentados a Enola Holmes, irmã mais nova de Sherlock, que tem ideais à frente do seu tempo, não compactuando com o modelo de sociedade da época, que impunha que meninas aprendessem etiqueta e a bordar, por exemplo. Enola, que de trás pra frente significa “alone” (“sozinha”, em inglês), quer se tornar uma detetive, assim como seu irmão Sherlock, e prefere aprender artes marciais ao invés de fazer o que a sociedade impõe que mulheres façam.
Já aqui no segundo filme, começa a se moldar o que será a franquia daqui para a frente: Enola desenvolvendo suas habilidades de investigação para se encaixar em um mundo arcaico, que precisa valorizá-la pelo que é e pelo que pode fazer.
Em “Enola Holmes 2”, temos uma Enola mais madura do que no primeiro filme, tentando emplacar sua agência de investigação, no entanto, é sempre esnobada por ser: 1) mulher 2) jovem 3) irmã do grande detetive Sherlock Holmes. Nesse contexto social e de sua vida pessoal, Enola quase desiste de seu empreendimento, mas assume o caso de investigação que aparece do pedido de uma menina com, aparentemente, uns 12 anos. A irmã da menina desapareceu e ela pede ajuda a Enola para encontrá-la.
A irmã em questão é Sarah Chapman, jovem que trabalhava com a menina em uma fábrica de fósforos da região. As duas não eram irmãs de registro, mas cuidavam uma da outra e moravam no mesmo quarto em uma locação que abrigava dezenas de pessoas. Com o início da investigação, Enola descobre um enredo que vai muito além do desaparecimento da jovem, envolvendo política, corrupção e assassinatos.
Um dos pontos mais fortes de “Enola Holmes 2” é a capacidade de discutir questões feministas de uma forma que se comunique com todos os públicos, e uma das formas que podemos ver isso está no pano de fundo da narrativa: a fábrica de fósforos e a luta das funcionárias por uma melhor condição de trabalho.
Esta história, cabe mencionar, de fato aconteceu. Em 1888, na Inglaterra, a fábrica de fósforos Bryant & May foi denunciada por uma das funcionárias pelas péssimas condições de trabalho das mulheres na fábrica, como multas por idas ao banheiro, jornadas exaustivas e problemas de saúde graves causados pelo fósforo branco. A partir disso, Sarah Chapman (pessoa real) liderou um movimento que pedia por melhores condições trabalhistas na fábrica. À época este foi um importante movimento sindical feminino, que encontrou resultados, fazendo a fábrica recuar e até mesmo recontratar funcionárias demitidas injustamente.
No filme, temos uma ficcionalização deste caso, ao invés de seguir a história do segundo livro. Sarah Chapman é ficcionalizada como uma jovem desaparecida, e tudo indica que tem algo a ver com as condições de trabalho da fábrica. O uso do fósforo branco também é adaptado no filme. Na vida real, o fósforo branco é extremamente prejudicial à saúde e deformava os rostos das funcionárias da fábrica, algumas chegavam à morte. No filme, o fósforo branco causa também uma doença que leva à morte, apesar de não ser a mesma doença da realidade.
Além deste contexto real como pano de fundo, temos uma discussão sendo aberta sobre o descrédito sobre as mulheres. Enola, por exemplo, quer ser uma grande detetive, mas vive sendo subestimada pelas pessoas só por ser mulher. Outras personagens, como as funcionárias da fábrica, também vivem sendo subestimadas.
Uma questão que o filme aborda é a falta de experiência de Enola em relação ao seu irmão. Ela é jovem, investigou poucos casos e tem uma experiência diferente da do irmão. Por vezes, Sherlock também duvida da capacidade da irmã, querendo livrá-la de determinadas situações, mas Enola consegue provar ser tão boa quanto o irmão, afinal eles chegam à solução do caso ao mesmo tempo, mas com diferentes formas de chegar nela. Enola só precisa de oportunidades para ganhar experiência.
A relação de Enola e Sherlock é bem mais trabalhada no segundo filme. Temos uma relação de irmãos muito boa de se ver na tela. Enola admira o irmão e suas habilidades ao mesmo tempo que quer provar ser tão boa quanto ele; Sherlock, por mais que duvide certas vezes da irmã, acaba aprendendo com ela outras formas de solucionar questões e outras formas de enxergar o mundo. A relação estabelecida entre eles é de ensino-aprendizagem e de carinho. Sherlock, aliás, é um personagem muito mais afetuoso na franquia “Enola Holmes” do que em outras adaptações, como na série “Sherlock” (2010), e talvez isso se explique pela existência de uma irmã mais nova, com a qual deve-se ter preocupação e cuidado.
Essa relação de ensino-aprendizagem também é estabelecida entre Enola e Tewkesbury (Louis Partridge), seu interesse amoroso. Ambos aprendem coisas novas um com o outro e se ajudam mutuamente quando precisam. A relação entre os dois, aliás, traz um misto de fofura e risos durante o filme.
Uma das principais mensagens do filme, além da valorização da mulher, é a união. Não se vive e nem se faz nada sozinho. Seja na falta da presença de pessoas na sua vida pessoal, ou na investigação de um caso de desaparecimento e corrupção, o trabalho conjunto faz a diferença. A autossuficiência é importante, mas ter pessoas ao nosso redor nos apoiando também importa.
Entrando mais nas questões técnicas, vemos aqui um filme mais maduro. A história é bem interligada, apesar de apresentar algumas conveniências de roteiro no final. Algumas cenas e repetições de conceitos poderiam se mostrar desnecessários, se não fosse um filme juvenil, feito para um público que precisa de uma explicação maior e da retomada de conceitos antes apresentados.
A direção das quebras de quarta parede – quando os personagens conversam com o público – é um ponto extremamente positivo. O recurso se torna natural, tanto pela atuação mais amadurecida de Milly Bobby Brown quanto pela excelente direção de Harry Bradbeer, que também dirigiu a maioria dos episódios de “Fleabag”, uma das séries recentes de comédia mais aclamadas e que é conhecida pela constante quebra da quarta parede.
A harmonia entre Milly Bobby Brown (Enola) e Henry Cavill (Sherlock) pode ser sentida na tela, já que essa relação ultrapassa a irmandade dos personagens. Helena Bonham Carter (Eudoria) e Susie Wokoma (Edith) voltam ao segundo filme com uma participação menor, mas cheia de momentos divertidos e de muito aprendizado pessoal para Enola.
Por fim, temos um filme que discute a união e a valorização da mulher através de uma perspectiva que reflete sobre a época do final do século XIX, em uma Europa vitoriana. A adaptação da perspectiva de assuntos como feminismo e racismo, através de uma ótica contemporânea, é importante para que essas nuances sejam discutidas com uma posição de importância em um longa-metragem que tem um grande público e atinge todas as faixas etárias, ampliando a discussão.
“Enola Holmes 2” está disponível no catálogo da Netflix.