Projeto de extensão da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) desafia a noção tradicional dos espaços expositivos
Por Henri Porto Dias e Lucas Duarte Maciel

Objetos do cotidiano trazem por trás de si histórias de vida e têm relevância simbólica Fotos: Acervo MCB
O Museu das Coisas Banais (MCB) foi criado em 2014 por integrantes do departamento de Museologia, Conservação e Restauro, do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas. Funcionando exclusivamente em formato virtual, sua missão é preservar e compartilhar as memórias atreladas a objetos cotidianos — as “coisas banais” — que possuem um profundo valor afetivo e pessoal para seus doadores.
O acervo do Museu é composto por objetos biográficos enviados pela própria comunidade, geralmente através de fotografias e suas respectivas narrativas, explicando o vínculo afetivo. Nesta reportagem, você vai conhecer a história completa do museu e o porquê de a banalidade estar presente só em seu nome.
O início, bastidores e o trabalho no Museu
Ao observar outros museus pelo mundo, como o Museu da Cidade de Buenos Aires, na Argentina, Juliane Serres, professora de museologia da UFPel e coordenadora do projeto, sentiu a carência de um espaço que abrigasse apenas objetos comuns com significados sentimentais, em detrimento dos museus mais tradicionais, como os de história e ciência.
Com a ideia em mente, em reunião com outros integrantes do departamento de Museologia, Juliane inspirou-se no livro “História das Coisas Banais”, do escritor francês Daniel Roche, para denominar o projeto. Inicialmente, era apenas um projeto de extensão do curso de Museologia. Com o tempo, o museu ganhou reconhecimento e subiu ao status de museu oficial da Universidade, sempre mantendo sua finalidade de proporcionar atividades de extensão e ensino para os futuros museólogos.
O museólogo Leonardo Monteiro ingressou no museu, ainda graduando e voluntário, dentro das atividades de ensino e extensão. Ele era responsável por descrever os objetos no website. Depois de formado e exercendo a profissão, foi convidado novamente a se juntar ao projeto, na gerência do acervo. Quem também ajuda na manutenção do acervo é Nara Ávila, ingressante no museu após Juliane comentar sobre a necessidade de voluntários para confecção de um painel e ajuda em geral. Desde 2017 no MCB, Nara foi motivada pela ideia de que qualquer pessoa possa ter um objeto musealizado, independentemente de sua classe social ou do valor material para a sociedade, mas, sim, pelo valor afetivo que se torna visível nas narrativas biográficas.

Na categoria eventos há objetos como esse carneirinho que remete ao dia de nascimento de doadora com 65 anos
Destaques sobre o funcionamento do museu
O trabalho cotidiano do Museu das Coisas Banais envolve a gestão do acervo virtual, que inclui:
Coleta de Itens: Gerenciar o recebimento de fotografias e histórias que explicam o vínculo afetivo do doador com o item.
Organização e Catalogação: Categorizar os objetos e suas narrativas, às vezes utilizando uma “categorização afetiva” (por exemplo, eventos, lugares, pessoas, sentimentos e coisas), com o apoio de plataformas digitais para gestão do acervo, como o Tainacan e WordPress.
Gestão de Conteúdo Digital: Cuidar da disponibilização e organização do conteúdo no site e em redes sociais (como Instagram), que servem como ferramentas de interação e musealização.
Preservação Digital: Focar na preservação digital das informações (imagens e textos), garantindo sua integridade e o acesso futuro a elas.
Interação com o Público: Fomentar a reflexão sobre a relação entre pessoas e coisas, buscando despertar lembranças aos visitantes virtuais. O Museu recebe objetos tanto de crianças quanto de idosos, realizando já ações nas escolas e nos asilos, tanto de Pelotas quanto de fora do Rio Grande do Sul.
A plataforma Tainacan: gerenciando o afeto digital
O uso da plataforma Tainacan pelo MCB é crucial para o seu funcionamento. Desenvolvida no Brasil e de código aberto, a ferramenta museológica atua como um plugin para sites em WordPress (utilizado pelo MCB) e permite:
Gestão Flexível de Acervos: O Tainacan é ideal para a criação e gerenciamento de coleções digitais, possibilitando a configuração de metadados e filtros personalizados. Isso é essencial para o MCB, que não usa categorias museológicas tradicionais, mas sim uma “categorização afetiva” alinhada ao valor pessoal dos objetos.
Publicação e Difusão: Facilita a publicação de coleções, garantindo que as fotografias e, principalmente, as ricas narrativas enviadas pela comunidade sejam facilmente acessíveis ao público. A ferramenta, assim, auxilia a dar forma e estrutura digital à memória afetiva preservada pelo museu.
Exemplos do acervo: o banal que se torna único
A essência do Museu das Coisas Banais reside nas histórias que transformam objetos comuns em guardiões da memória. Três exemplos presentes na Galeria Afetiva ilustram essa capacidade de evocar lembranças e sentimentos profundos:
- O DVD do pai: “Ele (meu pai) tinha uma banda de rock… Foi após um desses eventos, pouco tempo depois de ele ter tido alta do hospital, que fomos até a loja e compramos esse DVD do AC/DC. Isso me marcou muito… Na vez seguinte em que ele foi internado, oito meses depois, ele morreu. Foi só pensando nele, nesse objeto, que pude perceber o quanto falava a mim e ao meu pai.

DVD de grupo de rock traz a memória afetiva de uma família
- “O umbigo e o cofre: “Este é o umbigo da minha primogênita… Guardei como lembrança, assim como o dos meus outros dois filhos… Também diziam que se um rato roesse o umbigo seco da criança ela se tornaria uma ladra. Está guardado há 35 anos no cofre de casa.”

Mãe guarda o umbigo de sua primeira filha nascida há 35 anos
- O avô e o mar: “Meu avô, Arthur Constantino, nascido em 1898, visitou o mar pela primeira vez em 1948… Como recordação, comprou esta concha e a manteve com ele até sua morte, quando foi herdada por minha mãe.”

Homem que viu mar pela primeira vez aos 50 anos de idade guarda uma concha de recordação
A falta de visibilidade
Apesar de sua relevância em ampliar e democratizar a constituição de acervos ao focar na memória de objetos cotidianos, o Museu das Coisas Banais enfrenta o desafio da visibilidade, em comparação com instituições físicas. Nara Ávila acredita que ainda existe um preconceito e uma reclusão, em comparação com Museus da própria universidade que têm um reconhecimento mais evidente, como o Museu do Doce ou o Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (MALG). “Não sei dizer com certeza, se é falta de visibilidade, mas com certeza falta um tratamento igualitário aos museus físicos. Como ele existe [no] mundo cibernético se torna abstrato.”
No entanto, ela ressalta e enfoca o papel da comunidade em conferir-lhe importância. “Tornou-se importante e visível quando as pessoas acharam interessante e importante guardar suas memórias afetivas em um museu, mesmo que seja de maneira virtual,” observa.
Tanto Leonardo Monteiro como Juliane Serres acreditam que exista um déficit comunicacional interno do museu. A coordenadora comenta que estão previstas futuras mudanças e “planos de ação” a respeito. “Até por não sermos da área da comunicação, há esse problema, mas até o fim do ano vamos nos reunir para organizar mudanças e também novos projetos, ” diz.
A natureza exclusivamente virtual do MCB, ao mesmo tempo que democratiza a participação e o acesso, também o insere em um cibermundo com um modo de funcionamento próprio. Isso exige um esforço contínuo em atividades de extensão, comunicação e interação nas redes sociais para superar a falta de um “lugar físico” e garantir que o valor afetivo e biográfico de suas coleções seja amplamente reconhecido.
O futuro projeto de memória da enchente
Ainda para este ano, o MCB irá participar de um projeto sobre as enchentes de 2024, em parceria com o curso de Antropologia da UFPel, no qual irão atuar no resgate e na fotografia de objetos perdidos ou conservados da catástrofe. Tal obra se assemelha à realizada na pandemia, que trouxe objetos marcantes da era do Covid.
O real objetivo do MCB
Quem vê, ou acessa o site do Museu, pensa que é só um acervo de coisas aleatórias e comuns. Porém, os objetos são apenas fragmentos e partes do que realmente importa, a história e a memória, de acordo com Serres.
“Quando entro no Museu, como visitante, o que realmente me sensibiliza não são simplesmente os objetos, o que me sensibiliza são as conexões que o Museu traz para todas as histórias de pessoas que nunca se conheceram e que o Museu abrange.”
Como Participar: Torne seu Objeto Banal em Memória Musealizada
O Museu das Coisas Banais tem um caráter essencialmente participativo, dependendo diretamente da comunidade para crescer. Para que seu objeto, por mais comum que pareça, faça parte do acervo virtual e ajude a fomentar a reflexão sobre a memória e o afeto, o processo é simples:
- Escolha seu objeto: Selecione um objeto do seu cotidiano que possua um forte valor afetivo ou pessoal.
- Registre: Faça uma ou mais fotografias de boa qualidade do objeto.
- Conte a história: Escreva a narrativa que explica o vínculo afetivo e pessoal entre você e o objeto.
- Envie: O envio do “objeto biográfico” (foto + história) é realizado através do e-mail do Museu, que pode ser encontrado no site oficial: Museu das Coisas Banais.
Ao participar, você contribui para a missão do MCB de preservar memórias e democratizar o acesso à museologia, provando que o valor de um item reside, muitas vezes, no afeto que ele carrega.
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