Hip hop em ação: uma entrevista com André Dizéro

Rapper une a música com a realização de oficinas e a pesquisa acadêmica          Foto: DAC Vídeos – FURG

Por Chay Cadaval

O rap surgiu na Jamaica lá pela década de 1960 e foi levado para os Estados Unidos 10 anos depois, em 1970. Chegou ao Brasil na década de 1980, ainda com muita resistência, por ser um gênero musical visto de forma pejorativa, por ser algo da periferia. Grandes nomes marcam esse período em que o rap começava a ganhar forma no Brasil: Thayde, Racionais MCs e Detentos do Rap. Em Rio Grande, a história do rap também tem presença na agenda cultural, apesar de que, em certas vezes, o gênero não é visto com o valor cultural que merece. Batemos um papo com o André Dizéro sobre o movimento hip hop na cidade do Rio Grande. Ele contou um pouco mais sobre seus projetos sociais e sua visão de mundo através da ótica do hip hop.

Arte no Sul – Como começou teu envolvimento com o rap e o movimento hip hop como um todo?

André Dizéro – Eu comecei com o rap lá em 2007 com o grupo Dirth South (D$). A gente iniciou fazendo música, com muita influência do rap americano e alguma coisa nacional. O grupo se inspirou nos caras do Sul dos Estados Unidos, do Texas, que faziam um estilo Dirth South. Tinha uma batida mais próximo do que hoje a galera chama de trap . Mas era um estilo Dirth. Então, começamos a fazer música nesse estilo aqui na cidade. E a gente disponibilizava música na internet, MSN, e em outras plataformas. A galera curtia, começou a baixar demais, a cantar as músicas. E não paramos de produzir.

Depois disso a gente gravou um disco da Dirth South que se chama Dirth Show. O lançamento no Teatro Municipal lotado foi da hora. Desse período da Dirth South, eu comecei a trabalhar também um pouco mais individual. Foi quando entrei na Universidade, no curso de Artes Visuais da FURG, no Bacharelado e depois na Licenciatura. E eu comecei a tornar a parada um pouco diferente, comecei a me envolver mais com o rap de uma forma particular, num formato meu. Continuei trabalhando com a gurizada da Dirth, mas comecei a fazer meus projetos sociais. Entendi o hip hop como ferramenta de inserção, como algo que poderia se tornar em ensino. Passei a fazer oficinas, tudo isso a partir do meu envolvimento com a FURG. Quando eu tive cadeiras de Licenciatura, aprendi a fazer planos de aula, comecei a ter mais uma prática pedagógica. E foi daí que eu trouxe mais o hip hop pra essa área do conhecimento mesmo, do ensino.

Eu me formei no Bacharelado de Artes Visuais em 2014 e em Licenciatura em 2016. Quando terminei a licenciatura, acabei criando um projeto que se chama Hip Hop e Educação. Nele eu faço oficinas de hip hop desde essa época. Neste ano, o projeto completa cinco anos. Esse projeto basicamente leva um pouco do hip hop pra dentro das escolas e espaços de ensino não formal também.

Arte no Sul – Em geral, como se dá a tua relação com a música e com as oficinas?

André Dizéro – Pra resumir, meu envolvimento com o hip hop é a partir da música. Faço minhas músicas, tenho meu trabalho na rua, um EP que se chama “Dizéro à 100”. Tenho alguns videoclipes também no Youtube desse trabalho. Tenho o projeto Hip Hop e Educação e a minha parte de pesquisador. Eu faço Mestrado em Artes Visuais na UFPel, em que eu também acabo pesquisando hip hop. Então, hoje em dia, eu falo que eu sou o cara que rima, o rimador, o educador e o pesquisador. São nessas três áreas que eu acabo caminhando com o hip hop. E uma potencializa a outra, porque, a partir do que eu componho, das minhas músicas, dos clipes que gravo, gero material pras oficinas. Isso acaba gerando conteúdo pra minha pesquisa acadêmica. Então, acaba sendo um ciclo, a parada se retroalimenta. Uma função alimenta a outra. Eu já não consigo separar uma da outra. Faço rap, ele me leva à oficina e a oficina me leva a uma escrita acadêmica, uma pesquisa nessa área.

Eu acredito que essas oficinas são importantes no contexto histórico que a gente vive, principalmente em inserção digital. O hip hop passou a ser totalmente utilizado pelas plataformas, assim como qualquer outra área artística. Mas o hip hop tem uma particularidade porque ele veio da periferia, da favela, então hoje ele precisa se abraçar na tecnologia. Quando eu vou fazer oficinas, eu acho importante e, ao mesmo tempo, eu fico um pouco numa corda bamba. Na hora que eu vou trazer a história da formação do hip hop, como é que ele se desenvolve, como é que ele chega no Brasil, a galera tá muito atrás do cifrão. Tá muito atrás do dinheiro, da produção, do seguidor, [da visibilidade na internet]. E, nessa busca da galera, no mundo acelerado de hoje, acaba que se passa por cima da história. Não se quer saber muito da base da parada, da filosofia. Querem produzir e tentar chegar ao topo. E não tem como desacelerar esse desenvolvimento do hip hop, principalmente quando a gente fala dessa aliança da música com a indústria da internet, não tem como. Então, eu penso que tenho que me renovar pra não me tornar alguém obsoleto, falando de uma coisa ultrapassada. Mas a história serve como base para galera poder produzir, ir atrás dos objetivos.

Arte no Sul – Como tu enxergas a influência que essas oficinas e esse projeto de ensino têm no público que tu consegues alcançar?

André Dizéro – Eu acredito que tem um retorno positivo. Alguns participantes das oficinas acabaram se desenvolvendo bastante e se interessando pela história. Isso enriqueceu o conhecimento que eles têm sobre a cultura. Tem um participante em especial, o Richard Prodigio, um MC do Bairro BGV, que acabou participando comigo nas oficinas no BGV Rolezinhos. Tanto ele quanto o Pedro Henrique. Os dois hoje gravam juntos e têm uma produção legal, estão sempre gravando videoclipes e envolvidos com música. E eles são os caras que foram fruto do projeto. E, pra mim, isso é uma satisfação enorme. Por exemplo, o Richard colou num estúdio bacana de gravação, onde ele tem um auxílio de produção pra gravar. Quando eu pude levar ele no estúdio do 808 Luke, abriu as portas pro projeto. Então, acredito que a oficina tem o seu retorno. Ela é muito importante nesse sentido. Embora a gente tenha que competir com o mundo acelerado, em que a galera acaba deixando um pouco de lado a história, eu acho que esse envolvimento e aprendizado da base, da cultura, acaba resgatando valores. A partir dessas iniciativas, a galera acaba se tornando um pouco mais consciente nas suas produções. Faz com um pouco mais de responsabilidade com o que vai colocar no papel e gravar no miq. A oficina acaba trabalhando pra resgatar os valores.

Arte no Sul – Podes explicar um pouquinho como acontecem essas oficinas e os eventos que tu tens atuado?

André Dizéro – As oficinas acontecem através de convites, muitas escolas acabam me convidando pra fazer as oficinas. Existe uma demanda, um desejo dos alunos e também dos professores de ter o hip hop nas escolas. E aí é interessante, porque o hip hop era visto de forma pejorativa antigamente, agora acaba tendo convites pra ele estar presente nas escolas. E também rola muito de forma contratual. Às vezes o Sesc ou Prefeitura me contratam pra fazer oficina em algum evento ou em algumas escolas. Então, eu faço oficinas das duas formas: a partir de um convite, de forma gratuita, ou através de um contrato.

E existe uma metodologia pra fazer essa oficina. Ela é dividida em três partes. A primeira é a parte histórica. A apresentação da história do hip hop, das referências, de como que o hip hop vem dos Estados Unidos pro Brasil, como que ele chega a Rio Grande. Nesse meio tempo eu apresento referências dos Estados Unidos, do Brasil e, também, da nossa cidade. Eu acho importante falar um pouco dos artistas daqui. Porque eles fazem parte desse movimento hip hop. Então, a primeira parte fica mais na questão histórica, filosófica. Eu contextualizo muito do momento político quando o hip hop nasce, o que estava acontecendo na sociedade, porque que o hip hop foi criado, como ele se desenvolveu.

Na segunda parte, já que na história do hip hop eu passo pelo rap, pelo DJ, pela dança e pelo grafite, eu explico o surgimento desses quatro elementos. E eu acabo mostrando referências, mostro diferentes formas de rap, diferentes subgêneros que existem no rap. A gente constrói rimas, mostrando como se faz no papel mesmo. Então a galera acaba criando versos de uma forma mais criativa, mais poética, no caderno.

Na terceira parte, com esses versos que criam, eles acabam recitando. Então é a parte de quebrar todo gelo, quebrar toda vergonha, e levantar a autoestima. É a busca pela autoestima principalmente. Também é a parte da apresentação. Quando eles fazem uma rima, a gente faz uma roda onde todos acabam recitando em forma de poema. E isso é muito da hora, porque eles acabam desconstruindo toda essa baixa autoestima que acaba tendo nas escolas de periferia. É uma forma de resgatar a importância deles. Quando eu tenho a oportunidade de ser contratado e rolar uma verba, eu levo um DJ. Então, aí, já rolam oficinas de hip hop mais voltadas pra rap. Às vezes, vem um grafiteiro e acaba tendo práticas artísticas com vários elementos.

Arte no Sul – Tens alguma noção em relação a números de escolas ou alunos que tu já alcançaste nesses anos do projeto?

André Dizéro – Em 2019, fazem quatro anos do projeto de oficina. Acredito que entre 400 e 500 alunos já foram atendidos em aproximadamente 20 escolas. E em oficinas no BGV Rolezinhos e em ocasiões no CCMar também. O interessante disso é que eu consegui levar quase todos os artistas do hip hop na cidade. Passaram pelas oficinas todos os DJs da cidade que a gente tem registro, também passaram os grafiteiros e alguns MC’s de Rio Grande.

Eu tive o prazer de realizar alguns eventos na cidade que têm a mesma filosofia tanto do meu trabalho musical quanto do meu trabalho com a cultura hip hop. Em 2017 eu fui premiado pelo Ministério da Cultura. O projeto Hip Hop e Educação foi destacado pela Incubadora Cultura Viva da FURG e pelo Ministério da Cultura. Eu realizei seis meses de residência artística na antiga casa skate arte do Cassino. Lá eu tive a oportunidade de promover um evento que se chama Tarde Cultural, que teve três edições. Também fundei o evento que se chama Rap contra o Frio, que acontece no Teatro Municipal e que esse ano teve sua quarta edição. O evento é pra arrecadar agasalhos. E, ao longo desses três anos do evento, nós conseguimos arrecadar mais de 2000 peças de roupas que foram doadas pra diversas instituições, como Assoran, instituição de albergue, presídio, pra instituição de crianças carentes e, principalmente, pra tribos indígenas. E isso é muito bacana. Nós conseguimos distribuir só no último evento agasalhos pra três tribos indígenas. Também desenvolvi o evento que se chama Rap Sessions, que teve três edições e reunia diversos artistas que estavam produzindo bastante na cidade, mas que não tinham espaço pra tocar.

Arte no Sul – Como tu encaras as realizações em torno do movimento hip hop e o envolvimento da cidade com o rap?

André Dizéro – A nossa história com o hip hop na cidade é muito forte. Ela tem uma história principalmente no BGV, uma história antiga. Muitos grupos da antiga daqui tinham uma conexão muito forte com a galera de São Paulo, de Porto Alegre. Rio Grande sempre esteve no mapa. Depois a gente teve as próximas gerações, a gente tem aqui o Tuty que colou no Lollapalooza, gravou com vários MCs. E Rio Grande sempre esteve um pouco no radar do hip hop. Então, eu acredito que a gente tenha uma raiz muito forte com o hip hop, mas sofremos com o que toda cidade do interior sofre. A gente não consegue se sustentar com a parada. Por exemplo, teve uma época, de 2007 a 2012, que o movimento hip hop estava muito forte na cidade, tinha muito grupo e principalmente público. Hoje em dia existem muitos grupos, mas o público não existe tanto como antes. Os shows eram lotados, a galera consumia muito hip hop daqui. Hoje a galera acaba consumindo muita parada de fora. E o dinheiro dentro do hip hop aqui na cidade acontece da seguinte forma: o MC vai lá e paga pro produtor produzir beat. Ele compra o beat, o produtor recebe. Depois o MC escreve a música e vai pro estúdio gravar. O dono do estúdio recebe. E quando o MC precisa receber, quando ele tem seu trabalho na rua, circulando, ele não tem espaço pra tocar. Todo mundo que trabalha com o MC recebe. O cara que produz, o cara que grava, o cara que faz o flyer, o cara que faz as fotos, o cara que faz o vídeo, o Facebook recebe, o Instagram. Menos o MC. E isso bloqueia o capital de giro. O dinheiro não retorna pro artista e isso fica insustentável. E não tem como a galera sobreviver. É uma roda que não gira. Os caras não contratam, os caras não recebem. O MC não vai ter dinheiro pra uma próxima produção, não consegue ter uma produção mensal, por exemplo. Então, o MC não recebe, não faz show, não se apresenta. O cara lança um material bacana na internet, mas não recebe a oportunidade de poder estar no palco, de ser pago pra isso. Mas isso não é culpa do público. É culpa do mercado da cidade.

Em meio a tudo isso, eu ainda acho que o público dá um retorno legal. A galera ainda prestigia shows, prestigia ações. Por exemplo, o III Rap Contra o Frio, em 2018, teve lotação da casa. E no Teatro, que vem sofrendo há muito tempo com falta de público, a gente conseguiu lotar a casa com uma cultura de rua, em um espaço mais elitizado, mais clássico.

Arte no Sul – Pra ti, qual o poder do rap e como ele pode ajudar na atual conjuntura política do país?

André Dizéro – Eu acho que 2019 é um ano de muita produção. Não só artística, mas também política. O representante que a gente tem no país atualmente é opressor e tem um discurso de ódio. A galera, num primeiro momento, principalmente nas eleições, talvez sentisse aquele frio na barriga, aquele medo de não ter acesso, de não poder ter voz mais e da sua luta desvalorizada. Mas, num segundo momento, após a turbulência, a galera entendeu que é mais uma chance de produção. Eu acho que o rap, principalmente, vai voltar a ser mais político. Ele vai precisar ser assim. Não como Racionais MC’s já foi um dia. Acho que isso não vai voltar a acontecer. Porém acho que a galera vai começar a falar menos bobagens. Não é que o rap tenha perdido seu sentido total, mas eu acho que ele é o reflexo do cenário. Reflexo do período, do contexto. A gente teve políticas que asseguravam que o rap não falasse só sobre a periferia, mas que ele pudesse chegar ao grande centro. Então, se acontecer tudo o que a gente acha que vai acontecer, o rap vai voltar a ser mais político. Ele vai precisar ser assim.

Arte no Sul – Tens alguma indicação de leitura pra quem se interessar pela história e busca entender um pouco mais do hip hop e do rap no Brasil?

André Dizéro – Tem um livro que é do Ricardo Teperman que se chama “As transformações do rap no Brasil”. É um livro bem massa, que te dá uma profundidade bem grande da transformação do rap, até a era Emicida mais ou menos. E aqui, próximo a nós, tem o do Gagui IDV que se chama “Resenha do Rap”. É um livro de entrevistas em que ele troca ideia com MCs ao longo de vários anos.

Arte no Sul – Se tu pudesses usar uma palavra pra representar o movimento hip hop, qual seria?

André Dizéro – Tem um amigo meu que falou uma vez uma frase que representa muito o hip hop. Ela fala que o hip hop não inventou nada, mas ele reinventou tudo. O mundo depois do hip hop é um mundo que existe através da ótica do hip hop. Então, uma palavra pra representar o hip hop: reinvenção.

  • Trap – É  uma vertente do rap que surgiu lá no sul dos Estados Unidos e ganhou mais popularidade a partir de 2007 com o surgimento de grupos como Gucci Mane e hoje está presente no Brasil com artistas como Matuê e Raff Moreira, entre outros. 
  • BGV Rolezinhos é um projeto da Prefeitura Municipal de Rio Grande, em que André Dizéro foi selecionado pra ser oficineiro através de um edital. Tem como objetivo estimular o combate à violência e às drogas, principalmente entre jovens de 13 a 17 anos, no bairro Getúlio Vargas. E também visa resgatar um pouco da identidade do bairro, pra mostrar que é muito mais além do que as notícias negativas.

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