Artista relembra trajetória acadêmica e fala sobre projetos culturais e os desafios frente à pandemia
A relevância cultural do hip-hop é cada vez mais reconhecida pelos meios de comunicação, sendo tema de teses e dissertações também na comunidade acadêmica. Um dos grandes entusiastas do rap como objeto de estudo científico que tiveram passagem pela FURG é o rio-grandino André Dizéro.
Artista celebrado na cena local, Dizéro, 31 anos, é graduado duplamente em Artes Visuais pela universidade, em Bacharelado (2014) e Licenciatura (2016), e também possui Mestrado no mesmo curso pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel). Seus estudos incluem reflexões sobre o rap na contemporaneidade e a produção audiovisual.
Os últimos quatro meses de confinamento social, com teatros, casas de shows e espaços culturais fechados, poderiam ter aniquilado a produção sociocultural do rapper, mas ele conta com criatividade e talento suficientes para driblar os problemas. Dizéro busca trabalhar com o hip-hop sob um viés que extrapola a música, atuando como oficineiro e educador. Idealizador de uma série de ações, sempre com bom retorno da comunidade, teve que readaptar seus projetos com a chegada da pandemia do novo coronavírus. Um deles foi o festival beneficente Rap Contra o Frio, que em sua quinta edição ocorreu de forma online.
A veia artística também segue ocupando o seu dia a dia. Nos últimos meses, lançou single e clipe em parcerias, e também colaborou musicalmente em uma campanha de saúde voltada à periferia. Em julho, amenizou a saudade da universidade com sua live no Janela Musical, projeto realizado pela Secretaria de Comunicação (Secom) e a Pró-reitoria de Extensão e Cultura (Proexc) da FURG.
Essas e outras histórias estão na entrevista concedida abaixo pelo músico.
De que maneira a cultura hip-hop foi inserida em teus estudos acadêmicos na FURG, como aluno de Artes Visuais?
Foi somente no segundo ano de curso que encontrei um caminho para mediar a produção com hip-hop e a academia. Antes disso, pensei muito em desistir. Não fui aluno exemplar quando adolescente, pelo contrário, dei muito trabalho para os professores. Tive um momento marcante e decisivo no ensino médio, quando percebi que estava atrasado e decidi levar a sério. Mudei de escola e tive a chance de ser aluno do Law Tissot, em 2009/2010. Ele mudou minha perspectiva em relação à arte, principalmente pela forma como abordava as culturas urbanas. No ano seguinte ingressei na universidade. Eu tive uma chance e consegui agarrar, essa mudança no percurso foi decisiva para eu ser quem me tornei.
Tive muita dificuldade nos anos iniciais, baixa autoestima, principalmente para a realização de trabalhos manuais como desenho e pintura. Não entendia a universidade como um local de pertencimento, me senti por vezes um intruso. Pensei inúmeras vezes em desistir. Nas aulas de Design Gráfico do professor José Flores, passei a realizar colagens para capa de discos, com a temática de rap. Fiz montagens para o grupo Dirth South, do qual faço parte, e ali percebi que poderia relacionar a minha produção com rap.
Passei a pesquisar a história do hip-hop e realizar trabalhos voltados para a cultura, com experimentações em vídeo e fotografia. Consegui enxergar o elo necessário, e minha produção com hip-hop se tornou a fonte primária pra minha pesquisa artística, conceitual e educacional.
Como seguiu a relação institucional com a FURG após a graduação?
Tenho uma ótima relação com a universidade e ela se tornou parceira nos projetos que proponho para a cidade, como o Rap Contra o Frio e o Minicurso de capacitação. A parceria segue na Feira do Livro e no Janela Musical, do qual recebi convite para participar recentemente. Acho importante convites como esse para poder continuar realizando essa mediação, e me coloco à disposição sempre que for possível para seguir construindo essa relação entre as ruas e a comunidade acadêmica.
A pandemia da Covid-19 certamente afetou os teus projetos culturais programados para 2020. Como está sendo essa readaptação?
Afetou dramaticamente, como no restante do país. É muito complicado ver os locais fechados e as pessoas que vivem de arte e cultura não podendo produzir.
A pandemia teve dois reflexos para mim: reação e ação. Quando o vírus chegou aqui, em março, não imaginava que se estenderia até os dias atuais. Quando nos aproximávamos de maio, pensei que precisava reagir. Foi aí que surgiu o Rap Contra o Frio 5, totalmente digital, através de transmissões ao vivo. Reunimos mais de 30 artistas em transmissões ao vivo com o objetivo de buscar arrecadações para a campanha. O evento foi importante para eles, e creio que representou esperança. A galera se empenhou muito para realizar a transmissão de forma criativa e isso foi um bom exercício. Conseguimos 43 cestas básicas com a ação e distribuímos no bairro Maria dos Anjos. Isso foi ótimo e manteve o hip-hop em movimento.
O projeto “Minicurso de capacitação de educadores/oficineiros de hip-hop: Metodologia, Didática e conteúdos”, de tua autoria, foi um dos contemplados do edital Procultura da Prefeitura de Rio Grande em 2019. O que esperar desse curso?
O curso precisou sofrer adaptações por conta da pandemia. Inicialmente iríamos realizar um curso de formação presencial; agora, ele vai acontecer através de vídeos.
Basicamente, ele tem o objetivo de oferecer uma formação para os artistas do hip-hop (MCs, dançarinos, DJs e grafiteiros) e transformá-los também em educadores/oficineiros, para multiplicar os artistas atuantes nesse cenário.
O curso tem quatro módulos e se desenvolve a partir da minha própria metodologia enquanto educador. Os módulos são teóricos, de planejamento, confecção de portfólio e de elaboração de projetos. O artista participante receberá a oportunidade de formação pedagógica e capacitação para inscrever projetos e captar recurso para nosso município. As inscrições ainda não estão abertas. Espero que em breve possamos iniciar os trabalhos.
Durante a quarentena, entre outros projetos, colaboraste com uma música para a campanha “BGV sem contaminação” do projeto BGV Rolezinhos. Como se deu essa parceria? De que forma a música chegou até a comunidade?
Eu trabalho no projeto BGV Rolezinhos desde 2018. A música foi uma proposta da coordenadora Alisson Juliano, e foi viabilizada com a ajuda do produtor 808 Luke. Através do projeto realizamos um conjunto de ações no Bairro Getúlio Vargas, e uma delas foi a música. Pensei em criar em cima de batidas de trap, que são mais agitadas e atuais. A letra tenta conversar com os moradores, com os mais jovens e mais velhos, com o nome das ruas e com o uso das redes sociais.
Foi uma maneira que pensei de interagir com a população do bairro de forma descontraída e tentar fazer uma conscientização coletiva. Muita gente gostou e compartilhou, ouço relatos que a criançada gosta e canta a música em casa. Fiquei muito feliz com a recepção e com a possibilidade de contribuir de alguma forma. A música está disponível no YouTube, agora, com legenda.
Logo no começo do teu envolvimento com o rap, a forma de produzir e divulgar música era um tanto diferente da atual. A internet veio facilitar o teu trabalho, ou é o contrário?
A internet facilitou a difusão do trabalho. Principalmente a troca de conhecimento com outros artistas. A era digital tem várias fases, ao meu ver. No início, por exemplo, nossas músicas eram divulgadas em plataformas como o 4shared, onde o pessoal clicava pra baixar e ouvia no seu computador. Logo vieram o YouTube e os videoclipes, e agora, vivemos a era do streaming com Spotify.
Cada fase tem uma forma diferente de interação com o público. Sinto que as duas primeiras fases foram mais afetivas, a produção estava em alta, tínhamos espaços de convívio entre os artistas como a Batalha do Cruz, em 2012. O público da cidade consumia muito o hip-hop local, e isso fazia com que o rap tivesse lugar em eventos tradicionais como Fearg e Fecis, Fejunca e até mesmo a Festa do Mar.
Hoje na era do streaming, os artistas da cena local (e creio que isso reflete em muitas cidades do interior) precisam batalhar por atenção na camada diária de produção musical, que é diversa e ampla, e estamos escassos de espaços de encontros.
O algoritmo e o alcance das redes nessa nova era jogam contra o artista local, na minha opinião. As pessoas estão olhando cada vez mais para números, e determinando a qualidade musical através disso. Para o artista do extremo sul, que já tem um cenário muito limitado para hip-hop, isso faz com que seja ainda mais difícil receber méritos e valorização pelo seu trabalho, pois seu alcance esbarra em uma dificuldade regional – diferente de grandes cidades, não temos suporte de mídias importantes que fazem com que o trabalho do artista gire, por exemplo, em revistas, jornais, rádio, TV e etc.
Recentemente esteve no ar o programa Resenha Rap na rádio FURG FM, junto com o DJ Magreen e DJ MD Beats. Realizamos cerca de 4 meses de programa. Foi muito importante, jogou luz sobre muitos artistas.
Acredito que uma forma de quebrar esse paradigma seria os veículos de comunicação produzirem material com os artistas, enxergarem eles como indivíduos formadores de opinião e representação. E o principal, os produtores musicais precisam entender que o artista da cidade, além de merecer espaço, precisa receber por seu trabalho de maneira profissional. Então, minha resposta pra essa pergunta é sim, facilita a difusão, mas exige um trabalho dobrado para o artista.
Como tu vês o rap, hoje, como expressão popular da região? As comunidades mais humildes conseguem se fazer ouvir?
Estamos chegando mais ou menos na terceira geração do rap da cidade e é interessante: artistas da primeira geração, como Mr. Diones, são referência para artistas da terceira geração como o grupo Quality Sul, mesmo com uma diferença de 30 anos de atuação.
O rap da cidade tem muita força. Muitos artistas estão com produção ativa e com muita representatividade. Duck Beatz está fazendo um baita trampo e lançando álbum, e o Selo Afrogang está produzindo diversos artistas novos, dando oportunidade para a galera se inserir nesse cenário e isso é muito importante. Cristian CRN, além de uma voz marcante no refrão de várias músicas da cidade, produz vários artistas no estúdio Kinkilha.rap. Getsemani é um grupo com proposta cristã. O produtor 808 Luke está trabalhando com artistas do cenário nacional, como Baco Exu do Blues, Lennon e Dalua, entre outros. Temos o Baby, Dudz e Perki lançando álbuns. Badih Hallal e Criss lançaram novas propostas para o cenário. Temos Tuty (que tem músicas com Emicida e Karol Conka) lançando músicas novas. Youngzilla correndo pelo cenário trap e os DJs Micha, Md e Magreen como referências, sem contar a nova geração como Lia Og, 137 Records, Andz e Bhrama e Mística e a evolução audiovisual que A Corte Films trouxe para a região sul.
O rap local emerge de vários lugares e diversas comunidades conseguem se fazer ouvir, com diferentes estilos de rap e isso é muito importante. Precisamos agora colocar essa gama de talentos em fluxo coletivo.
E a participação das mulheres negras no rap produzido aqui, como é?
As mulheres negras ainda são minoria no rap local. Antigamente tínhamos a Sandrinha do grupo Mente sem Limites, e também a MC Pérola Negra, que agora está no Rio de Janeiro. A DJ AfroB está surgindo como referência nesse cenário e isso é muito importante. Temos mulheres talentosas como Mística, Lia Og e na dança Ariel Lexistão, mas ainda é muito pouco. Precisamos que as mulheres se envolvam mais com a cultura hip-hop e que sejam as novas referências para gerações futuras. Dessa maneira podemos ampliar a participação feminina nesse cenário.
Quais artistas de Rio Grande e região merecem destaque atualmente, na tua opinião?
Embora tenhamos nomes importantes e consagrados na cidade, no momento atual, o produtor 808 Luke e Duck Beatz (não só pela produção musical, mas também pela atuação como MC e pela sua liderança na Afrogang enquanto coletivo) estão em destaque na minha opinião, juntamente com o grupo Quality Sul, do BGV. Os moleques da Quality estão em um bom momento de produção, com parceria de Mr. Diones. São nomes que estão com certo destaque na minha visão.