Z3: destruição, descaso e solidariedade

Barco de pesca foi jogada para terreno baldio com a enchente – Foto Esme Molina, especial Em Pauta

Colônia de pescadores à margem da Lagoa dos Patos recebeu toda a força da enchente e luta para se reerguer com ajuda e solidariedade de ONG Pachamama

Carlos Dominguez / Em Pauta

– As casas quebraram! Não sobrou nada. Saíram de barco, com a roupa do corpo – revela Márcia Pereira de Sousa, pescadora na colônia de pescadores Z3, nas margens da Lagos dos Patos, distante 15 km do centro de pelotas.

A localidade ficou isolada após as enchentes de junho de 2024 que causaram a maior calamidade pública do Estado do Rio Grande do Sul dos últimos tempos, superando em volume de água da histórica enchente de 1941. Enquanto áreas urbanas como Pelotas e Porto Alegre possuem sistemas de diques e estrutura pública de contingência, aqui em um lugar isolado, a resistência são a força e determinação de pessoas como Márcia. Figura conhecida por ser uma das poucas mulheres embarcadas da região,  a pescadora tem um corpo forte e mão vigorosas. Cabelo loiro, olhos marcados pelo sol e vento, voz poderosa e gentil. Foi junto de Marcia que a reportagem do Em Pauta chegou a colônia Z3, no dia seguinte que o acesso foi liberado pela prefeitura que teve de reconstruir a estrada de chão que foi completamente destroçada pela força da água da lagoa.

Perto das 12horas o comboio com donativos angariados pela ONG Pachamama, com recursos oriundos dos Sindicato dos Auditores Fiscais, saiu de Pelotas tentando vencer o percurso complicado. Um pequeno caminhão levava os donativos e o resto da equipe seguia para fazer a entrega em mãos de cestas básicas, cobertores, material de limpeza dos mais necessitados, exigência do sindicato para repassar o dinheiro.

Moradores da Z3 e integrantes da ONG Nación Pachamama depois das entregas.

A estrada até pouco depois da localidade de Barro Duro estava boa. Quando acaba o trecho asfaltado, a presença de veículos da prefeitura indicava que dali para diante o caminho seria mais complicado. Logo na primeira ponte, onde estavam as máquinas usadas na obra, somos informados que as 13h30min o acesso seria fechado para continuidade dos reparos. Entramos num percurso que mesclava cascalho recém colocado, ainda sem compactação, pedras soltas, barro e muita areia fofa. De um lado a água da lagoa, do outro a mata costeira com indicações de até onde tinha ido o nível da água. Logo começam a aparecer as primeiras casas de madeira abandonadas e destruídas. Uma que outra família ribeirinha já tentava iniciar a difícil reconstrução. Muita lama e lixo por todos os lados. Assim foi até a ponte do Arroio Sujo, já nos limites da colônia de pescadores. Ali fora instalado pelo exército uma ponte de metal há dois dias, refazendo a ligação interrompida. Até então, só barcos conseguiram fazer os resgates. Passamos e chegamos no começo da povoação. O cenário é triste. Pessoas perambulando sem muita opção a não ser empilhar os entulhos na frente das casas. A rua principal é uma sucessão de imensas poças, profundas, largas, que ocupam toda a largura, com a água batendo na metade da roda do carro.

– Isso aqui sempre é assim. Qualquer chuva alaga tudo. Não é só agora. Nunca fazem conserto por aqui. A prefeitura esquece da gente. Tem pessoas que perderam tudo, até a casa. Depois que as aguas baixaram perderam redes trapiche embarcação. Quem puder ajudar para estruturar as famílias de novo. Então, as pessoas precisam de muita ajuda. Vão sair dos abrigo e não tem para onde voltar – desabafa Márcia.

Ela nos mostra as ruas que ainda estão com água até a metade das casas. Barcos que foram jogados para longe da lagoa. Um cenário de destruição completo. Todos os estabelecimentos comerciais estão fechados. O único local que não foi atingido é na igreja e escola que ficam em uma rara área isolada. Ali enxergamos dois caminhões do exército parados e uma camionete da defesa civil municipal. Em um prédio da prefeitura, onde funciona o CACs estão sendo entregues doações.

– É uma miséria. Mandam um quilo de feijão e outro de farinha, arroz e deu. Depois só daqui a 15 dias – se queixa a pescadora.

Chegamos na casa para a entrega. As famílias que receberiam já estavam por ali. O comboio chama a atenção dos moradores da localidade. Serão 12 famílias que receberão doações. A presidente da ONG Pachamama, Trinidad Aguilar, explicou a ação para os moradores antes da distribuição. Márcia aproveitou para agradecer o esforço de todos e conseguir fazer com que os donativos chegassem a quem realmente estava necessitando.

Foi organizada uma fila. A atividade fazia que os rostos das pessoas mudassem de expectativa para felicidade em questão de segundos. Além de uma cesta básica repleta de boa comida, recebiam uma caixa de leite, ovos, cobertores e lençóis. Além de um kit de limpeza acondicionado em um cesto grande de plástico. Duas vassouras e uma caixa de bombom completavam a entrega, que gerou comentários positivos de quem esperava. E, é claro, satisfação para os que participavam da doação e operacionalizaram toda a operação, com as compras e transporte. Esme, Mainá, Leonidas e Trinidad, da Pachamama, entregam as cestas. Logo as ruas enlameadas estão cheias de gente. Os sorrisos e abraços se sucedem com a gratidão de quem não tinha mais esperança de ser ajudado de forma generosa.

Integrantes da Nación Pachamama e a pescadora Márcia (ao centro de branco)

– Desde que as enchentes começaram nossa ong se solidarizou com as pessoas doando alimentos, águas e cobertas para diversas comunidades do estado e hoje estamos na Z3, em Pelotas.Trazemos nossa solidariedade e carinho para pessoas que perderam tudo. Encontramos a comunidade bem atingida pelas enchentes e o local cheio de lixo e as pessoas esperando. São pescadores que sofrem há muitos anos com estas problemas de alagamentos. A mudança climática vai piorar esta situação, por isso não podemos parar –  alerta Trinidad, a presidente da ONG Pachamama.

Para os mais de 3,5 mil habitantes da colônia de pescadores, a realidade será lutar contra a falta de quase tudo: acesso, linhas de transportes, habitação, escola e saúde, atividades econômicas, e claro, pesca. As mudanças climáticas alteraram consideravelmente a atividade de pesca artesanal devido a mudança do ciclo natural das estações e dos cursos de água. Neste último verão, já não houve safra de camarão, um alento econômico para os pescadores. O seguro defeso, recursos do governo federal para pescadores ainda não havia sido liberado, já na metade do ano.

– Estou me virando fazendo faxina. Não tá fácil – explica Márcia – mas não perdemos a esperança. Ainda quero levar vocês para passear no meu barco. Vamos nas ilhas, que são muito bonitas – sorri a pescadora.

A colônia Z3 é oficialmente o 2º distrito do município de Pelotas, localizado na região sul do estado do Rio Grande do Sul. Foi fundada em 29 de junho de 1921 e segundo o Censo Demográfico (2010) possui uma população de 3.166 habitantes. A principal atividade econômica é a pesca artesanal e a agricultura extensiva. A destruída comunidade de pescadores é um rincão de resistência e luta. Há quase 100 anos.

 

Veja abaixo imagens da colônia Z# e da entrega de donativos – Fotos Carlos Dominguez e Esme Molina

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