Todos querem um pedaço de Britney Spears (e de muitas outras mulheres)

Letra do single “Piece of Me” de 2007. Crédito: Maria Clara Morais Sousa

Por Maria Clara Morais Sousa/ Em Pauta

Com o avanço do movimento #FreeBritney e uma revisitação dos acontecimentos nos anos 2000, é possível ver como a mídia trata as mulheres de forma injusta e cruel. De Britney a Megan Fox e exemplos até atuais como Cardi B, Anitta e Luísa Sonza, todas elas recebem julgamento constante de internautas, da sociedade e (principalmente) da imprensa.

No ano de 1998 o single “Baby one more time” foi lançado junto com a futura superestrela Britney Spears. Apenas com 17 anos, a cantora foi capaz de transformar um clipe, dirigido em boa parte pela própria com uma ideia autoral, em um sucesso mundial. A imagem de ícone sexual passada pela adolescente trabalhava muito bem com a hipersexualização de meninas novas valorizada pela sociedade patriarcal. Sua ideia de virgem sexy trouxe uma onda forte de pânico moral de adultos que ainda não entendiam qual era o apelo de Spears.

 

Fora da bolha sexual, Britney era mais do que uma cantora, ela dirigia vídeos, fazia coreografias, tinha controle da luz ao cenário passando por suas roupas e tudo que fazia parte das suas apresentações, total controle era dado a uma menina cheia de talento e determinação. Parte do apelo dela era exatamente esse controle, o “girl power” (em português poder feminino) que a estrela exalava para meninas mais jovens num contexto de pós-feminismo.

Embora a ideia desse controle era o que mantinha sua fama, é impossível negar que boa parte do que vendiam na marca Britney Spears estava longe do que a cantora entendia. Talvez por ser muito nova, a garota não entendia as consequências de usar roupas tão curtas para uma audiência tão grande. Como forma de manipulação do próprio patriarcado, Spears se viu atraída pela forma como ícones sexuais eram tratados e esqueceu o que tinha de consequência.

A palavra slutshaming é uma dos conceitos que mais acompanhou a carreira de Britney. Seu significado consiste em envergonhar mulheres que se sentem confortáveis com sua sexualidade as chamando de “putas”, “vadias” e outros nomes degradantes. Além de uma constante obsessão por sua virgindade, a cantora sofreu de enormes críticas após Timberlake especular que ele havia sido traído pela famosa.

Revistas de fofoca com Britney na capa. Crédito: Ego/Globo

Crescendo numa época de grande fixação pelos bastidores da vida de celebridades, Britney começou a perder seu império exatamente por falta de controle. Perseguida por paparazzis e sempre em capas de revistas de fofocas, ela viu sua vida profissional sair de foco para sua vida pessoal entrar nos holofotes.

O divórcio notório de Britney com Kevin Federline, a briga pela custódia dos filhos e as entradas e saídas de clínicas de reabilitação (de forma forçada), foram os assuntos mais comentados nas revistas da época. A frase “Se Britney sobreviveu a 2007 você consegue passar pelo dia de hoje” demonstra como o ano de cabeça raspada da estrela foi conturbado e distorcido pela mídia. Ao invés de verem uma menina machucada, triste e precisando de ajuda, Spears foi apresentada como alguém sem controle da própria vida, praticamente louca.

Nesse cenário que seu pai, Jamie Spears, entra em ação pedindo tutela provisória em 2008 (que virou permanente em janeiro de 2009), para salvar a filha das mãos de um gerente oportunista chamado Sam Ludified. Segundo boatos, Sam a drogava e mentia para a cantora em diversas ocasiões. 

Violências como ser negada de ver os filhos, se casar e ter outros filhos, não ter cartão de crédito e ser limitada a 4.000 dólares por semana, eram frequentes em uma época que Jamie lucrava 2.1 milhões e mais um salário mensal de 16.000 dólares com a marca Britney Spears. O uso de DIU forçado, além de trabalhar em três turnês seguidas para cobrir os gastos dos processos de uma tutela que a cantora era contra, são apenas alguns dos exemplos da tutela abusiva que a estrela vive.

Capa do podcast “Britney’s Gran” de Tess Barker e Barbara Gray. Crédito: Tess Barker e Barbara Gray

Porém, poucos se perguntavam como Spears estava lançando álbum e fazendo turnês se ela estava em um momento de extrema vulnerabilidade, sem conseguir ter discernimento para fazer suas próprias escolhas. A questão se tornou mais forte com o podcast de fãs “Britney’s Gran”, que vazou um áudio de um suposto advogado dizendo que Britney estava sendo internada em clínicas de reabilitação contra sua vontade. Nesse momento, nasceu o movimento #FreeBritney com o intuito de chamar atenção das autoridades para a tutela abusiva e controladora que seu pai tinha dela. O movimento cresceu a ponto de ser citado por celebridades e de ser motivo para a abertura de um caso judicial que levaria a liberdade de Spears.

Porém Britney não foi a única a sofrer na mão da imprensa. A professora Silvia Meirelles Leite do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), afirma que “A mídia não está fora da sociedade, ela é uma das partes da sociedade. Então, se a gente tem todos os problemas de misoginia e de patriarcado na sociedade, é evidente que isso vai estar presente na mídia.”

Casos como a sexualização precoce de Megan Fox ainda na sua menoridade penal, o julgamento de Taylor Swift pela sua vida amorosa, e todas as críticas projetadas na Cardi B e outras rappers femininas, mostram como “a mulher geralmente é julgada antes de ser ouvida, e isso não é uma questão só da mídia, é da sociedade”, diz Silvia.

Em 2017, outro movimento para libertação das mulheres tomou conta das mídias sociais. O movimento #MeToo trouxe notoriedade para casos de assédio sexual sofridos por cantoras e atrizes por homens de grandes cargos no cinema e na música.

Infográfico movimento #MeToo. Crédito: Maria Clara Morais Sousa

Cantora e musicista paulista Izabella Domingos. Foto: Acervo pessoal

Ainda é importante pensar em como mulheres de diferentes raças, idades, identidades de gênero e orientação sexual são tratadas. Silvia destaca como existem diferentes olhares para diferentes mulheres. Como exemplo, Christina Aguilera era invejada por sua beleza enquanto Kelly Rowland era alvo de críticas pelos seus traços negros.

Izabella Domingos, cantora e estudante da música da UFPel, conta que no seu ramo de música erudita as oportunidades para mulheres negras são muito restritas: “fiz o teste para o musical Grease em São Paulo, e como resposta me disseram que minha voz era perfeita para a personagem e meu biotipo também, mas por eu ser preta não poderia ficar com papel”, diz.

Já em casos brasileiros, podemos perceber a misoginia no tratamento dado a Luisa Sonza após seu divórcio com o comediante Whindersson Nunes. Ao postar uma foto com ex-namorado Vitão, a cantora recebeu ameaças de violência e sofreu com assédio verbal. Anitta também é outro nome que vem em mente quando se trata de discriminação. Desde o começo de sua carreira, a funkeira ouve que “só sabe rebolar” e “não tem talento de verdade” – mesmo ganhando prêmios e sendo destaque mundial, a carioca ainda não recebe o respeito que merece.

Letra de INTERE$$SEIRA de Luísa Sonza, onde ela relata como foi tratada pela mídia. Crédito: Maria Clara Morais Sousa

Mais especificamente em notícias, Silvia menciona como casos judiciais que foram tratados de forma desrespeitosa e degradante: “Em 2018, quando uma professora denunciou que ela tinha sido agredida por alunos, vasculharam as redes sociais dela para ver as posições políticas e partidárias dela e, a partir disso, ela deixou de ser vítima e passou a ser julgada. Isso também aconteceu com uma mulher que foi vítima de um estupro coletivo no Rio de Janeiro. Quando descobriram fotos dela com armas e com outros rapazes, ela também deixou de ser vítima e passou a ser julgada”.

Infelizmente essa desigualdade cresce na estrutura social. Dados do IBGE de 2019 apontam que mulheres recebem apenas 77,7% do salário que homens ganham e estão apenas em 34,7% dos cargos gerenciais de poder. Na política não é diferente, em 2015 e 2016, as mulheres eram 50,6% da população brasileira, mas só representavam 10,6% da Câmara de Deputados. Na imprensa, apenas 43% das mulheres se sentem representadas na mídia, segundo um estudo realizado pela Dove e analisando as propagandas do Festival Cannes Lions, é possível afirmar que homens falam sete vezes mais que mulheres e aparecem quatro vezes mais nas telas.

Atualmente, Britney está livre da tutela de seu pai, porém essa não é a realidade de todas as mulheres, muitas ainda se sentem violentadas, invisibilizadas, são degradadas, abusadas e esquecidas por boa parte da sociedade. A imprensa não está longe de ser culpada pelo que fez com Spears e ainda faz com outras celebridades e, apesar de muitas tentativas, ainda há um longo caminho pela frente.

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