Quatro gerações de migrantes venezuelanas buscam uma nova vida em solo gaúcho

Bisavó, avó, mãe e filha contam como a crise humanitária da Venezuela atinge as mulheres

Por Isabelli Neckel e Júlia Müller

As 4 gerações venezuelanas. Imagem: Isabelli Neckel

Na época em que amamentou a pequena Anthonella (1), Glendys (26) fazia apenas uma refeição por dia. Quando Gladys (49) ia ao mercado, tinha que decidir se comprava arroz ou macarrão, pois o dinheiro dava apenas para um item na semana toda. Juana (71) morou na Venezuela por sete décadas e nunca viu nada parecido. No país, que vive uma crise humanitária sem precedentes, violência, fome e desemprego são parte da rotina de todos, entretanto, as dificuldades afetam de forma diferente as mulheres. Em agosto, as quatro venezuelanas desembarcaram em Pelotas, no Rio Grande do Sul, beneficiadas pelo programa de interiorização da instituição católica Cáritas. No Brasil, bisavó, avó, mãe e filha buscam a chance de um recomeço.

A RESILIÊNCIA

Glendys e sua filha. Imagem: Isabelli Neckel

“Há um tempo, as coisas estavam muito boas”, recorda Glendys, em um português com forte sotaque espanhol. Com o olhar distante, ela parece se perder nas recordações de uma época, não muito distante, em que as coisas na Venezuela iam bem. Aos 26 anos, ela trabalhava com atendimento, cursava uma faculdade e iniciava uma família.

“Nosso país tinha tudo, tudo, tudo”, relembra. Ela se refere ao período em que Hugo Chávez governou a nação, no auge da exploração petrolífera, quando os preços dos barris de petróleo eram altos e as exportações geravam muito lucro. Pouco a pouco, porém, o preço do petróleo começou a cair. A economia, pouco diversificada e bastante dependente do produto, desandou. À isso, somaram-se as sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos, que causaram um prejuízo de bilhões de dólares ao pequeno território latino-americano. Além disso, a população sofre com a crise política interna, os protestos violentos e as medidas autoritárias do governo de Nicolás Maduro, sucessor de Chávez.

Desde o ano passado, segundo Glendys, “já não se podia viver mais lá”. Com uma inflação que chegou a bater em 1 milhão por cento, as necessidades mais básicas ficaram prejudicadas. Os supermercados vazios denunciavam que a crise, além de político-econômica, havia se tornado humanitária. Itens simples, como frango, viraram artigos de luxo para um povo faminto. Responsáveis pelas compras no mercado, pouco a pouco, as mulheres da família retiraram comidas como carne, macarrão e açúcar da alimentação da família. Até que sobrou só o arroz. “Todas as manhãs, eu levantava e pensava no que iria conseguir comer naquele dia. O dinheiro da semana, muitas vezes, só dava para um pacote de arroz. Em meu país, as pessoas estão morrendo de fome”, lamenta Glendys. “Se comprasse um pouco de frango hoje, já não podia comer até a próxima semana”, conta Juana, que já chegou a pagar o equivalente a 50 reais em um pacote de arroz.

De acordo com Glendys, mesmo com um emprego, “o dinheiro não dava para nada”. O salário mínimo, na época, era equivalia a 140 reais, o que se configura como extrema pobreza, de acordo com as Nações Unidas. Além de trabalhar, a venezuelana estudava Manutenção Industrial. Porém, a tão desejada graduação foi interrompida. “Pouco a pouco, os professores foram indo para o exterior, não havia mais dinheiro, não havia mais aulas”, lembra ela, com a tristeza de quem vê um sonho se acabando. Mesmo assim, Glendys ainda queria continuar em sua terra natal. Porém, no dia em que foi despedida, ela se viu sem saída. “Disseram que já não podiam mais me pagar um salário. Me senti muito mal. Minha família foi deixando o país, fui ficando sozinha. Falei para minha mãe que não tinha como seguir estudando, que não tinha trabalho, que talvez fosse melhor ir para o Brasil”, relata.

A CORAGEM

A venezuelana Gladys. Imagem: Isabelli Neckel

Quatro milhões de pessoas deixaram a Venezuela nos últimos anos, desses, segundo a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), 168 mil migraram para o Brasil. Entre eles, está Gladys. Ela fez parte do maior êxodo da história da Venezuela e um dos maiores da história mundial recente. Aos 49 anos, a ex-atendente tomou uma difícil decisão: foi a primeira de sua família a vir para o Brasil, juntamente com o marido. Muito apegada às suas “madres”, ela conta com alegria que seu nome foi inspirado em Santa Gladys, figura popular no catolicismo venezuelano.

Apesar da fé e da esperança infindáveis, a vida por lá, principalmente para as mulheres, era difícil. Gladys sabia de muitas histórias de mulheres que haviam sido obrigadas pela fome a prostituírem-se nas fronteiras. “Escutamos que elas são maltratadas, violadas”, conta. Outra questão na vida das mulheres moradoras da Venezuela em crise, é a solidão. Os homens costumam ser os primeiros a deixar a nação, em busca de melhores condições. As mulheres, por sua vez, ficam no país com os filhos. “Penso que um pai não poderia se esquecer de um filho”, comenta Gladys.

Ela, porém, conseguiu vir para o Brasil assim que a crise se aprofundou. Reunindo toda sua coragem, juntou dinheiro, comprou uma passagem para Roraima e atravessou a fronteira. De início, mandava, todo mês, parte do dinheiro de seu trabalho para a família que ainda vivia na Venezuela. O valor, entretanto, de pouco servia, devido a inflação exacerbada. Aos poucos, sua mãe, filha, genro e neta também deixaram o país e vieram ao seu encontro no Brasil.

Porém, o restante dos parentes não teve a mesma sorte. Muitos ainda vivem no epicentro da crise venezuelana. Outros, estão espalhados pela América Latina, vivendo em locais como Peru e Chile. “Sentimos dor pelos nossos familiares. Estamos dispersados, uns cá, outros lá. Sentimos impotência, mas fomos obrigados a sair, deixamos casa e família. Como faríamos se ficássemos lá? Como sobreviveríamos?”, reflete.

A SAUDADE

Juana, 71 anos. Imagem: Isabelli Neckel

Juana, 71 anos, viveu as sete décadas de sua vida na Venezuela. Sempre amou o país. Não acreditou quando viu as cenas de violência e fome pela TV. Lamenta que o lugar onde passou a infância, construiu família e planejou viver até o fim dos seus dias esteja nessa situação. “É o pior momento da Venezuela”, opina. Hipertensa, gastava toda a aposentadoria com remédios. O preço dos seus quatro medicamentos variava muito e ela não podia deixar seu tratamento à mercê da inflação. Além de tudo, a alimentação deficitária prejudicava os efeitos da medicação.

Gladys conta que fez de tudo para trazer a família, principalmente a mãe, para o Brasil: “não queria ficar longe delas, sempre fomos muito unidas”. Juana ainda tem dificuldades com o português e, em suas poucas palavras, destaca a saudade que sente da pátria e das irmãs, todas também idosas. Se despediu delas refletindo se as veria novamente um dia.

Porém, sua maior saudade é o filho, morto três dias após a chegada de Juana no Rio Grande do Sul, vítima da violência alarmante de uma Venezuela caótica. “Ele era muito trabalhador e dedicado a família, era meu único filho homem, não pude dar o último adeus”, lastima Juana, sem conter as lágrimas. Em 2017, segundo a Anistia Internacional, o número de homicídios no país chegou a 89 para cada cem mil habitantes, número três vezes maior que o do Brasil, já considerado bastante alto. Além dos homicídios, a violência manifesta-se também na repressão truculenta aos protestos contrários ao governo e nos assaltos em mercados e casas, rotineiros principalmente em Caracas, capital venezuelana.

A ESPERANÇA

Avó e neta. Imagem: Isabelli Neckel

Anthonella tem pouco mais de um ano. Pequena demais para entender os horrores da crise humanitária que assola seu país, a pequena brinca despreocupada. Sua mãe, Glendys, porém, sabe o quão difícil foi a luta por sua sobrevivência. “Tenho uma amiga que, ao dar à luz, faleceu por falta de atendimento médico adequado. Lá, ocorrem muitas outras situações assim em partos”, revela. A saúde pública precária somava-se a falta de alimentos, de modo que a maternidade teve seus desafios naturais potencializados pelas dificuldades da crise: “quando eu estava grávida, a situação era muito ruim, eu só comia uma vez ao dia, tanto que ela nasceu muito magrinha, pequena demais. E para ela tomar o mamá… na verdade, nem sempre tomava. O leite era caro”. De fato, um litro de leite chegou a custar 30% do salário mínimo venezuelano. Já um pacote de fraldas e um absorvente íntimo poderiam significar gastar quase um salário mínimo inteiro.

Apesar dos últimos tempos conturbados, Glendys sente saudades de sua pátria. Sinto muita falta de lá. Quando alguém sai de sua terra, deixa muitas coisas. A casa, a família, o amor de sua gente, as amizades. Até as coisas ruins fazem falta”, analisa. A migração fez com que a família tivesse que aprender um novo idioma e, além disso, houve a dificuldade na adaptação à cultura brasileira que, segundo ela, é bastante diferente. “Muita gente se deprime e não fica bem quando migra. Mas pouco a pouco vamos acostumando”, fala, otimista.

Contente, Glendys comenta que, aqui, a família pode comer bem. Apenas agora, no Brasil, elas poderão cozinhar um prato que, na verdade, é típico da Venezuela. As arepas, por lá, eram caras demais, já que levam carne, um item extremamente inflacionado. Gladys também celebra as pessoas que conheceu no Brasil, principalmente os membros da Cáritas, associação católica responsável pelo processo de interiorização que leva os migrantes alocados em Roraima para outras regiões do país.

A casa em que as quatro vivem hoje em dia, junto com o marido de Gladys e o de Glendys, foi cedida pela Cáritas e fica ao lado de uma igreja católica da cidade de Pelotas. A música que ecoa pelas paredes de madeira é típica da Venezuela, um som animado, com fortes raízes latino-americanas. A nova moradia foi decorada com representações de santas venezuelanas e outros símbolos da fé cristã. Apesar de estarem a cinco mil quilômetros de distância de sua pátria, as raízes venezuelanas ainda permanecem bastante vivas no lar e nas palavras da família.

Entretanto, por enquanto, a família pretende reconstruir a vida no Brasil. “Queremos o mais importante. Um emprego, para poder ajudar quem ficou na Venezuela. Um bom futuro para nossos filhos. Que minha mãe viva tranquila os anos que lhe faltam, tendo tudo que necessita”, deseja Gladys. “Primeiro, eu preciso de um trabalho, tenho muita vontade de trabalhar. Depois, quero que minha filha estude, porque sei que aqui neste lugar têm muitas oportunidades para ela. Quero que ela tenha algum futuro. Quero dar para ela uma casa, muitas comodidades que ela merece. Quero fazer muitas coisas aqui. Até que meu país se recupere, claro”, planeja Glendys.

Em sua última frase, a venezuelana parece demonstrar esperança em um dia retornar a sua terra natal. Ao ser indagada, ela confirma: “sim, eu gostaria muito de voltar. Creio que agora não seja possível. Antes, precisamos de muitas coisas. Eu, primeiro quero trabalhar, quero ter estudo. Mas dentro de alguns anos, quero voltar. Ainda que meu país siga mal, quero voltar outra vez lá para ajudá-lo a se reerguer. Sei que que não vamos nos recuperar tão cedo, vai levar muito tempo para que a Venezuela volte a ser o que era. Mas eu sei que, sim, podemos. Quero que minha filha veja onde ela nasceu. Não queremos esquecer nossas raízes, nossa Venezuela”.

 

 

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