Por que o feminicídio não é um assunto só para feministas
Artigo aponta a relevância do tema no Brasil, nas redes sociais e na necessidade de expor a violência contra as mulheres
Por Bruna Meotti / Em Pauta
No final de 2023, eu estava usando do meu período de inutilidade após o trabalho para explorar um pouquinho do quinto círculo do inferno na internet, o Twitter (porque eu nunca vou me acostumar a chamar esse pandemônio de X), quando me deparei com uma publicação do veículo jornalístico mais confiável do Brasil: a Choquei. A postagem falava sobre uma lei que o presidente Lula sancionou, que garante uma pensão aos filhos de mulheres vítimas de feminicídio.
Eu decidi, então, ler os comentários; porque nenhum sofrimento é pouco quando estamos falando do Twitter, que é a maior incubadora de chorume da internet. Eu me deparei com esse indivíduo questionando se essa pensão seria paga pelo Estado ou pelo agressor, e que se fosse pelo Estado ele acharia justo. Esse comentário me deixou genuinamente confusa, e nem estou sendo irônica, eu honestamente fiquei pensando no que essa pessoa queria dizer.
Porque, geralmente, quando se vê essa galera mais libertária na internet, eles são contra esse tipo de pensão sendo paga pelo Estado porque, de certa forma, “é o contribuinte pagando por um crime que não cometeu”. Não que eu concorde com essa visão, mas é a lógica que algumas pessoas seguem dentro de qualquer pauta quando querem defender um modelo de Estado mínimo. Só que quando a proposta é o agressor indenizar alguém que sofreu pelos crimes que ele cometeu, normalmente libertários se mostram muito mais favoráveis a isso do que usar o dinheiro arrecadado por impostos.
Eu fiquei realmente curiosa para entender o motivo daquele usuário achar injusto que o agressor indenize a pessoa que ele fez perder a mãe. Então eu desci um pouco a tela para ler as respostas daquele comentário, e a explicação da lógica ficou bem clara: a preocupação daquele usuário é que, com a cobrança da pensão, o agressor retornasse para ferir novamente a vítima do feminicídio.
Repetindo: o agressor iria atacar outra vez a vítima do feminicídio.
Vendo este comentário eu percebi que muitas pessoas não sabem nem o que é feminicídio, e me preocupa que tanta gente sem qualquer contato com o assunto esteja exposta na internet a conteúdos problemáticos que trazem mais desinformação do que qualquer esclarecimento sobre esse tema. Afinal, eu já vi pessoas, como o influenciador Taylor Simão, falando sobre leis relacionadas ao feminicídio como se fossem “privilégios” que as feministas querem para as mulheres. Ele fez vários vídeos falando que feminicídio não é algo “importante” porque as estatísticas mostram que homens representam cerca de 90% dos assassinatos.
Esse dado não é falso, longe disso, ele é condizente com a realidade, mas aí é que mora o problema: quando a gente quer falar de um problema social, é uma abordagem extremamente rasa isolar uma única estatística pra afirmar que aquele problema não existe. Quando eu digo: “mulheres representam o maior número de mortes por violência doméstica, ou violência de gênero”, essa afirmação não implica que homens não são vítimas de assassinato. O que eu estou afirmando é que há um cenário específico padronizado quando falamos sobre o assassinato de mulheres, e que esse mesmo padrão não é observado no assassinato de homens. Apenas. Então você consegue entender como é falacioso utilizar a estatística dos 90% para alegar que o feminicídio não é um problema a ser considerado?
Porque o feminicídio não é somente “matar uma mulher”. Mulheres são mortas em assaltos, em sequestros, em ataques terroristas, genocídios… E essas mortes não acontecem especificamente por conta do gênero delas. O feminicídio fala de mulheres que são assassinadas em virtude do fato de serem mulheres, e eu sei que isso pode soar um pouquinho confuso, mas eu vou explicar isso melhor mais pra frente.
A morte por violência de gênero é um padrão que a gente encontra entre as causas de assassinatos de mulheres, mas que não encontramos entre as causas de assassinatos de homens. E por isso é muito importante conceituar o feminicídio. Porque estamos falando de uma causa de morte muito expressiva entre um gênero e quase nula em outro… E é essa diferença que precisa ser investigada.
É muito importante entender, também, que o feminicídio não deve ser um problema associado exclusivamente a pautas feministas. Por mais que o feminismo tenha sido muito importante para pautar o tema em uma época em que isso era tratado como algo normal, a preocupação com a morte de mães, esposas, filhas, namoradas… Não é um assunto exclusivo de feministas, porque é algo que atinge a sociedade de modo geral, independente de afinidades teóricas. Você sendo conservador, anarcocapitalista ou socialista — qualquer coisa que você queira se definir —, pode perder uma amiga ou parente para o feminicídio, sendo ela feminista ou não.
Por isso que, para tentar entender o que é exatamente o feminicídio e por que ele é um problema sério que deve ser discutido e combatido por mecanismos legais, eu quero explorar duas palavras-chave aqui: cultura e patriarcado.
A primeira pessoa a utilizar e conceituar a palavra Feminicídio foi a socióloga sul-africana Diana Russell. Ela define primeiramente como “o assassinato intencional de fêmeas, porque são fêmeas”, mais tarde, ela passa a definir como “o assassinato intencional de uma ou mais fêmeas por um ou mais homens, porque elas são fêmeas”. E eu sei que o uso do termo “fêmea” pode nos trazer um certo estranhamento ou até nos remeter a teorias do feminismo radical, mas, para Diana, o uso da palavra “fêmea” ao invés de “mulher” é importante para incluir também o assassinato de meninas e bebês, pois isso faz referência também a determinadas culturas em que já se assassinou ou se assassina a filha primogênita, afinal, entende-se nessas culturas que é uma vergonha o primeiro filho não ser um menino.
No meu entendimento, a definição era perfeitamente adequada à época, pois estamos falando de 1976, onde ainda não se havia uma atenção tão forte quanto ao uso de palavras, o significado do uso delas, e a manutenção que elas podem exercer. Hoje a gente vê em conceitos mais modernos e inclusivos, a discussão do assassinato de mulheres trans e travestis, e isso é algo a ser considerado também, porque são pessoas sendo assassinadas somente pelo fato de expressarem identidades femininas. Assim como também se vê homens trans sendo violentados e mortos porque “desviam” do comportamento esperado socialmente do seu sexo biológico.
E, sendo bem honesta, entender que essas situações acontecem, e lamentar isso, não é militância nenhuma; é simplesmente olhar para a realidade, compreender o que causa esses crimes, e não ficar insensível diante da morte de outro ser humano. Achar que esses assassinatos não devem ser discutidos com a seriedade devida, por mera associação política, é dissociar da realidade e escolher ignorar o problema.
De qualquer forma, com a evolução dos conceitos que explicam o feminicídio, tem um que se aplica de modo muito prático ao cotidiano brasileiro. Analisando os fatores da violência doméstica no Brasil, a gente pode entender o feminicídio como a última etapa de um processo de violência dentro de um cenário em que a relação hierárquica de gênero é preponderante.
Ou seja: é necessariamente precedido por uma série de abusos físicos ou psicológicos que partem da ideia central do homem ocupando um espaço de comando, enquanto a mulher deve se submeter à figura de poder masculina. Senão por vontade própria, por meio da dominação pelo homem, que se vê no direito de se posicionar como uma autoridade dentro da relação humana. Isso nos é ensinado culturalmente: o homem colocado no papel de chefe.
E é esse processo cultural que nós podemos entender como patriarcado; o homem, enquanto ser humano, é de maior valor do que a mulher.
A partir disso, podemos retornar ao assunto anterior: se essa história de patriarcado e feminicídio é grave mesmo, por que mais homens são mortos do que mulheres?
Como eu falei anteriormente, a preocupação não reside em um número astronômico de mulheres sendo assassinadas e ponto. Justamente porque menos de 10% das vítimas de homicídio são mulheres. A preocupação com o assassinato de mulheres mora no fato de que existe um processo social como motivo da morte de mulheres, que não existe — ou que é praticamente nulo — quando falamos da morte de homens. Acima eu expliquei qual é esse processo e como ele se manifesta. E pra exemplificar na prática a diferença desse tipo de crime, e por que ele cria um perfil de vítimas exclusivamente feminino, eu trouxe alguns dados.
Dados completos, porque usar uma única estatística para inferir que um problema não é real é no mínimo falacioso.
Eu consultei o IPEA, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, que tem um portal chamado Atlas da Violência, onde você encontra centenas de estatísticas referentes a violência no Brasil entre 1989 e 2019. Ou seja, um instituto público catalogou 30 anos de dados; esse registro atravessa o governo de 7 partidos diferentes, 8 presidentes diferentes e diversas ideologias políticas diferentes, e se a gente não pode confiar nos dados desse instituto, a gente pode confiar no quê?
Bem, por mais que a gente esteja em 2023, esses dados de 2019 não se distanciam muito da realidade que vemos hoje, e eu achei interessante catalogar algumas coisas. Aqui a pesquisa considera óbitos por residência, e eu selecionei um recorte nacional. Eu também vou usar outras fontes, como portais jornalísticos; a Exame e a Gênero e Número, por exemplo, que utilizam dados do IPEA, do SINAN, e do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) como referência. O próprio SIM serviu como base para o banco de dados do IPEA.
Primeiro, número de homens assassinados no Brasil em 2019: cerca de 41 mil e 600. Enquanto o número de mulheres assassinadas é de cerca de 3 mil e 700. Esse dado está correto, acontece que quando algumas pessoas, como o Taylor Simão, escolhem isolar esta única estatística para contrapor a problemática do feminicídio, o que se dá a entender é que esses homens morrem exclusivamente pelo fato de serem homens, o que não condiz com a realidade.
Agora, eu quero trazer o resultado de um estudo que, além de apontar que os homens são a maior parte das vítimas de mortes violentas, atesta que homens cometem 95% dos assassinatos. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime publicou o estudo em 2014, e é bem presumível que essas estatísticas não mudaram radicalmente em nove anos.
Com isso eu tô querendo dizer que assassinatos de homens não devem ser tratados com importância? De forma alguma, segurança pública é um assunto seríssimo! O que eu quero demonstrar aqui é que uma causa muito expressiva entre mortes de mulheres praticamente não se manifesta entre mortes de homens. Os maiores perigos para homens decorrem de crimes relacionados a drogas, dinheiro e à violência urbana, enquanto o perigo mais alarmante para mulheres é a morte decorrente da violência de gênero por um homem.
Porém, agora a gente analisa um outro dado muito significativo. Enquanto os dados apontados pelo IPEA e pelo SIM, mostram que entre 10 e 15% dos assassinatos de homens ocorrem dentro de casa, entre 30 e 40% dos assassinatos de mulheres ocorrem dentro de casa. Isso significa que, entre três mulheres assassinadas, uma vai morrer dentro da própria casa. Em cada 10 homens, e se a gente arredondar para cima, dois morrem dentro de casa.
A maioria dos assassinatos de homens ocorre em decorrência da violência urbana, as vias públicas são o cenário de mais de 60% dos homicídios de homens. E isso é muito alarmante, não há dúvidas que esse é um problema grave de segurança pública. Só que é no mínimo fantasioso dizer que homens e mulheres correm os mesmos perigos dentro de casa.
E observando esses dados é muito necessário entender que não se pode tratar esses casos de feminicídio meramente como homens que misteriosamente enlouqueceram e resolveram matar mulheres com quem conviviam. É muito perigoso abordar esses crimes dessa maneira, porque não são homens loucos, de forma alguma. São homens que cresceram doutrinados dentro de uma estrutura patriarcal, em que eles são ensinados que valem mais do que mulheres, e que elas naturalmente devem algum tipo de subserviência a eles.
Com isso eu quero dizer que todo homem se acha superior às mulheres e que vai matar elas se não tiver sua “autoridade” respeitada? É óbvio que não. Por mais que essa seja a cultura predominante em muitos lugares, algumas famílias seguem valores mais brandos em relação ao papel da mulher, e isso é um fator determinante quando analisamos homens que foram mais ou menos intoxicados por ideias misóginas. E os próprios valores adquiridos ao longo da vida também determinam isso. Existem variáveis
Eu posso falar dos homens com quem convivo. O meu pai cresceu trocando socos com o irmão mais velho, mas nunca ergueu a mão pra minha mãe. Meu pai também não me castigava fisicamente, porque ele tinha o entendimento de que era um homem adulto e eu era uma menina, era uma situação de vulnerabilidade física. Mas uma variável que deve ser considerada é que o meu pai adquiriu valores mais alinhados à proteção de mulheres e minorias conforme ia convivendo com o mundo fora da família.
Já o Lucas, meu namorado, nunca demonstrou um único comportamento agressivo na minha frente, contra qualquer pessoa (muito menos com mulheres); e eu acredito muito que isso se deva ao fato de que ele vem de um lar sem violência física.
Mas, se eu pude conviver com homens que não iniciaram um processo de violência física contra mim, outras mulheres se viram de fato em situações de perigo. E a minha realidade não é um modelo determinante para presumir que homens violentos não existem. Eu pertenço a um recorte social específico: sou uma mulher branca, de classe média que cresceu na cidade. Mas eu não preciso me distanciar muito do local em que cresci para encontrar exemplos de uma realidade que oferece mais riscos às mulheres.
A minha mãe, neta de imigrantes italianos, cresceu no interior do interior, trabalhando na lavoura e estudando. Vizinhas dela apanhavam dos maridos, sabe-se lá quantas não foram mortas. Famílias já ofereceram bens aos meus avós para arranjar casamento para a minha mãe, com somente 12/13 anos, com rapazes de seus vinte e tantos — e em uma situação dessas, naturalmente predatória, não tem como esperar que uma menina não vá ser vítima de uma agressão. Mas, como eu mencionei anteriormente, alguns núcleos familiares, mesmo em épocas mais antigas, possuíam valores menos alinhados com a estrutura patriarcal. Então, nesses casos, a resposta dos meus avós era sempre negar esses pedidos e ressaltar que a minha mãe trabalhava e estudava.
Se a gente avançar um pouquinho mais em recortes sociais, a gente encontra ainda mais casos de violência. E mesmo que não sejam realidades que necessariamente nos pertencem de forma imediata, são problemas que, querendo ou não, existem e devem ser tratados com a seriedade que merecem.
FONTES:
https://www.youtube.com/watch?v=I3ZjpjbZ2PI&t=194s
https://www.blogs.unicamp.br/mulheresnafilosofia/feminicidio/
https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/39
https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/40
https://exame.com/brasil/mulheres-sao-minoria-nos-homicidios-mas-estao-mais-vulneraveis-em-casa/
https://mapadaviolenciadegenero.com.br