Palavras da alma, palavras de luta
Os relatos de autores nacionais acerca dos desafios de se produzir num país de desvalorização cultural
Por Victória Silva
Terça-feira, 21 de julho de 2020. O dia em que o ministro da Economia, Paulo Guedes, encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 3887/20, a primeira etapa da reforma tributária idealizada pelo governo. O projeto visa à substituição da Contribuição para o Programa de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Contribuição para o PIS/Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Em tramitação, o projeto prevê tributar os livros em 12%.
A proposta trouxe à tona duas questões, basicamente: 1) a isenção tributária dos livros, que se aplica aos impostos sobre os processos de circulação, é assegurada no Art. 150, inciso VI, “d”, da Constituição Federal de 1988; 2) o porquê dos livros estarem entre os alvos dessa taxação.
A Receita Federal, mediante o Perguntas e Respostas no seu site, tratou de explicar a polêmica envolvendo a taxação dos livros: “A venda de livros e do papel destinado à sua impressão são imunes à cobrança de impostos, nos termos do art. 150, VI, “d” da Constituição Federal. Tal imunidade não se estende às contribuições para a seguridade social, como é o caso da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins. Em 2014, no entanto, foi concedida isenção legal dessas contribuições sobre a receita decorrente da venda de livros e do papel destinado à sua impressão. Não existem avaliações sobre que indiquem que houve redução do preço dos livros após a concessão da isenção da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins”.
“De acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019 (POF), famílias com renda de até 2 salários mínimos não consomem livros não didáticos e a maior parte desses livros é consumido pelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos”, é a justificativa adotada pela Receita.
Contudo, na 5ª edição da pesquisa nacional Retratos da Leitura no Brasil, de autoria do Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural, os dados são outros. A pesquisa revelou que, na realidade, a maior parte dos leitores fazem parte das classes C,D e E.
Caso aprovada, a CBS não prejudicará somente os leitores. Os autores nacionais estão agora à espera do próximo capítulo, um capítulo do qual eles não têm controle. Se o desfecho será bom ou ruim, eles não sabem, mas se há algo que os heróis dos seus livros lhe ensinaram é a nunca desistir de correr atrás dos seus direitos.
Conheça a história de três autores que lutam dia após dia pelo direito de suas histórias serem lidas por todos.
“Tirando o fato do governo não incentivar novos escritores, eu acho que é o preconceito das próprias pessoas daqui. Se limitam muito ao padrão estadunidense e europeu. Eu acho que acontece de não quererem que escritores brasileiros escrevam histórias que se passem no Brasil, acho que tem esse preconceito.
Betriz Camarao, escritora. Foto: Arquivo Pessoal
Aos 20 anos, Beatriz Camarão publicará, pela Editora Sinna, neste ano, o seu primeiro livro, Você está feliz neste mundo moderno?. A amapaense, que assina como Bella Triz, não somente é escritora nacional, como também é leitora das obras literárias do seu país. O seu apego à literatura começou com as famosas histórias em quadrinhos da Turma da Mônica. Ela e a irmã compartilhavam a mesma paixão pela série de gibis criada pelo cartunista e escritor Mauricio de Sousa; eram caixas e caixas de edições da Turma da Mônica das quais elas se orgulhavam de colecionar. Depois veio os livros de autoras como Thalita Rebouças e Paula Pimenta, grandes nomes da literatura adolescente no Brasil.
Quando tinha 8 anos, Camarão conheceu o universo das fanfics. Estas são caracterizadas como ficções escritas por fãs, baseadas em personagens e universos fictícios já criados ou em artistas e bandas, por exemplo. Ela gostava de acompanhar as fanfics que eram inspiradas nas suas animações japonesas favoritas.
“Eu nem tinha conta quando tudo começou. Eu anotava as historinhas em um caderno, os títulos delas, e todo dia eu ia ver se tinham atualizado”, relata, rindo ao se lembrar do trabalho extra que tinha por, na época, não ter um email para realizar o cadastro no Wattpad, a plataforma de fanfics, lançada em 2006, na qual ela lia.
Em 2013, ela criou uma conta no site, mas levaria alguns anos para Camarão publicar as próprias criações. Foi depois de ter lido o livro Sábado à Noite, da autora carioca Babi Dewet, em 2017, que ela percebeu a escritora dentro de si. Sábado à Noite é mais do que seu livro favorito. É o começo de tudo.
“Eu comecei de verdade a escrever após ler um livro, que é o meu favorito, que é da Babi Dewet, Sábado à Noite, que já foi uma fanfic de McFly, que hoje em dia é a minha banda favorita. Tudo veio por causa desse livro e hoje eu escrevo por causa dele”, contou ela, que costuma dizer que suas histórias são escritas graças às músicas.
Diferentemente da maioria dos escritores de fanfic, Camarão desenvolvia uma história original e só
depois fazia as alterações necessárias para colocar os personagens dos quais gostava. “Eu acho que limita [o desenvolvimento] quando a pessoa já tem a intenção de escrever com aquele personagem”, explica.
Essa “mania”, como ela mesma descreve, a ajudou em agosto de 2020. Ao saber de um formulário para um agenciamento literário, Camarão já tinha uma história só sua. Com a ajuda da amiga, elas revisaram os 31 capítulos do livro em duas semanas.
“Eu pensei, por que não? O que pode dar errado? O máximo que vão fazer é me dizer não. Nisso, eu enviei para essa agência literária, que me disse não, na verdade. Só que nesse meio tempo, abriu outro formulário, de uma editora. Fiquei até nervosa de enviar, enviei de madrugada. Escrevi até o título do livro errado”, ela relembra com bom humor o nervosismo que a tomou naquela madrugada. Beatriz Camarão realizava o primeiro passo para alcançar o sonho de se tornar uma escritora publicada.
Em dezembro do mesmo ano, ela recebeu uma resposta. “Ia querer fazer o meu livro [a Editora Sinna]. Eu comecei a chorar”. A editora, do Rio de Janeiro-RJ, é independente, então é Camarão quem está custeando o valor para publicar o seu livro.
“Via tanta gente começando que eu não fazia ideia de como fazer isso. Até porque eu não era alguém com diversos seguidores [no Wattpad], diversas pessoas que já leem a minha história, eu não tinha isso. Era um nervoso por isso e por eu também ser do Norte. Não vejo tantas pessoas nortistas fazendo sucesso como escritores ou sendo convidadas a escrever histórias, então são várias inseguranças que fazem a gente também duvidar da nossa história. Mas fui lá, enviei e até agora está dando tudo certo”.
Sobre a publicação de Você está feliz neste mundo moderno?, Camarão comenta: “Eu sou muito ansiosa, fico querendo fazer tudo logo. Essa demora me faz ter muita insegurança sobre a obra, mas é um tempo necessário para que tudo ocorra bem e certinho. Epero que muita gente se identifique [com os assuntos do livro]”, ela complementa. “Espero que as pessoas consigam se identificar com esses personagens, os quais eu escrevi da maneira mais verdadeira possível, que vejam eles como amigos”.
Ainda que esteja animada com a publicação do seu primeiro livro, ela reconhece os desafios de seguir na carreira de escritor no Brasil. A dificuldade em conseguir um público de leitores, o retorno financeiro não condizente com todo o esforço e o tempo investido por trás do livro e um mercado sedento por novos lançamentos a todo instante são alguns dos fatores que desestimulam alguns jovens autores nacionais.
“Tirando o fato do governo não incentivar novos escritores, eu acho que é o preconceito das próprias pessoas daqui. Se limitam muito ao padrão estadunidense e europeu. Eu acho que acontece de não quererem que escritores brasileiros escrevam histórias que se passem no Brasil, acho que tem esse preconceito. Por isso tanta [história] no Wattpad que faz sucesso é aquele padrão estadunidense, que é a mocinha bobinha e o mocinho que tem passado traumático como desculpa para ser babaca. Meio que isso acaba não abrangendo mais o que podia ser a nossa cultura”, desabafou.
Não bastasse a desvalorização de seu trabalho pela maior parte dos leitores do próprio país, os casos de pirataria cada vez mais frequentes e o Projeto de Lei 3887/20, em análise, se tornam os verdadeiros “vilões” na jornada do escritor.
“Chegou esse ano e eu não estou conseguindo escrever nada, nada. Tem dia em que eu tento, mas só consigo [escrever] 100 palavras. Estou tentando editar uma antiga história minha para ver se consigo pegar o gosto para escrever de novo, mas esse ano realmente tem sido muito complicado. Com a proposta de taxação dos livros e os casos de pirataria, que são pessoas do próprio meio que fazem isso com quem está tentando alavancar ainda. Isso me deixa muito triste, desmotiva muito. [No caso da pirataria,] pessoas que ainda estão crescendo nesse meio, que estão fazendo acontecer, mas já tem gente boicotando essas pessoas. A situação dos livros, eu não vou nem comentar. Se já está difícil para quem está fazendo livro, vendo editora independente fazendo o livro de forma independente, o que custa muito dinheiro, muito mesmo, com a taxação dos livros, vai piorar muito mais a situação”, disse.
Entretanto, a fé lhe faz continuar insistindo no seu sonho, e esse é o seu conselho para os futuros autores. “Continuar tentando. Mesmo com o cenário que está acontecendo, tentar o que tiver na cabeça, mesmo que inicialmente ache a história boba, ou o plot sem sentido nenhum. O importante é escrever, testar, mesmo que poste em plataformas digitais [de publicação independente], como o Spirit Fanfics e Histórias ou o Wattpad, a pessoa continua sendo escritora. Se isso é o que ela sonha em fazer, ou mesmo que seja só por diversão, que continue escrevendo. Às vezes terá pouquíssimos comentários nos capítulos, um número pequeníssimo de favoritos, mas não é por isso que a história é ruim”, incentiva, explicando a forma como são avaliadas as histórias nessas plataformas, por meio de comentários e favoritos, que podem ser interpretados como as “curtidas” nas redes sociais.
“Como muitas [histórias] por aí, que estão esperando uma oportunidade para acontecer, eu diria para continuar porque uma hora vai acontecer. Tudo é válido, se o que a pessoa estiver fazendo é o que ela gosta”, completa Camarão.
“Agora, por exemplo, virou moda todo ano falarem que precisam
taxar os livros para melhorar o país, ou porque só rico lê, o
u qualquer outra baboseira que precisem dizer.
Formada em Ciências da Computação, Carol Coutinho, 25 anos, que vive em Guarulhos-SP com o marido e a filha, possui dois livros publicados, Querido Imperador e Estimado Imperador, e agora, em outubro deste ano, publicará O Que Roubar De Uma Pirata.
Desde pequena, a leitura sempre se fez presente na sua vida; ela nasceu em uma família de leitores. Lembra da mãe lhe contando histórias. O primeiro livro que pegou para ler por si mesma foi Harry Potter, a saga do bruxo mais famoso do mundo. “Não tinha como não amar. Na época, todos falavam das casas de Hogwarts, brincavam de bruxos e acabei entrando no meio. Foi uma experiência incrível, que me levou a diversos outros livros. Quando dei por mim, já estava apaixonada pelas palavras, sonhando em escrever livros e ter minhas histórias espalhadas por aí”.
Admiradora do trabalho da escritora inglesa Jane Austen, autora, dentre outros títulos, de Orgulho e Preconceito, e do francês Júlio Verne, autor de Vinte mil léguas submarinas, e outros, Coutinho começou a rabiscar no papel os seus primeiros textos aos 10 anos. “Tentei seguir aquilo que mais lia, e como meu avô amava poemas, eu me arrisquei a fazer rimas, que não deram muito certo. Eu tinha 10 anos e percebi que, ao invés de escrever poemas, eu estava descrevendo as coisas como em um conto de cordel. Percebi que meu foco era investir em histórias. Durante um tempo eu escrevia em cadernos e agendas, até uma amiga me apresentar as plataformas de fanfics”, conta.
Hoje, mesmo já tendo vivenciado a experiência da publicação por duas vezes, ela sente cada emoção como se fosse a primeira vez. “Todo o processo é uma correria. A gente está sempre pulando de galho em galho para achar bons [leitores] betas, bons ilustradores, bons revisores, bons diagramadores. Pessoas que cobrem algo que caiba em nosso bolso, mas que façam um serviço legal. Ainda tem a questão dos direitos autorais, que são extremamente caros, se você quiser ter uma segurança maior. Mas acredito que o maior desafio é controlar a ansiedade da publicação. A cada dia que a data se aproxima, você sente que vai ter um treco e os dias não passam, ao mesmo tempo que passam muito rápido. Você está sempre roendo as unhas e de repente surge um pequeno erro pra te desesperar ainda mais. É um nervosismo terrível”.
Mais do que escritora, Coutinho é também editora chefe da Editorial Rainha, focada na publicação de originais escritos por autores nacionais. “O nome Rainha vem como um alavanque para que os futuros autores entendam que são líderes do seu próprio futuro e que podem reinar no mercado literário mesmo com tantos obstáculos”, é como a editora, fundada em dezembro de 2020, é apresentada no seu site.
Insatisfeita com o tratamento dado aos autores, ela idealizou um modelo de editora que tivesse o respeito e a transparência como base de suas relações.
“O meu trabalho é basicamente acompanhar o autor. Eu apresento as pessoas que irão trabalhar no livro dele, cobro essas pessoas e até o próprio autor. No geral, a editora tem o foco na publicação de livros em versão física. Então, independente de onde a versão digital esteja disponível, nós cuidaremos da estrutura física do livro. A editora não toma partido no ebook (livro digital) dos autores e eles continuam recebendo seus Royals acordados com a Amazon normalmente”, ela explica, contando um pouco sobre a sua função dentro da empresa.
“Nosso serviço é até parecido com a forma de publicação da Amazon. Não temos um mínimo de tiragens, o autor não paga pelo contrato com a editora e ainda recebe 20% do valor de capa de seu livro. Eu sou a ponte que passa toda essa explicação e burocracia para eles”, completa.
Assim, trabalhando direto tanto na publicação dos próprios livros quanto na de outros, Coutinho entende dos desafios de se viver da escrita no Brasil, quando os obstáculos incluem a desvalorização contínua de seu esforço, a distribuição ilegal das obras e uma possível aprovação da CBS.
“Em um país como o nosso é difícil imaginar. Os autores nacionais vivem uma guerra diária entre a pirataria e o governo. Estão sempre tirando nosso sustento de alguma forma e faz com que acreditemos que a escrita não irá nos beneficiar por si só. Agora, por exemplo, virou moda todo ano falarem que precisam taxar os livros para melhorar o país, ou porque só rico lê, ou qualquer outra baboseira que precisem dizer. Os livros são cultura e isso deveria ser respeitado para que quem produz essa cultura se sinta motivado a continuar produzindo. Tirar o acesso a isso limita tanto quem lê quanto quem escreve”.
“Eu descontei a raiva em uns oito personagens, então… Leitores, já sabem quem culpar quando o favorito de vocês morrer”, Coutinho brincou em meio ao desabafo. “Eu perco tanto tempo [indo] atrás dos meus direitos como autora que, na hora de sentar para escrever, já estou exausta”, confessou ela, que acredita que, além desses fatores, a desvalorização das obras nacionais contemporâneas também se dá por conta da experiência com os clássicos na escola. Na visão dela, os leitores associam as problemáticas em algumas dessas obras e a linguagem erudita aos novos autores, como se estes reproduzissem os mesmos discursos e os mesmos estilos.
Apesar de tudo, é na escrita que ela se encontra. “Eu acredito que qualquer esforço, luta, dor de cabeça vale a pena no final”, disse Coutinho, referindo-se a lutar por um objetivo.
Por fim, completou: “Não tem coisa melhor do que você dizer que conseguiu aquilo que tanto quis. Então simplesmente não desista, vai dar certo em algum momento e você se orgulhará de ter lutado até cansar por isso”.
“Quando um autor nacional é pirateado, não é só um que está perdendo. Isso abre margem para outros passarem pela mesma coisa. Eu acho interessante que ocorra essa denúncia, que as pessoas fiquem mobilizadas e criem empatia pela causa.
Jonas Aquino, 20 anos, estreou no mercado alcançando o top 3 dos mais vendidos da Amazon, com o livro Castle High — O Retorno da Espada, publicado em outubro de 2020. Pode-se dizer que essa história de sucesso teve seu início na infância do cearense; ele era incentivado constantemente pela mãe, a quem ele dá os créditos por despertar o seu interesse pela leitura, e pelas pessoas ao seu redor a continuar escrevendo.
“Eu comecei a escrever muito cedo. Quando eu tinha uns 10, 11 anos, eu já escrevia algumas coisas. Recitava alguns poemas meus, algumas coisas que eu escrevia, para as pessoas próximas a mim. Eu também recitava na escola e sempre fui muito incentivado por isso. As pessoas me incentivavam muito a escrever, a continuar escrevendo”.
Ele, que desde pequeno teve contato com as obras de Mauricio de Sousa, Monteiro Lobato e Ziraldo, e, mais tarde, com as de J.K Rowling e Rick Riordan, começou a esboçar os primeiros rascunhos de Castle High aos 12 anos. “Castle High veio até mim, essa ideia veio muito bruta ainda, e ao longo do tempo, eu fui trabalhando nela. Mas realmente comecei muito cedo a escrever e, desde então, eu não parei”.
“Castle High surgiu há muito tempo. É um trabalho de anos, eu passei sete anos, mais ou menos, modelando a história, aparando, escrevendo e reescrevendo várias vezes o livro, até ele ficar como ficou no final. Eu acho que isso foi o diferencial de Castle High, todo esse tempo de trabalho, de preparo. O resultado final ficou muito bom, e acredito que tenha sido o segredo de Castle High. Além, claro, muita graça de Deus, porque sou muito devoto, e o apoio das pessoas ao meu redor. Isso tudo foi essencial”, disse, revelando o trabalho de anos por trás do livro de sucesso.
Aquino compartilhou com entusiasmo a reação das pessoas quando ele se apresenta como escritor, ressaltando que percebeu uma maior valorização no momento em que alcançou destaque com os seus livros. “As pessoas têm esse reconhecimento, é muito legal, muito divertido. As pessoas ao meu redor começaram a dar mais valor a essa questão da escrita, essa figura do escritor, depois que eu consegui conquistar esses lugares importantes com o meu esforço e com os meus livros”.
Ainda que esteja vivendo um excelente momento na carreira, Aquino concorda que o início da profissão é complicado. Para ele, um dos maiores desafios no momento em que um autor decide publicar o seu livro é fechar um contrato com uma editora. “As editoras costumam apostar bastante em pessoas que já estão inseridas no mercado editorial de alguma forma. Tem espaço para todo mundo, sim, eu aprendi isso depois de um tempo. Eu acredito que o maior desafio na publicação é as pessoas [das editoras] acreditarem que você tem a capacidade de formar o seu público leitor, aquela rede de fãs. As editoras realmente preferem pessoas que estão há mais tempo no mercado, seja diretamente escrevendo, seja de alguma outra forma, como uma personalidade, figura pública, fazendo algo relevante culturalmente. Isso desperta bastante interesse nas editoras”, contou.
Seguindo nessa linha de raciocínio, ele explica que, no Brasil, há formas de viver da escrita, mas a venda propriamente dos livros é a mais difícil. “Acho que a pessoa pode conseguir viver falando sobre livros no seu canal [Youtube], na sua rede social, Instagram, conseguindo parcerias através disso, e escrevendo para roteiros de cinema, porque isso é o que mais dá dinheiro para escritores brasileiros. É você escrever roteiros para cinema, para empresas, para chamadas de marketing de empresas, esse tipo de coisa. Eu acredito que isso dá muito retorno para os escritores. Mas eu conheço pessoas que já vivem da escrita, sabe, pessoas que vivem muito bem na escrita, e da venda dos seus próprios livros, então acredito, sim, que é possível. Não é fácil, mas é possível”.
A violação dos direitos autorais, crime previsto no artigo 184 do Código Penal, por meio da pirataria, é um problema que Aquino felizmente não vivenciou na pele, mas ele se solidariza com os autores afetados. Em abril de 2021, autores brasileiros lançaram a hashtag #AbaixoaPiratariaAmazonBr no Twitter, cobrando medidas de segurança da Amazon contra a pirataria das obras nacionais disponibilizadas na plataforma. “Quando um autor nacional é pirateado, não é só um que está perdendo. Isso abre margem para outros passarem pela mesma coisa. Eu acho interessante que ocorra essa denúncia, que as pessoas fiquem mobilizadas e criem empatia pela causa. Que não apoiem somente aquele escritor que é seu amigo, mas também os outros autores nacionais, porque não é só um ou outro que passa por esse tipo de coisa. São muitos os escritores que têm os seus livros pirateados todo santo dia”.
Ele cita o complexo de vira-lata, conceito elaborado pelo escritor Nelson Rodrigues, como justificativa para a desvalorização das obras nacionais contemporâneas, explicando que a visão de que o que vem do exterior é melhor ainda está enraizado no brasileiro. “A gente tem que ‘botar’ na cabeça que o livro nacional tem esse gostinho de ser escrito justamente para gente”.
Questionado sobre a proposta de taxação dos livros, Aquino admitiu que terá de fazer mudanças na sua escrita, caso ela seja aprovada. A mudança será necessária para não prejudicar o bolso do leitor. “Antes eu estava muito empolgado em escrever livros grandes. Hoje em dia eu já não tenho mais essa empolgação, embora eu continue escrevendo. Antes eu não tinha medo de o livro ficar muito caro para as pessoas porque estava um preço razoável. Vai acabar influenciando no meu processo de escrita no sentido de ter que aparar mais as pontas. Eu sou uma pessoa muito detalhista, um escritor que gosta muito de detalhes, muito de aprofundar na narrativa não só nos cenários, mas também no psicológico [dos personagens]. Então eu sempre acabo fazendo longas narrativas justamente por causa disso. Com essa taxação dos livros, pode ser que eu precise me policiar mais. Acabará deixando meu trabalho mais enxuto”.
Aquino, que terá Castle High repaginado pela Editora Aventurástica, finaliza dando um conselho a todos os futuros autores: “Pesquisa. Eu tenho visto autores, que são amigos meus, sendo ‘cancelados’ por falas errôneas e por más colocações, e eu acho isso um perigo. Não é porque a gente tem muitos seguidores e uma visibilidade maior que isso nos isenta de errar. Então o que eu aconselho hoje em dia é você tentar pensar mais nas relações sociais, relações de raça, cor, gênero e etnia, porque a gente pode acabar ferindo outra pessoa mesmo sem intenção, só porque não nos aprofundamos sobre o caso e acabou generalizando, falou o que não devia”.
“É muito interessante pesquisar, tentar entender essas relações, esses contextos sociais para poder escrever uma literatura que abrange a todos, uma literatura que abrace todas as pessoas. Recentemente a gente tem visto muitos livros nesse estilo, livros com muita representatividade, isso é maravilhoso, um avanço no mercado literário, então, o meu conselho para os próximos autores é justamente este, sejam os mais diversos possíveis nos livros de vocês. O nosso mundo é diverso, o nosso mundo é rico em diversidade, então não adianta tentar transformar tudo numa narrativa hétero-cis-normativa, sendo que o mundo tem várias cores”.
Uma mudança no horizonte
“Acabou-se criando um imaginário de que a literatura nacional é resumida a
poucos gêneros, com poucos autores conhecidos que, de certa forma, já se sabe o que esperar.”
Thalliany Ribeiro, 21 anos, é uma das administradoras do Projeto Estante das Traças, perfil focado em divulgar obras literárias e autores nacionais, criado em setembro de 2020. No Twitter, o projeto conta com mais de 6.790 seguidores.
O projeto é um dentre as novas iniciativas de valorização de livros escritos por brasileiros que estão surgindo no último ano nas redes sociais. São perfis encabeçados por leitores que acreditam na força da literatura nacional e que já estão cansados dessa desvalorização.
“A ideia inicialmente era de incentivar a leitura no geral, e partiu de uma das antigas administradoras, que promovia sorteios de livros com uma periodicidade no próprio perfil dela. Cresceu muito e começamos com as resenhas, a incentivar a leitura de livros nacionais e apoiar esses autores”, contou Ribeiro sobre o início do projeto.
Todo o conteúdo produzido pelo Estante das Traças é feito totalmente de forma independente, uma atividade paralela aos estudos e aos trabalhos. “Somos todos voluntários. Com o projeto, não recebemos nada. Na verdade, até gastamos, já que os sorteios e as premiações são custeadas pela gente. No início, estávamos na pandemia e estudando em casa, então era mais tranquilo de conciliar. Com o tempo, entrou faculdade e muitas de nós ainda tem que conciliar com o trabalho, então acaba apertando”.
“Acho que a falta de tempo é um problema. Acabamos caindo na falta de incentivo também. Porque, como optamos por falar de nacionais, acaba sendo uma jornada bem independente”, completou.
Sobre o tratamento dado às obras literárias produzidas no Brasil em comparação às estrangeiras, Ribeiro percebe que os livros internacionais repercutem muito mais. “Livros estrangeiros são mais conhecidos, geralmente têm todo um fandom no próprio Twitter, que acaba repercutindo muito mais os posts, por exemplo. Quando falamos de nacional, é você apresentar o livro e a regra é que geralmente não conhecem ele”.
De fato, boa parte dos leitores é mais receptiva com as obras estrangeiras, e, segundo Ribeiro, isso é um reflexo da maneira como o próprio mercado editorial valoriza mais os livros de autores estrangeiros. “É muito por falta de conhecimento, divulgação, amparo do próprio mercado literário mesmo. Por ser pouco conhecida, acabou-se criando um imaginário de que a literatura nacional é resumida a poucos gêneros, com poucos autores conhecidos que, de certa forma, já se sabe o que esperar. Então muita gente acaba acreditando, por esses autores não terem grandes editoras os apoiando, por exemplo, que vai ser um livro pior, mal produzido. Mas principalmente a falta de divulgação e de incentivo é que acaba causando esse desconhecimento”.
No entanto, Ribeiro está otimista quanto ao futuro, e já nota mudanças. “Hoje em dia está se criando uma rede de apoio de nacionais bem legal, e essa rede abraça não só os autores, como as páginas como a nossa, como as editoras pequenas e os outros profissionais dessa cadeia produtiva. Inclusive, muito mais que no começo, hoje em dia há mais gente querendo conhecer livros nacionais, querendo começar a ler”.
“É muito triste essa realidade que desvaloriza tanto o trabalho tão incrível dos nossos autores.
Érica Rostirolla, 20 anos, consumia perfis de divulgação de autores nacionais antes de, em março de 2021, criar o próprio perfil no Twitter, o Divulga Gratuito, ou DG. Este soma mais de 8.770 seguidores até o momento (29/06).
“Descobri o booktwitter faz pouco tempo e sempre aproveitava as promoções de livros gratuitos que apareciam, principalmente pelo CadêLGBT e Divulga Nacional. Um dia, recebi um comunicado de que um livro de uma autora independente tinha sido pirateado e fiquei muito chateada com isso, então pensei em criar um perfil para publicar os links de todos os livros gratuitos que eu achasse para facilitar o acesso de outras pessoas à leitura”, revelou Rostirolla.
Muitos autores colocam seus livros digitais gratuitos na Amazon por um tempo, uma forma de divulgar o próprio trabalho. “Para um perfil focado na divulgação da literatura nacional, sempre me deparo com situações em que eu gostaria de poder ajudar mais, mas, infelizmente, não há o que eu possa fazer”, lamentou, referindo-se à pirataria que ocorre mesmo quando os autores disponibilizam o seu trabalho de forma gratuita na plataforma.
Rostirolla crê que o desprestígio da literatura brasileira contemporânea é um problema mais antigo. “Eu acho que é um fator histórico já. O brasileiro tem a cultura de diminuir o seu próprio valor, a famosa síndrome do vira-lata, e isso reflete também na literatura. Mesmo tendo diversos nomes grandes na literatura contemporânea, o público continua preferindo e exaltando obras estrangeiras acima das nacionais. É muito triste essa realidade que desvaloriza tanto o trabalho tão incrível dos nossos autores”.
Contudo, ela diz que já é possível verificar uma procura maior pelas obras nacionais hoje em comparação aos anos anteriores, e os perfis de divulgação estão contribuindo para isso. “Nos últimos anos, os autores nacionais começaram a materializar seus sonhos e seus projetos, saindo do Wattpad e indo para a Amazon, vendendo cópias físicas até. Isso tem gerado uma mudança e mais reconhecimento ao trabalho que era praticamente invisível para o público nacional, e com perfis novos como o Divulga Nacional e o CadêLGBT, e o meu também (risos), as pessoas estão tendo mais acesso às novidades do mundo dos livros”.
À respeito do futuro do Divulga Gratuito, Rostirolla compartilha: “Nesses últimos três meses de DG, já foram mais de 2000 livros gratuitos. Com a ajuda do LiteraClub, meu grande parceiro, e as threads diárias do Divulga Nacional, o peso do meu trabalho como ‘divulgadora de gratuitos’ tem sido dividido em outros ombros. E isso é ótimo! A intenção do DG nunca foi para lucro próprio, e sim para democratizar o acesso à leitura. Para continuar auxiliando os autores nacionais, mudanças serão necessárias, então estou planejando criar projetos de leitura, inspirados pelo projeto de contos do Divulga Nacional e de leitura coletiva do LiteraClub, para incentivar o público a ler os livros que foram distribuídos”.