Micro, invisível e indestrutível

Praia do Laranjal. /Foto: Prefeitura de Pelotas

Por Gabriella Cazarotti

O ano era 2011 quando Pedro Henrique Santaliestra ingressou na Universidade Federal de Pelotas, no curso de Engenharia de Materiais. Mais tarde, através do Ciência sem Fronteiras, entrou em contato com a preocupação ambiental da Europa. Liverpool, cidade em que viveu e estudou por um ano, se orgulha de suas ações ecológicas sustentáveis, fato que instigou e motivou Pedro em seus estudos. 

“Engenheiro de materiais” é o título premiado aos que chegam ao final do curso, prêmio esse que gerava dúvida e tristeza em Pedro. O cenário de trabalho da Engenharia de Materiais no Brasil corresponde às indústrias do setor primário que, por sua vez, são muito poluentes. 

Já na reta final do curso, esse fato o angustiava por não conseguir se identificar com grandes indústrias de aço ou cimento. Não havia sequer retorno social ou ambiental nesses setores permeados por lucro e exploração, não havia interesse da parte de Pedro em contribuir com essa engrenagem. 

Seu sonho, na realidade, sempre foi ser professor e pesquisador do ensino superior. Entretanto, antes de alcançar esse objetivo, alguns ciclos precisavam se findar. A graduação chegava ao fim e, com ela, a cerimônia ritualística de escrever um trabalho de conclusão de curso. Decidiu pesquisar se havia traços de microplástico nas águas da Lagoa dos Patos. Foi quando Pedro procurou a professora Fabiula. 

 

Fabiula Danielli Bastos de Sousa começou a trabalhar com reciclagem ainda na iniciação científica. A professora da Engenharia de Materiais da UFPel percorreu alguns quilômetros antes de chegar à cidade de Pelotas. Doutora em Nanociências e Materiais Avançados pela Universidade Federal do ABC e em Génie des Procédés et des Produits pela Université de Lorraine na França, ambos na área de reciclagem. 

Seu material de escolha inicialmente foi a borracha. Interessada por seu impacto ambiental, Fabiula se apaixonou pelo polímero ainda na graduação. Mas o maquinário para seguir as pesquisas em borracha é muito específico e são poucos os laboratórios no Brasil que possuem essa infraestrutura. Porém, sua dedicação à reciclagem não seria interrompida por esse pequeno gigante detalhe. 

Resolveu adaptar sua atuação. Na UFPel, voltou-se à reciclagem de materiais plásticos em geral, focando-se na  conscientização e nos impactos socioambientais por eles causados. As disciplinas ministradas por Fabiula são todas nessa área, inclusive os TCCs dos seus orientandos. Mas Pedro a procurou. Sua pesquisa fugia um pouco dessa temática. Ainda era ambiental, mas era… micro. E macro, simultaneamente.  

 

A Lagoa dos Patos é um corpo hídrico presente ao leste do estado do Rio Grande do Sul, suas dimensões atingem 265 quilômetros de comprimento, 60 quilômetros de largura e 7 metros de profundidade. Um sistema de extrema importância econômica, social e ambiental para o estado. 

Existem leis que protegem os corpos hídricos do país, mas, a nível municipal, a legislação para a proteção da natureza ainda é bastante deficiente. A Lagoa margeia muitos municípios da região sul onde a fiscalização não é efetiva e a legislação é ignorada. Para a preservação desse sistema, seria necessário que todos municípios coletassem e tratassem seus esgotos antes de lançá-los nos corpos d’água da rede de drenagem das bacias que contribuem para a Lagoa, uma vez que esse fluxo acabará chegando à Lagoa em algum momento. 

A proximidade, a mobilidade, a existência de grandes centros urbanos próximos das águas e a limitação do descarte de esgoto feito pela SANEP (Serviço Autônomo de Saneamento de Pelotas) foram os principais fatores para a decisão de Pedro de coletar as águas da Lagoa dos Patos no bairro do Laranjal, em Pelotas. Essa coleta, fomentada pela hipótese de haver microplástico nas águas da Lagoa dos Patos, iniciou o trabalho.

 

O conhecimento sobre microplástico é relativamente recente, devido ao tamanho da sua partícula. Eles são fragmentos com dimensões menores do que 5 milímetros, praticamente invisíveis a olho nu. Existem duas classificações para microplástico: primários e secundários. 

Os primários são plásticos produzidos na escala micro. Projetados para serem pequenos. Materiais de higiene e beleza possuem grandes quantidades dessas partículas: sabonetes e cremes esfoliantes, pastas de dente com microesferas, glitters e maquiagens em geral. 

Já os microplásticos secundários são formados a partir da degradação de macroplásticos, ou seja, pedaços de plástico maiores. Uma sacola de mercado, por exemplo, descartada incorretamente na natureza, sofre degradação natural. As intempéries degradam o material fragmentando-o em partes menores. Ao longo de muitos anos, micropartículas de plástico se formam.

Essas minúsculas partículas estão em todos os lugares; flutuando nos ares e nas águas. Dentro de nós. Uma robusta pesquisa publicada na revista Science of the Total Environment foi a primeira a identificar plásticos nos pulmões de pessoas vivas, adquiridas via inalação. 

Os animais sofrem igualmente com tais condições. Mas é uma fabulação acreditar que evitar comer peixes resolve o problema da ingestão de microplásticos. O sal marinho, a água engarrafada, o mel e outros produtos que chegam às mãos em embalagens também possuem certa quantia de plástico. Não se sabe a quantidade nem os impactos disso ainda, por isso pesquisas são fundamentais. E Pedro começava a sua. 

 

O processo teria que ser simples. Filtrar litros de água do Laranjal, colher amostras do material filtrado e analisá-las em laboratório. A coleta foi feita por um processo de baixo custo, seguindo as técnicas adequadas. Sem margem para erros. 

Foram usados dois galões de 5 litros. Ambos com um furo no fundo para facilitar a vazão da água. As tampas também foram adaptadas para fixação dos filtros: cortaram-se círculos de aproximadamente 6 centímetros de diâmetro com o centro alinhado ao meio das tampas.

Para apanhar partículas tão minúsculas seriam necessários filtros com tramas estreitas o suficiente para que a água transpassasse e o resíduo permanecesse, então Pedro optou por tecido branco de algodão. 

No procedimento, os galões foram afundados a 15 centímetros da superfície da água e, após serem enchidos completamente, as tampas foram rosqueadas na boca de cada galão, então estes foram virados com a boca para baixo, para que a água escoasse passando pelo filtro, sobrando apenas os resíduos. 8 horas, 40 filtros e 400 litros de água mais tarde, era hora de ir ao laboratório. 

 

Uma vez nos laboratórios da UFPel, as amostras foram submetidas aos procedimentos encontrados na literatura acadêmica, dos quais Pedro usou como método. Os filtros foram submersos em água destilada para remoção das partículas retidas, dentro de vidrarias laboratoriais chamadas de “béqueres”, que se assemelham a copos de vidro. Ele retirou os tecidos de algodão dos béqueres, verificou a completa secagem da água e partiu para a análise da rica poeira que assentava no fundo dos copos.

E ali estavam em meio a conchas, grãos de areia, folhas e outros elementos naturais partículas de Polietileno e Teflon, ou seja, plástico. Um material inerte, minúsculo e quase impossível de retirar da natureza. A hipótese de Pedro, enfim, estava comprovada. 

 

Ainda que a idealização de se retirar todo o microplástico das águas através da filtragem seja sedutora, ela está longe de ser uma solução para esse problema. É praticamente impossível filtrar todos corpos d’água e, mesmo que fosse, seriam retirados microrganismos importantes para o ecossistema aquático. 

Quando se há um problema tão grave quanto o do plástico mal descartado na natureza, normalmente criam-se soluções mirabolantes por parte da indústria, e é nesse cenário que se encontram os “biodegradáveis”. Parece solução, mas não é. Um polímero só é totalmente biodegradável em uma condição específica de solo,  temperatura, umidade, Ph, entre outros fatores. Portanto, o material ao encontrar  condições adversas pode nunca se degradar totalmente, contribuindo para a poluição. 

Da mesma forma que em uma lavagem de roupas de tecidos sintéticos, por exemplo, liberam-se milhões de fiapos plastificados. Essa ação, tão prejudicial à natureza, acontece no ambiente doméstico todos os dias. A solução, de fato, está no conceito antigo e bem conhecido, os 3Rs da sustentabilidade: “reduzir, reutilizar e reciclar”. É necessário reduzir na fonte o consumo de plástico, através de atitudes que partem da própria população. Se a quantidade consumida é menor, portanto o impacto ambiental também é atenuado. 

A redução é feita ao evitar copos descartáveis e ao fazer uso de sacolas e garrafas de água reutilizáveis. Ao evitar vestimentas de poliéster, náilon, laicra e viscose. É igualmente necessário abdicar de produtos de higiene e beleza com microesferas em sua composição. 

É infinitamente mais difícil lidar com resíduos poluentes já no meio ambiente do que modificar o modo de pensar, viver e consumir da humanidade. 

Pedro Henrique e Professora Fabiula Danielli/ Foto: Fabiula Danielli

 

Os resultados da pesquisa foram publicados pela revista internacional Environmental Challenges, veículo de grande relevância voltado a problemas ambientais. Disponível em: doi.org/10.1016/j.envc.2021.100076

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