Insensibilidade: o horror que se escolhe não enxergar
Vencedor de dois Oscars, Zona de Interesse conta a vida pacata de uma família nazista vivendo lado do campo de concentração de Auschwitz. Explorando o potencial da banalidade abafar o som do desespero, terror e morte que ilustraram uma das mais horripilantes crueldades da história humana.
Por Felipe Boettge / Em Pauta
Inspirado no livro homônimo de Martin Amis, Zona de Interesse dá partida a sua narrativa com um dia calmo, bonito e tranquilo da família de Rudolf Höss (Christian Friedel), comandante do campo de concentração de Auschwitz e sua esposa Hedwig Höss (Sandra Hüller). A princípio, a família feliz e tranquila toma banho em um lago, comemora o aniversário do patriarca, brinca pelo pátio e vive tudo que uma família normal pode viver. Isso, com um pequeno porém: Tudo que eles fazem, tem e celebram é consequência direta de um massacre brutal que está, literalmente, do outro lado do muro de sua casa.
Tendo essa ideia estabelecida, Jonathan Glazer conduz através de sua direção discreta, uma narrativa que intensifica a banalidade de uma vida familiar, permitindo longas cenas de Rudolf apagando as luzes da casa para dormir, das crianças brincando no pátio ou de Hedwig e as empregadas preparando as coisas da casa. Com isso, o filme escolhe não mostrar uma história padrão, não temos um personagem a qual nos apegar, alguém que pode ser o diferencial em meio a tanto terror ou então um inimigo pelo qual odiar. Apesar de sabermos todo o mal que a família ignora e o comandante, propícia, a verdadeira trama do filme se dá através do som que vem do outro lado do mundo. Quase como um zumbido de plano de fundo, são os gritos de terror, os tiros, os choros agonizantes de desespero e as chaminés que sempre estão em atividade que comunicam a intenção e mensagem do filme por trás da família nazista vivendo dias tranquilos, por trás do muro na nossa frente.
Apesar de parecer, o filme não é nada sutil nesta abordagem, todos os acontecimentos são pontuados com os terríveis sons do campo de concentração e essa presença não só incomoda, mas se faz protagonista de toda a duração do filme. Saber o que está acontecendo do outro lado e não precisar enxergar a tragédia sem precedentes, faz o filme ganhar um impacto ainda maior. Permitir que parte dele aconteça na cabeça de cada um que assiste, de forma diferente e independente, mas guiada pelo que acontece e se escuta em tela, torna a experiência de Zona de Interesse única, mas também complexa. Em um primeiro plano, o filme apresenta uma família cercada desse horror descomunal vivendo sua vida tranquilamente, com problemas comuns e sem nenhum ponto de ação, suspense, drama ou castigo por tudo aquilo e se quem acompanha essa história não se permitir a mais que isso, o filme pode parecer uma exaltação da vida com o nazismo ou então uma compilação de cenas que não apresentam nada concreto.
Mas é muito mais que isso, Jonathan Glazer não se engana quando atinge uma enormidade de assuntos atuais e atemporais com a mensagem que passa por trás desse filme. A crítica àqueles que escolhem não enxergar, que a crueldade está, não em fazer, mas em ignorar e tratar o ódio, a morte e o absurdo como cotidiano, como banal. Uma mensagem que diz muito e que pode remeter a infinitas situações e que precisa ser sentida através do som, através da crueldade da família Höss e de toda sua insensibilidade que é dolorosa.
No momento em que o filme assume o caminho mais difícil, onde não mostra nada do que está acontecendo e que choca, o som se torna uma responsabilidade que pode ser um trunfo ou o motivo de um fracasso. Entretanto, a capacidade de criar, chocar, mexer e provocar com apenas ruídos de plano de fundo fazem com que a premiação no Oscar de Melhor Som seja muito mais do que justificada. Aspecto esse que faz todo o diferencial e torna Zona de Interesse uma obra que vai além do que se espera, necessitando de uma disponibilidade, atenção, participação e sensibilidade que não são comuns a audiência e que podem causar um estranhamento.
De todas as formas, o filme aborda o nazismo e sua crueldade de uma forma poucas vezes vista antes e sem correr risco algum de abrir margem alguma para outras interpretações. Com uma inventividade sem igual e uma capacidade técnica que o fez merecer a maior premiação do cinema, Zona de Interesse se torna uma obra atemporal que pode e será revisitada por muitos anos, se conectando com algo inerente à humanidade de forma muito poderosa, a insensibilidade.