Contar para não esquecer – Resenha do filme A Sombra de Stalin

Perturbador e necessário, filme retrata período obscuro da Grande Fome (1932-1933) na Ucrânia

Por Letícia Vieira

Pôster do filme A Sombra de Stalin/ Foto: divulgação

Disponível na plataforma de streaming Netflix, A sombra de Stalin (2021) é relevante não só por dar um pouco de contexto histórico para a relação entre Ucrânia e Rússia, países que estão em guerra no momento, mas também por relembrar a importância do jornalismo em tempos incertos.

Baseado na vida e publicação mais famosa do jornalista freelancer Gareth Jones (1905-1935), a trama do filme se passa na tensa Europa pré Segunda Guerra Mundial. Intrigado sobre os relatos de prosperidade vindos da União Soviética (URSS), o personagem de Jones (interpretado por James Norton) viaja até lá para averiguar a origem de tanta riqueza, ação que não agrada a ditadura comunista. 

Após o assassinato de seu amigo e uma viagem clandestina para a Ucrânia, onde descobre de onde vem a fartura do grande escalão da URSS, Jones é preso e deportado de volta a Inglaterra com a ameaça de morte se contar para alguém os horrores que viu em sua estadia. Seguindo o que aconteceu na vida real, Gareth Jones publica, em 1933, uma reportagem sob seu próprio nome expondo ao ocidente a realidade da fome e abuso que cidadãos da zona rural da URSS sofriam.

 

Holodomor, expressão ucraniana para “matar de fome” é a realidade encontrada por Jones e gera cenas perturbadoras, se o leitor for sensível a temas dessa natureza, evite ver o filme./Foto: Divulgação

Com um ritmo lento para estabelecer seus personagens e assim criar a tensão necessária para o enredo, Agnieszka Holland, diretora do longa, consegue criar um clima frio, solitário e perturbador que consegue ser também respeitoso ao retratar um tema tão mórbido. As atuações são ótimas e a trilha sonora (principalmente a cantiga cantada pelas crianças da vila em dado momento do filme) marca o telespectador.

Monumento Holodomor, em Kiev./ Foto: Museu do Holodomor

A Grande Fome da Ucrânia (1932-1933) foi um período em que a fome foi utilizada de forma sistemática para aniquilar com a classe kulaks (burguesia rural) e com os camponeses que eram contra a estatização da agricultura da URSS. A estratégia do governo foi começar a cobrar uma quantidade de produto dos camponeses (82% da população soviética e em sua maioria de etnia ucraniana) que era muito superior a produção, não sobrando nada para a alimentação. 

Como mostrado no filme, à prática de canibalismo e uso de violência desenfreada foram as formas que as vítimas conseguiram contornar a situação. Segundo estimativa publicada em 2010 pelo Tribunal de Recurso de Kiev, 3,9 milhões de pessoas morreram fome no período de 1932 a 1933 e 6,1 milhões faleceram por motivos decorrentes da mesma, sendo a maioria dessas crianças.  

Apesar de seu alto número de atingidos, a Grande Fome só começou a ser discutida como um fato histórico pela comunidade internacional em meados da década de 90 e apenas em 2003 foi reconhecido por 16 países como um genocídio contra o povo étnico ucraniano (o Brasil ainda não reconhece como tal, mas existe um projeto a favor desse posicionamento em andamento no Senado). 

A sombra de Stalin se torna um marco na luta pelo reconhecimento da existência do Holodomor por se tratar do primeiro filme para as massas sobre o assunto. Em discussão sobre a obra no Twitter, Agnieszka Holland disse que aceitou dirigir o filme quando percebeu que “os crimes nazistas foram reconhecidos como crimes contra a humanidade, mas os de Stálin acabaram esquecidos e perdoados”.

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