Circe: o mito da feiticeira da Odisseia recontado por Madeline Miller
Maria Eduarda Lopes/Em Pauta
Em 2018, Madeline Miller lançou seu segundo romance intitulado de Circe. A autora estadunidense é conhecida pelo seu corajoso revisionismo feminino, e já possuía prestígio graças aos prêmios conquistados com o seu primeiro livro, A Canção de Aquiles. O lançamento de Circe trouxe um renome maior para sua carreira ao alcançar o topo dos best-sellers do The New York Times e ser eleito a Melhor Fantasia do ano do Goodreads.
O livro é uma releitura de um apanhado de contos clássicos gregos, onde a história de Circe pode ser contada por ela mesma, preenchendo lacunas que não foram elaboradas pelos poetas antigos. A personagem coadjuvante que aparece em A Odisseia de Homero, e em outras obras como Metamorfoses de Ovídio, é geralmente descrita como feiticeira, mestre de ervas e venenos, que transforma homens em porcos e torna-se amante de Odisseu quando o herói chega em sua ilha e descobre como sobrepujar sua magia.
Entretanto, na excelente obra de Miller, a personagem se torna protagonista, e podemos compreender muito melhor a sua complexidade, já que somos colocados como espectadores desde o momento do seu nascimento. Com uma construção de mundo envolvente e uma linguagem que flui como água, o leitor é capaz de se colocar na pele de uma deusa e experienciar as tribulações que a imortalidade a inflige.
“Quando nasci, o nome para o que eu era não existia”. Bruxa. O livro se inicia com Circe apresentando sua vida de forma nada glamourosa para o que se espera de uma deidade. O incômodo sobre a falta de pertencimento da personagem cresce a cada capítulo, e é totalmente intencional. A decepção e desdém de seus genitores divinos, o titã Hélio e a ninfa Perseis, as zombarias e perseguições de seus irmãos, Pasifae e Perses, e logo depois a partida de seu irmão mais novo Aietes, o único quem verdadeiramente importava-se, a paixão pelo mortal Glauco e o primeiro coração quebrado, a desintencional criação do monstro Cila… Desde o seu concebimento, Circe era ignorada e desconsiderada por toda a corte divina por sua clara distinção com o restante da sua ascendência: ela parecia e soava como uma mortal.
A sua descoberta sobre magia é quase uma lufada de ar fresco: a esse ponto, e logo nos primeiros capítulos, seria minimamente justificável ela realmente se tornasse a deusa impiedosa da qual os poetas escreveram. Porém, ao decorrer da narrativa, Circe passa por incontáveis angústias e sempre se mantém fiel a si mesma. Sua força e bravura era segurança de que não importava a magnitude do obstáculo, Circe seria capaz de enfrentá-lo.
No exílio na ilha de Eana, é quando a história realmente engata o tom do restante do livro. O seu primeiro contato com feitiçaria, apesar de firmar a razão do seu banimento, é o pontapé inicial da jornada de autodescobrimento de Circe. Eana era sua nova casa, pelo resto da eternidade, e é lá onde a maior parte da trama se desenvolve. Esse tempo de isolamento contribui muito para a sua evolução pessoal. Embora se trate de uma deusa, a jornada interna de Circe é muito humana. E nesse período, ela é capaz de crescer e evoluir. Claro, que com o passar de tantos anos, décadas e séculos, se Circe não progredisse, seria inviável a sustentação da obra. Mas a autora retrata as outras divindades como exatamente as mesmas desde o início: mesquinhas, gananciosas, sedentas por intrigas, insensíveis… Não há crescimento de índole ou mudança de comportamentos, e isso destaca Circe do restante dos seus ascendentes. Uma decisão muito perspicaz de Miller.
A parte mais difícil e pesada da leitura é quando nos é apresentada a motivação acerca das transmutações que Circe realizava em homens, que ao contrário do que os mitos originais contam, não eram tão inocentes. Em uma das inúmeras visitas que Circe recebe na ilha, um navio aporta com uma tripulação de homens desamparados e perdidos, e Circe os recebe com hospitalidade em seu palácio. Desconfiada, ela mistura ervas nas bebidas como medida cautelar. Os marinheiros, ao perceberem que a anfitriã estava sozinha, se unem para abusá-la. Apesar de não conseguir se defender nos primeiros instantes, Circe retoma suas forças, e entoa palavras mágicas que transformam todos aqueles homens em porcos. A partir desse acontecimento terrível, a cada novo navio que aportava, Circe fazia questão de receber os marinheiros e transformá-los em suínos; a maioria era transmutada por suas intenções bárbaras, e poucos ficavam livres do chiqueiro por terem gratidão verdadeira para com a deusa.
E pensando na mitologia grega, estupro e outros tipos de abuso são uma escolha infelizmente óbvia para explicar as circunstâncias dos atos de Circe. Nos inúmeros contos perpassados desde a antiguidade, o quão comum era para a mulher sofrer o destino medonho de uma violência acometida por um deus ou um herói? Perséfone, sequestrada por Hades. Leda, rainha de Esparta e mãe de Helena de Tróia, enganada por Zeus em forma de cisne. Tétis, ninfa dos mares tomada à força por Poseidon. Ariadne, irmã do Minotauro sequestrada por Dionísio. O mito faz parte de uma tradição cultural, uma narrativa popular. Na Grécia Antiga, para a sociedade grega ateniense formada apenas por homens, as mulheres eram criaturas menores que não possuíam direitos ou cidadania, e muito menos uma voz para deliberar escolhas.
Circe esmaga o coração do leitor ao dizer: “Lembro-me do que pensei, nua sobre a pedra áspera: sou apenas uma ninfa, afinal de contas, e nada é mais comum entre nós do que isso”. Ou numa cena onde Circe discute contra Hermes a respeito de levar para a cama as ninfas isoladas em Eana, o deus mensageiro diz: “Ninfas sempre correm. Mas vou lhe contar um segredo: elas são péssimas em escapar”.
É o episódio fatídico que antecede um dos encontros mais ilustres de A Odisseia: a chegada de Odisseu e seus guerreiros na ilha de Eana. Ao atracar o navio, os homens sobem ao palácio e são bem recebidos pela feiticeira, até o momento de serem transmutados em porcos. Então, Hermes revela à Odisseu uma forma de sobrepujar as ervas e encantamentos de Circe. Ao contrário do que é contado na Odisseia, em que o herói embarga a espada e Circe se atira em seus pés pedindo por clemência e oferecendo o leito de sua cama como prova de honestidade, no livro de Miller, ambos conversam pacificamente e a paixão surge de maneira muito natural.
Circe revela logo após: “Muitos, muitos anos depois eu ouviria uma canção sobre nosso primeiro encontro. […] Eu não fiquei surpresa com o retrato que a canção pintava de mim: a bruxa orgulhosa desfeita diante da espada do herói, ajoelhando-se e pedindo misericórdia. Humilhar mulheres parece ser um dos passatempos preferidos dos poetas. Como se não pudesse haver uma história se não rastejarmos e choramingarmos”.
Outro aspecto que pôde ser abordado na vida de Circe, que antes não havia sido explorado nos clássicos, é a maternidade. O fruto do amor entre Circe e Odisseu resulta num filho. O herói retorna para Ítaca sem ter conhecimento do seu novo herdeiro. Mais adiante na trama, esse filho possui um papel-chave no clímax que antecede o encerramento da obra.
O final do livro é plenamente satisfatório: sem spoilers aqui, mas é algo que cabe muito a todos os personagens, e principalmente à Circe e as novas relações e visões de mundo que ela adquire.
Madeline Miller escreve para dar novos sentidos aos clássicos. A teoria revisionista, partindo de uma perspectiva feminina, tem como objetivo representar personagens desprezadas ou subjugadas pelas autorias masculinas, e oferecer um papel de protagonismo para elas. O revisionismo de cunho feminista visa reinvidicar um espaço narrativo onde o patriarcado consolidou a exclusão das mulheres.
Em entrevista para PBS NewsHours em divulgação de Circe, Miller diz: “Eu quero que os leitores possam entender a atemporalidade dessas histórias, onde, infelizmente, muitas das coisas que Circe sofre, sendo menosprezada, prejudicada, afastada dos corredores do poder, abusada sexualmente, são coisas com as quais estamos lidando até hoje”.
Circe é uma releitura de uma deusa poderosa, uma bruxa, filha, irmã, mãe, amante e mulher. Ela é retirada de um lugar marginalizado para ser colocada como protagonista e contar sua vida. Não é apenas uma obra que revisita o passado, ela adiciona contexto, profundidade, uma visão unilateral, e não apenas recortes de uma vivência apropriada de pontos de vista masculinos. Nem mesmo sendo divindades mulheres estão seguras disso. É por esses inúmeros motivos que Circe se faz um livro tão importante e atual.