Algum lugar no futuro
O primeiro filme de Lázaro Ramos como diretor estreou nos cinemas no dia 14 de
abril e já é a segunda maior estreia de um filme nacional no cinema este ano
Por Sarah Cremonini de Oliveira
Trabalhado inicialmente em 2011 como peça teatral de Aldri Anunciação, “Namíbia Não!”, pelo próprio Lázaro, a ideia em transformar o teatral e cinematográfico veio por volta do ano de 2013, onde já começou a ser escrito por Ramos e Anunciação junto aos escritores Elísio Lopes Jr. e Lusa Silvestre, mas só teve a sua produção de fato em 2019 e lançamento em 2022, devido a pandemia da Covid-19 e um boicote de membros do governo por vias burocráticas na ANCINE (Agência Nacional do Cinema) com a intenção de impedir o lançamento da obra.
O filme se localiza em um Brasil do futuro onde a população negra – agora chamada de população de melanina acentuada – ainda luta por equidade na sociedade brasileira. Antônio (Alfred Enoch) é um advogado representante da Associação dos Advogados de Melanina Acentuada que está exigindo na justiça por indenizações sociais para os negros devido aos mais de 400 anos de escravidão e as desencadeações desse período.
Ao invés de tomarem medidas eficazes, o governo brasileiro anuncia o programa de retorno à África para as pessoas de melanina acentuada que gostariam de retornar aos países de seus ascendentes. De início, os personagens não levam a sério a medida do governo, mas no decorrer do longa a situação muda: o governo passa a obrigar por lei que todas as pessoas afro-descendentes fossem deportados para o continente africano. O filme se divide entre Antônio e seu primo André (Seu Jorge) resistindo em sua casa para não serem pegos pela polícia do Ministério da Devolução e Capitu (Taís Araújo), esposa de Antônio, fugindo do hospital onde trabalha como médica após uma invasão policial.
Nas palavras de Angela Davis: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É preciso ser antirracista.”, o longa mostra o quanto essa frase é certeira. Enquanto as agressões só aumentam e os números de deportação apenas cresce, vários brasileiros de diferentes etnias se tornaram opostos à medida, protestando, ajudando e protegendo aqueles que estavam sendo violentados e retirados à força se seu próprio país pelas mãos daqueles que deveriam protegê-los de tal atrocidade.
Alfred Enoch atua brilhantemente em seu primeiro trabalho em português, interpretando o jovem advogado que buscava por um futuro melhor para sua comunidade. As cenas em que ele se destaca são justamente as cenas onde o personagem mostra o seu verdadeiro eu: um homem preto brasileiro, cujo seu único pedido é poder viver em um país – que é seu de nascença – em paz.
Taís Araújo também mostra o peso de seu nome. Vivendo a Dra Capitu, ela mostra a força e a mente de uma mulher extraordinária que arriscou a própria vida para salvar mãe e filha que fugiam da polícia da devolução. Ela passa boa parte do filme no “Afro-Bunker”, um esconderijo criado para que a população pudesse escapar de seus agressores e sobreviver. Em um monólogo emocionante, Capitu extravasa toda a dor que carrega como uma mulher negra brasileira e profissional da saúde, e essa dor só é possível ser sentida através da tela devido a grande interpretação de Taís.
Mas Seu Jorge é quem rouba a cena. Em um de seus poucos papéis onde ele é o alívio cômico, em nenhum momento ele perde a sua seriedade quando precisa usar a sua voz para falar de suas crenças, sua luta e sua resistência. A cena e a fala mais marcantes do filme também pertencem a ele.
Enquanto estão resistindo em seu apartamento com luz e água cortadas graças a sua vizinha racista, André e Antônio já estão em seu limite, quando André resolve sair pelo lado de fora do prédio para poder buscar comida e água em apartamentos próximos, mas com um detalhe: pintado de branco. A cena é seguida por uma emoção tão forte representada por Seu Jorge enquanto pinta o rosto com tinta branca para ao menos tentar conseguir o básico para que ele e o primo possam continuar existindo e resistindo no lugar que lhes pertence.
A fala que marca logo um dos primeiros sinais verbais de indignação quando a medida provisóriaa passa a ser permanente e a violencia contra ao povo negro cresce, André questiona:
“Como é que a gente não viu isso? Como é que a gente deixou chegar a esse ponto? Como é que a gente riu disso?”
Dito em entrevista pelo próprio Lázaro Ramos como uma fala que, de início, “…era apenas um alerta para algo que não gostaria que acontecesse, mas que a realidade superou [esse significado]”, os acontecimentos do filme e da sociedade brasileira, tanto passada quanto presente, tratam de mostrar exatamente o que essa fala representa, tendo em vista o quanto o racismo afetou negativamente milhões de pessoas, mas que ainda depois de tanto tempo, insiste em ser ignorado por outras milhares.
Apesar de ser um Brasil futurista e distópico, o filme traz também um Brasil atual, onde o racismo estrutural é presente desde o início dessa terra latino-americana como “Brasil” e que até hoje persiste em ser reproduzido. O país onde um jovem negro morre a cada 23 minutos e onde a mulher negra é a maior vítima de feminicídio, nos damos conta do quanto a realidade é cruel para que milhões de brasileiros tenham muito mais chances de terem suas vidas interrompidas somente por causa da cor de sua pele.
“Medida Provisória” é um filme que todos deveriam ver – principalmente para ver o que o Brasil é e o que ele infelizmente pode vir a ser – caso não mudemos a forma pela qual a nossa história é escrita no tempo presente.