A difícil rotina dentro do transporte público durante a pandemia da Covid-19

Como é o dia a dia de quem trabalha e de quem precisa do transporte público nesse momento tão delicado para o mundo

Por Samantha Beduhn

Segundo uma pesquisa feita pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, motoristas e cobradores do transporte público possuem 70% de chances a mais do que outros trabalhadores de contrair a Covid-19 durante o seu horário de trabalho. Com exceção apenas dos funcionários da área da saúde. Em 2020 a rotina do mundo inteiro foi drasticamente afetada por conta desse vírus. Que gera uma doença altamente contagiosa e perigosa. Durante a quarentena feita para minimizar esse contagio os trabalhadores ganharam inúmeros obstáculos para se manter. Em Pelotas, no Rio Grande do Sul, que possui cerca de 343 mil habitantes, antes da pandemia um especifico ônibus carregava cerca de 700 pessoas por turno. Ou seja, 700 transitórios durante a manhã e mais 700 na parte da tarde e da noite. Atualmente, um ano depois, esse número reduziu para 400, mesmo com essa diminuição ainda é um grande volume de pessoas para se ter contato em momento crítico como esse.

Usuários e trabalhadores falam sobre transporte coletivo na pandemia. Fotos: Samantha Beduhn/ Em Pauta

Motorista do transporte público de Pelotas

Antes das pandemia

O motorista da linha Navegantes, Marcelo Peter, 48, trabalha há 11 anos nessa profissão e em grande parte desse período sua rotina era sempre a mesma. Ele chegava na empresa em que trabalha, ou no final da linha do ônibus para a troca de turnos entre motoristas e cobradores. Abria o “carro” e pegava um paninho úmido. Era dessa forma a limpeza que ele precisava fazer diariamente. Apenas parar tirar o pó acumulado no painel e na direção do veículo, além é claro dos bancos. Seus horários eram adaptados a cada duas semanas para uma rota ou horário diferente, um padrão da empresa em que ele trabalha. Marcelo, fazia em torno 6 ou 7 vezes o mesmo trajeto por dia.

As voltas, como os funcionários do transporte coletivo chamam, contam com até 15 minutos de intervalo. Que é quando o motorista e cobrador costumam descer do ônibus para esticar as pernas, ir ao banheiro, comer alguma coisa e principalmente se recompor para voltar ao difícil trabalho de lidar com o trânsito e com as pessoas. Para muitos o motorista de ônibus apenas dirige, como se isso fosse tão simples. O ato pode até ser fácil de executar, mas responsabilidade dele é muito maior. O condutor do transporte público precisa ter um extremo cuidado com o trânsito para que todos seus passageiros cheguem em seu destino com segurança, além saber lidar com todo tipo de situação dentro do coletivo.

Muitos dos passageiros de Marcelo tinham o hábito de o cumprimentar com apertos de mão ou toques amigáveis, como o famoso soquinho. Afinal seu contato com eles era diário, era como se fossem conhecidos, quase amigos. Marcelo ainda relata que as pessoas mais amigáveis dentro do transporte coletivo eram os idosos, cujo ele sempre costumava receber algum lanche ou alguma lembrança de presente no fim do ano. “Os idosos costumavam pegar o ônibus várias vezes por dia, então eles acabavam fazendo amizade com a gente, levavam lanches, balas e as vezes presentes para a gente ou até mesmo para os nossos filhos” conta o motorista da linha Navegantes.

Durante a pandemia

O motorista do transporte público, Marcelo Peter, relata como está agora sua rotina de higienização do veículo antes da primeira volta “depois da pandemia a gente tem que passar álcool, tem um pano com desinfetante pra poder passar ali nos corrimãos. Quando abre o ônibus eu já passo o pano pra limpar o carro [ônibus], porque a gente não sabe quem foi que pegou ele antes, então nós [motorista e cobrador] já higienizamos para a nossa proteção diária”. Ele ainda afirma que no período da noite a empresa possui uma empregada para fazer uma limpeza mais pesada nos veículos depois deles saírem de circulação.

Atualmente Marcelo está trabalhando apenas meio turno por dia, isso ocorre porque a procura pelo transporte coletivo diminuiu. Por diversos motivos, pelo medo da contaminação em um lugar “fechado” ou “pouco arejado”. Ou até mesmo por estarem trabalhando de forma remota, como é o caso dos estudantes, que é um dos principais públicos desse meio. Além disso, a procura por carros de aplicativos cresceu de forma absurda durante esse período. O medo e o desconforto são aliados constantes de quem precisa do transporte coletivo. Mas o que muito esquecem é que aqueles que trabalham nele também possuem esses sentimentos aterrorizantes.

A gente tem bastante medo, porque é muito movimento, né? No momento que os passageiros estão subindo, o ônibus fica cheio ali na minha frente, todo mundo em pé, respirando, apesar de estarem de máscaras, podem ter [o vírus]. Principalmente porque eu carrego muita gente que trabalha dentro do hospital, no caso eles estão protegidos por estarem vacinados, mas podem estar trazendo o vírus pra mim [nas roupas e objetos]. Então é uma função bem complicada essa” relata o motorista.

Para Marcelo o desafio é diário, além dos cuidados normais de sua profissão, ele precisa cumprir as novas medidas preventivas impostas pela prefeita de Pelotas, Paula Mascarenhas. Muitos passageiros possuem dificuldade de lidar com isso, e são até mesmo agressivos quando o transporte lota de acordo com a norma imposta, e o motorista simplesmente não pode deixar mais ninguém entrar. Ele ainda assegura que usa álcool em gel com muita frequência durante seu turno de trabalho, principalmente ao ajudar algum cadeirante. Algo que se tornou extremamente complicado, pois ele precisa ter um contato mais próximo para o ajudar se acomodar no ônibus.

Os horários de trabalho também mudaram por conta da redução de veículos em circulação, os funcionários que não estão na ativa participam do Auxilio Emergencial feito pelo governo. Dessa forma a empresa consegue diminuir os cortes em sua equipe, evitando a tão temida demissão. O entrevistado participou desse programa e conta como foi experiência nesse período “Fiquei 8 meses no auxilio, e foi bem complicado porque eu tive uma redução de 30% no meu salário, a gente já tinha as prestações, as contas todas programadas [para o salário normal]”.

Além de passar por todas essas situações, o intervalo para o descanso desses trabalhadores acabou sendo reduzido. Isso ocorreu devido ao aumento de voltas dadas a cada veículo por conta do auxilio emergencial do governo. Que entrou em vigor novamente, e parte dos funcionários não está trabalhando. O que significa que cobradores e motoristas agora possuem menos tempo para relaxar um pouco. Além usarem esses poucos minutos que restam para higienizar o ônibus antes de sair de novo. Ao ser questionado sobre a possibilidade da rotina voltar ao normal, motorista de 48 anos diz que “eu acredito que sim, a esperança é essa, porque a gente depende da normalidade para voltar a trabalhar tranquilo”.

Cobrador do transporte público

Antes da pandemia

Para Igor Cury Silveira, de 24 anos, que é cobrador da linha Navegantes, e está no transporte público há 7 anos sua rotina de trabalho mudou completamente por conta da Covid-19. Ele conta que antes da pandemia não precisava fazer uma higienização profunda para sair na primeira volta como agora, a limpeza feita dentro veículo era mais superficial. Muito diferente de como é atualmente, ele não tinha que se preocupar tanto com a possibilidade de pegar algum vírus dentro do ônibus.

Por se cobrador ele tinha um contato maior com os passageiros do que os motoristas possuem, portanto se torna comum ter um cumprimento mais afetuoso. Igor conta que “sempre tinha um aperto de mão forte, esse tipo de coisa acontecia. Os cobradores de ônibus tendem sempre a ser quem os passageiros buscam por informações sobre o ponto de chegada, ou até mesmo acabam conversando para passar o tempo do trajeto. São eles que precisam controlar a saída dos passageiros, se o veículo já está lotado ou se tem alguma confusão. Mesmo com a possibilidade de se usar o cartão, feito pela empresa PRATI em Pelotas, para pagar o ônibus, muitas pessoas ainda utilizam para suas passagens o dinheiro. Entretanto, para o cobrador Igor antes da quarentena do Novo Coronavírus ele e a maioria dos colegas não possuíam o costume de usar álcool em gel após manusear os pagamentos e trocos.

Ele também afirma que o transporte público carregava em torno de 30 à 40 pessoas de pé e com lotação de banco, que pode variar pelo modelo do veículo entre 37 até 42 lugares. Durante o intervalo entre suas voltas não era necessário ele fazer uma grande limpeza, apenas o básico e assim poder ter seus poucos minutos de descanso antes de voltar para sua cansativa rotina de trabalho. Algo que é essencial, pois na sua profissão é necessário estar atento a todos os movimentos dentro do veículo para uma viagem segura.

Durante a pandemia

Durante a pandemia a rotina de trabalho dos cobradores de ônibus ficou ainda mais complicada do que era. A principal função desses funcionários envolve o contato direto com as pessoas e com o dinheiro. Um simples toque nas cédulas e moedas, para guardar essas ou dar o troco para o passageiro, já pode contaminar eles com o vírus da Covid-19. Como forma de evitar isso é necessário higienizar as mãos com muita frequência, para isso é recomendado o uso do álcool em gel 70%. Um hábito que antes era extremamente raro, agora se faz obrigatório diariamente. Igor Cury Silveira conta um pouco desse novo costume “agora sim, tocou na cédula literalmente já toca o álcool em gel, e fica com as mãos limpas, né?”.

Quanto a proximidade com os passageiros é correto dizer que isso foi de longe o que mais mudou nesse período tão complicado. O que antes um cobrador tinha a oportunidade de cumprimentar os transitórios com um aperto de mão ou até mesmo ter uma rápida conversa durante o trajeto, agora se tornou um contato mais frio e distante. O cobrador Igor, de 24 anos, afirma que “agora o toque é raríssimo, né? Muito casual um cotovelo com cotovelo, mas assim quase 2% do que era antes, quase não acontece. Relacionado ao toque não tem, geralmente é um aceno distante e só”.

A situação dentro do transporte público fica ainda mais difícil de se lidar por conta das medidas impostas para prevenir o contágio dessa doença. Uma das regras a serem cumpridas dentro do coletivo é o uso máscara. Acessório esse que para ter uma proteção eficaz deve ser usado cobrindo a boca e o nariz. Mas nem sempre é isso o que acontece, muitos desrespeitam essa medida, e no transporte público não é diferente. Por isso o cobrador é auxiliado a chamar atenção daqueles que não usam a proteção de forma adequada.

Igor conta que é preciso repreender diariamente as pessoa para colocar a máscara de forma correta “eu preciso repreender todos os dias. Principalmente o pessoal idoso, eles não se mantem com a máscara no rosto, eles colocam a máscara abaixo do nariz só protegendo a boca. Normalmente eles tentam embarcar no coletivo sem a máscara, tanto cobrador quanto motorista são conduzidos a repreender o idoso a colocar a máscara, e o idoso tende a ficar bravo, mas ele coloca porque se caso não colasse, ele não poderia subir no coletivo. Mas é questão da máscara em si é diário, sempre tem um e outro com o uso indevido da máscara”.

Ele ainda relata que já houve casos dos passageiros serem agressivos por conta desse simples pedido que é para o bem de todos. E ainda conta como resolveu a situação “já houve casos de aumentarem o tom de voz, principalmente os idosos, eles não conseguem entender que é para o bem deles. Mas aí com a conversa necessária e explicando a situação toda eles acabam concordando e usando a máscara de forma certa”.

No momento atual, Igor conta que se sente mais seguro para trabalhar, mas no começo ele sentiu desconfortável nessa situação pandêmica. “Mas hoje a gente tem todo o equipamento necessário para trabalhar [em segurança]. A gente tem álcool em gel, hoje o ônibus tem uma proteção que separa o cobrador do seu público, é uma proteção plástica e se caso a pessoa espirrar na gaveta a proteção não deixa atingir o cobrador. Além da máscara que dá uma sensação de segurança para trabalhar”.

Passageira do transporte público

Antes da pandemia

Para todos os passageiros do transporte público de Pelotas esse meio de locomoção nunca foi fácil ou prático. Mesmo antes da pandemia devido a Covid-19 os ônibus eram lotados e possuíam diversas reclamações diariamente por esse motivo. Os moradores de vários pontos de Pelotas possuíam queixas sobre o quão apertado era esse tipo transporte, além dos atrasos constantes e dos horários mal distribuídos. Isso tudo se devia porque na época já haviam poucos veículos circulando.

Embora a população soubesse que a culpa não era dos funcionários, motoristas e cobradores, mas sim das empresas, essa precisava fazer suas queixas para ter melhorias. Algo que raramente acontecia, os problemas pareciam piorar a cada dia. Isso acarretava em muitas confusões no transporte público. Afinal aqueles que precisam desse meio são trabalhadores e estudantes. Imagine o quão estressante e cansativo era pegar o ônibus diariamente lotado, com pessoas espremidas tentando desesperadamente encontrar uma banco livre.

Nessa época ainda não havia o Coronavírus, mas já existia outras doenças que poderiam ser transmitidas devido a essa aglomeração. Um exemplo muito conhecido é a própria gripe, alguns anos atrás quando houve o surto de H1N1 era recomendado passar álcool em gel após utilizar o transporte público. Entretanto com o passar do tempo essa higienização caiu no desuso novamente.

Para a passageira Gigliane Duarte, 47, usar o álcool em gel depois de andar de ônibus não era um hábito comum. Ela conta que precisa desse meio de locomoção diariamente para poder chegar em seu trabalho. E ainda afirma que antes da pandemia ela não possuía um critério para escolher um lugar no veículo, o primeiro que aparecia vago ela pegava. Gigliane também ressalta que antigamente a linha que ela costuma pegar, Pestano, tinha um trajeto de 20 minutos até chegar ao Centro da cidade.

Durante a pandemia

Nos tempos atuais, onde existe um vírus altamente contagioso, utilizar o transporte público está se tornando algo ainda mais delicado. As recomendações para se prevenir contra o Coronavírus são não ficar em aglomerações, não ter contato com muitas pessoas, deixar os ambientes arejados, etc. Porém no transporte público isso ficou extremamente complicado, afinal muitos trabalhadores continuam ativos. Para Gigliane que trabalha em uma sorveteria no Centro da cidade de Pelotas isso não é diferente. Seu trajeto diário praticamente dobrou o tempo, agora leva em torno de 40 à 50 minutos do Pestano para o Centro.

Para piorar a situação da passageira as novas medidas impostas pela Prefeita Paula Mascarenhas com relação aos horários estão prejudicando muito quem cumpre eles no serviço. “Já aconteceu de eu ter que pegar às 9 horas da manhã [no trabalho] e só ter ônibus às 7 horas, eu tive que aguardar mais de 1 hora na frente do meu trabalho. E teve outra ocasião que fiquei horas esperando o ônibus e ele simplesmente não passou” conta Gigliane. Situações assim acontecem diariamente, a população além de ter a preocupação com o vírus, o medo dessa doença precisa lidar também com o atrasos e a possibilidade de uma advertência no emprego.

Assim como aqueles que trabalham no transporte público os passageiros também correm riscos, principalmente por conta da lotação dentro dos ônibus. Se antes da pandemia já havia poucos veículos em circulação, agora após a redução imposta como medida preventiva os ônibus estão ainda mais escassos. E isso leva ao aumento de transitórios. Diferente da empresa que Marcelo e Igor trabalham, a linha que Gigliane precisa pegar todos os dias está sofrendo com aglomerações e desrespeito às normas.

Não fui barrada. Porque eu acho que quanto mais cheio o ônibus estiver, mais a empresa vai estar ganhando, né? Porque realmente a empresa não pensa nos passageiros, nos funcionários, se alguém vai ser infectado ali [no ônibus]. Para eles não interessa a multidão no ônibus, o que interessa para eles é a quantidade de dinheiro que está entrando” afirma a passageira. Mesmo com esse descaso o transporte coletivo é essencial, para por comida na mesa é preciso trabalhar, para isso é necessário chegar ao emprego.

Alguns dos cuidados que ainda ajudam diminuir um pouco o risco de contaminação é o uso de máscara e do álcool em gel 70%. Gigliane ressalta que atualmente utiliza esse produto até mesmo no cartão do ônibus, no qual serve para pagar as passagens. E na hora de escolher um lugar ela sempre tenta ficar na janela, onde é ventilado e longe das pessoas que ficam no corredor. Quanto ao medo de pegar essa doença no transporte ela diz que “eu acho que todos temos medo de andar nesses ônibus aglomerados, muita gente junta, muita gente respirando o mesmo ar, isso é muito perigoso. Então deixa a gente com muito medo, com certeza com muito medo”. Quando questionada sobre mudar o meio de locomoção ela conta que já tentou isso, mas que os gastos financeiros não compensavam.

Gigliane ainda ressalta “eles precisam colocar mais transportes na rua. Porque desde que começou a pandemia eles diminuíram o transporte, pedem para não ter aglomeração, não fazer festas clandestinas, não se aglomerar no centro [da cidade], mas as aglomerações não estão nas lojas, elas estão no ônibus. Essa preocupação eles não estão tendo com a população, então eu acho que eles deveriam colocar mais ônibus na rua, como era no início onde não podia ter mais que 10 passageiros em pé. Só que agora vai 80 passageiros no ônibus, até mais”.

Link para a reportagem no site Flipsnack:

https://www.flipsnack.com/samanthabeduhn27/reportagem-sobre-a-rotina-no-transporte-p-blico-de-pelotas.html

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