Roupas vêm sendo símbolos de poder e posicionamentos sociais, tendo a tendência de reaproveitamento de materiais como uma proposta política
Por Amanda Marin
Ao longo da história, a moda nunca se limitou ao universo superficial da estética ou do consumo. Ela é, essencialmente, ferramenta de comunicação, capaz de refletir contextos sociais, manifestar ideologias e impulsionar transformações políticas e culturais. Vestir-se sempre foi, e segue sendo, uma manifestação simbólica, que fala sobre quem somos, de onde viemos e quais histórias queremos contar ao mundo. Desta forma o reaproveitamento de materiais vem sendo uma proposta que vai bem além de um estilo, tendo algo a dizer para o momento que se vive hoje.
A relação entre moda e política remonta à Antiguidade, quando vestimentas eram símbolo de poder, status e organização social. No Egito Antigo, por exemplo, as roupas, os adornos em ouro e as coroas dos faraós reforçavam a hierarquia social e o controle político. Na Roma Antiga, a toga púrpura era restrita aos senadores e imperadores, uma vez que o pigmento de cor púrpura era raro, caro e, portanto, símbolo de autoridade e prestígio. Vestir-se de forma inadequada, inclusive, poderia ser entendido como afronta ao Estado ou aos costumes da época.
Durante a Idade Média e o Renascimento, a moda seguiu como instrumento de diferenciação social e controle. Leis suntuárias foram criadas em diversos reinos europeus para regular quem podia usar certos tipos de tecidos, cores e adornos, geralmente reservados à nobreza e ao clero. Ao mesmo tempo, entre as classes populares, o reaproveitamento de roupas era uma prática comum e necessária: peças eram ajustadas, transformadas ou repassadas entre gerações, e mercados de roupas usadas, “embriões” dos brechós atuais, circulavam nas cidades medievais. Assim, enquanto os trajes das elites funcionavam como extensão das estruturas de poder, para as camadas mais pobres, a moda também era uma questão de resistência, criatividade e adaptação dentro das limitações impostas pela própria hierarquia social.
Vestir-se, portanto, é um ato carregado de significado, que atravessa questões de classe, gênero, identidade, resistência e pertencimento.

Thays Zimermann gosta de criar novos significados para roupas e suas memórias
Movimento upcycling
Essa perspectiva da moda segue mais viva do que nunca, especialmente em um cenário marcado pelo consumo acelerado, pela produção em massa e pelo descarte desenfreado. É justamente nesse contexto que surgem movimentos como o upcycling, o reaproveitamento criativo de materiais e peças que, antes, seriam descartadas. Práticas que dialogam com o resgate cultural, memória afetiva e contra-narrativas aos modelos industriais da moda hegemônica.
É a partir dessa premissa que nasce a Access, marca idealizada por Thays Zimermann, que enxerga no ato de ressignificar roupas uma forma de gerar impacto. “Eu trabalho com upcycling e patchwork justamente porque gosto de ressignificar materiais e memórias. Cada tecido já teve um passado, e ao recriar essas peças, consigo contar novas histórias e provocar reflexões sobre consumo, identidade e pertencimento”, explica.
Thays propõe, através de seu trabalho, um olhar desacelerado para a moda, pelo qual vestir-se deixa de ser uma ação meramente estética e se transforma em um ato consciente, afetivo e, sobretudo, político. “A Access nasce justamente como uma resposta a esse modelo de consumo acelerado e descartável. Eu acredito que se vestir vai muito além de seguir tendências ou acumular roupas, é sobre se expressar, se conectar e respeitar o tempo das coisas. Minha proposta é resgatar o valor do feito à mão, do único, do afetivo. Ao reutilizar materiais e criar peças exclusivas, eu proponho um novo olhar para o vestir: mais consciente, mais respeitoso com a história dos objetos e das pessoas, e mais conectado com quem somos de verdade”, defende.
Ruptura com padrões de massa
Quando escolhe trabalhar com peças únicas, materiais reaproveitados e técnicas artesanais, Thays rompe com os padrões da produção em massa, e resgata práticas esquecidas em meio à lógica da fast fashion. Ela lembra que, no Brasil, essa prática carrega um significado ainda mais potente, considerando os desafios socioeconômicos e ambientais que marcam o país. “Além disso, a realidade socioeconômica e ambiental do Brasil reforça a importância do upcycling e da sustentabilidade na moda, […] Quando escolho trabalhar com upcycling, com peças únicas e com a valorização de técnicas artesanais, estou propondo uma ruptura com a lógica da produção em massa, da padronização e do descartável. É um posicionamento cultural, ambiental e social”, completa.
E se moda é também território de disputa simbólica, os brechós, por sua vez, funcionam como espaços de contracultura urbana, tanto para quem empreende quanto para quem consome. São palcos de memórias, garimpos afetivos e resistência ao ritmo opressor da indústria.
É o que acredita Lucas Moura, fundador do brechó Marginale 053, que observa que o público de brechó carrega uma preocupação que vai além do vestir. “Quem consome fast fashion é diferente de quem consome de brechó. O público que consome brechó tem uma preocupação com o meio ambiente, com a desigualdade social, com direitos trabalhistas que são descartados, que são revogados. Como que seja uma moda circular, onde a gente compreenda que não é porque é uma peça de segunda mão que é uma peça descartável ou que está em mau estado”, pontua.
Para Lucas, mais do que uma escolha econômica, consumir de brechó é um ato de resistência, de cuidado com o planeta e, também, de construção de identidade. E ele não está sozinho nessa percepção, já que a indústria da moda é hoje uma das que mais impactam negativamente o meio ambiente. Segundo a ONU Meio Ambiente, o setor é responsável por cerca de 10% das emissões globais de carbono e 20% da poluição das águas no mundo, principalmente por conta dos processos industriais, tingimentos e descarte de resíduos. Além disso, a cada segundo, o equivalente a um caminhão de lixo têxtil é descartado no planeta.
Diante desse cenário, alternativas como os brechós deixam de ser tendências e passam a ser uma necessidade. “Acredito que as roupas de brechó também têm uma cara autêntica. São peças únicas que muitas vezes ninguém vai ter, de fato. São peças que já não são mais fabricadas, né? E que também já trazem essa identidade mais apropriada a quem está vestindo. Ter esse entendimento social, ambiental, é superimportante, super necessário. Em meio ao que a gente vive de mundo, em meio à crise climática, ao aquecimento global, o pouco que a gente puder fazer para diminuir [essa destruição] é super necessário, é essencial, é básico.”
Cultura periférica
Lucas também reforça que seu interesse pela moda surgiu a partir das culturas periféricas e urbanas — especialmente do hip-hop e do skate — que, historicamente, são movimentos que constroem tendências no mundo da moda, embora raramente sejam reconhecidos como protagonistas nesse processo. “São meios marginalizados, culturas marginalizadas, que, muitas vezes, estão aparentes em desfiles de moda ou como influência na moda, mas não sendo protagonizadas por quem, de fato, faz parte dessas culturas. Subverter esses espaços de elite para onde esses movimentos não são bem quistos é algo que precisa ser feito da forma que conseguir realizar”, defende Lucas.
Na outra ponta desse movimento está quem consome, não apenas por estética, mas por consciência, afeto e identidade. É o caso de Nicolas Moreira, que vê na moda uma poderosa ferramenta de autoexpressão.
Seu interesse começou ainda na infância, quando sofreu críticas por se vestir fora dos padrões. “Com o tempo, fui percebendo que aquelas roupas não eram feias, elas só eram diferentes das que as pessoas ao meu redor estavam acostumadas a ver. Naquele contexto, aquilo era visto como ‘errado’. Só que conforme eu fui conhecendo outras pessoas, outros lugares, e me permitindo experimentar mais, entendi que na real eu me vestia de uma forma que tinha a ver comigo, com o que eu gostava e com quem eu era. Era a minha forma de me expressar. Isso me fez perceber que eu não me vestia mal, eu me vestia de forma autêntica e que isso tinha valor”, conta.
E esse desejo de autenticidade não é isolado. Ele ecoa uma busca coletiva, especialmente entre juventudes periféricas, negras, LGBTQIA+ e urbanas, um movimento que dialoga com o consumo consciente e sustentabilidade, mas, sobretudo, com a valorização das próprias narrativas, das ancestralidades e das histórias que, historicamente, foram marginalizadas.
Para Nicolas, vestir roupas de brechó, peças com história ou feitas artesanalmente, muda completamente a relação com o vestir. “Tem um peso diferente. Tu pensas que alguém já viveu momentos especiais com aquela roupa antes de ti, e agora tu estás criando novas histórias com ela. Isso por si só já carrega significado”, afirma. E não é apenas sobre peças comuns: algumas delas se tornaram verdadeiros marcos na sua trajetória. “A camisa azul de botão, que achei em um brechó, virou uma espécie de amuleto pra mim. Customizei, cortei as mangas, dei uma nova cara pra ela. Foi a primeira vez que senti que estava acertando na minha linguagem de estilo, e até rendeu trampo: me chamaram pra uma publicidade por conta dessa camisa. Ela me fez entender, de forma prática, que o que eu visto pode ser uma extensão da minha voz, do meu lugar no mundo.”

Nicolas Moreira vê na moda uma forma de expressão identitária
Esse entendimento, no entanto, não acontece de forma isolada. As redes sociais desempenham um papel fundamental na construção de novas narrativas dentro da moda. Hoje, plataformas como TikTok e Instagram são espaços onde criadores independentes, produtores de conteúdo e pequenos empreendedores conseguem furar a bolha da moda tradicional, alcançando públicos que, há alguns anos, estariam restritos a quem tinha acesso aos circuitos elitizados do setor.
O impacto das redes nesse processo é inegável: “Elas são uma vitrine pra quem não está no circuito tradicional da moda. Hoje, pessoas que fazem sua própria roupa, que garimpam brechó, que pensam moda de um jeito mais consciente, estão sendo vistas e valorizadas. Olha o Will Cypriano, por exemplo, que começou postando peças feitas à mão e hoje tá fazendo collab com a Adidas. Isso só foi possível por conta da internet, que abriu espaço pra gente que está na margem, que cria fora da lógica das grandes grifes”, observa Nicolas.
A força desse movimento, inclusive, se reflete nos números. De acordo com um levantamento da ThredUp, plataforma global de revenda, o mercado de segunda mão deve crescer 85% até 2030, enquanto o varejo tradicional de moda avança em ritmos bem mais lentos. Isso sinaliza uma transformação cultural profunda, onde consumir de brechó, apoiar marcas locais e investir em peças com história deixa de ser uma prática de nicho para se consolidar como um novo paradigma de consumo: mais ético, mais consciente e, sobretudo, mais sociocultural.
Sendo assim, para além da estética, Nicolas reforça que se vestir é, antes de tudo, uma escolha carregada de intenção. “Eu gosto de usar a roupa como uma forma de contar algo, seja algo histórico, cultural, político ou até pessoal. Cada peça, cada acessório que eu escolho, carrega uma intenção. Eu tento sempre remeter a alguma coisa com o que eu visto, mesmo que seja sutil. Gosto muito de carregar referências da cultura negra, de usar elementos que falem sobre isso. Isso me fortalece, me posiciona, me lembra de quem eu sou e de onde eu venho”.

Nicolas: “há um propósito na forma de se vestir”
Para finalizar fica a sugestão do pesquisador Renzo Telles Júnior: a forma como nos vestimos reflete diretamente nossas crenças, convicções e posicionamentos sociais. “A moda atua como um espelho da sociedade e, muitas vezes, como um catalisador de mudanças”, afirma. E é exatamente isso que se desenha quando olhamos para movimentos como o upcycling, os brechós e a moda independente: um resgate de memórias, uma reconfiguração de valores e, principalmente, um ato de resistência estética, cultural e social em meio ao colapso ambiental do nosso tempo.
Afinal, a roupa é, antes de tudo, uma declaração silenciosa (ou nem tanto) de existência e pertencimento no mundo.
COMENTÁRIOS
Nossa parabéns, eu adorei muito, se saiu muito bem nas fotos ❤️continua assim e mais uma vez parabéns Nicolas 😘
Thaina mallet
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