“The Sandman” mantém o espírito dos quadrinhos

Série que estreou em agosto adapta um dos maiores clássicos dos quadrinhos da DC  

Douglas Rafael Duarte    

No dia 5 de agosto, estreou “The Sandman” na plataforma de streaming Netflix.  A produção adapta para as telas a obra de Neil Gaiman, um dos maiores clássicos dos quadrinhos da DC Comics. A série, que já pode ser considerada um sucesso global, acompanha a jornada de Morpheus, o rei do mundo dos sonhos e um dos sete Perpétuos (entidades divinas responsáveis por sentimentos e experiências humanas). Mais do que tudo, é um convite a refletir sobre temas complexos como a morte, eternidade e o propósito da existência humana.

A produção agradou tanto quem não teve qualquer contato com a franquia quanto quem já gostava das aventuras do sombrio Morpheus (ou simplesmente “Sonho”) desde as páginas das HQs. Ostenta a notável pontuação de 87% de avaliação positiva da crítica e 80% do público no site Rotten Tomatoes. De acordo com a plataforma especializada em monitoramento de produtos de streaming FlixPatrol, a série ainda ficou por algumas semanas em primeiro lugar no Top 10 global e nacional, batendo concorrentes de peso como “Stranger Things”.

Tom Sturridge como Morpheus (o Sonho)    Fotos: Divulgação

Sintonia com público

“The Sandman” é uma das tantas histórias em quadrinhos que vêm sendo acompanhadas pelos leitores atuais desde ao longo da infância e da adolescência. Após a notícia de que a obra seria adaptada para as telas, o sentimento de muitos fãs foi o mesmo: um misto de animação e de temor pelo resultado. Afinal, não seria a primeira vez que produções inspiradas em livros ou HQs decepcionariam (quando não desfiguram completamente um personagem ou até um universo inteiro). Definitivamente não foi o caso.

Ao terminar de assistir os 10 episódios da série, pode ficar uma incômoda sensação de se gostar mais da produção cinematográfica do que dos quadrinhos (algo não muito comum). Então, a série é uma motivação para reler as páginas da obra de Gaiman. Os “Prelúdios e noturnos” e “A casa das bonecas” são as histórias escolhidas para serem adaptadas para as telas entre as 75 edições da obra, publicadas entre 1989 e 1996. E a verdade é que o seriado não só preserva o que havia de melhor nos gibis, como melhora alguns aspectos do enredo.

A participação muito próxima do autor, por um lado, pode ter sido um fator primordial para o sucesso da produção. Neil Gaiman ajudou na seleção de elenco, além de escrever ele próprio o roteiro do primeiro episódio juntamente com Allan Heinberg (“Grey’s Anatomy”) e David S. Goyer (trilogia “Cavaleiro das Trevas”). Os aspectos mais marcantes da HQ, como o ambiente sombrio e a mistura de fantasia, terror e temas filosóficos, permitem que o “espírito dos quadrinhos” seja preservado na série.

Por outro lado, a opção por distanciar-se um pouco do universo DC melhora a experiência. A narrativa mais linear e conectada, ao invés da opção por segmentos mais independentes entre si (como ocorria nos quadrinhos), passa uma sensação de continuidade bastante interessante para a história. A divisão do protagonismo entre outros personagens, além de Morpheus, também foi uma ótima escolha.

Diálogos, sonhos e pesadelos

A inserção do Mathew (o Corvo) em mais histórias do que originalmente apresentava a HQ, permitiu o aprofundamento e qualificação de alguns diálogos, como na jornada pelo inferno, por exemplo. É de se destacar ainda a participação de Lucienne (Vivienne Acheampong) na evolução pessoal de Morpheus. Ainda assim, nenhuma decisão foi melhor do que a de dar maior relevância para o personagem Coríntio (Boyd Holbrook de “Narcos”). Além de tapar alguns “furos” na trama original, o pesadelo que fugiu do mundo dos sonhos mostrou-se o vilão perfeito para uma temporada inicial.

É preciso pontuar, no entanto, que nada disso significa um enfraquecimento do personagem principal, muito pelo contrário. Cada diálogo, cada embate, cada antagonismo e cada trama compartilhada com outros indivíduos do seu universo convergem para a afirmação de Morpheus como a figura incomparável e essencial da produção. E a atuação praticamente impecável de Tom Sturridge (“As Vantagens de ser Invisível”) certamente foi decisiva para que o resultado final não fosse de apenas um personagem marcante, mas de toda uma história que funciona muito bem.

O ator, aliás, contou que pediu ajuda para Gaiman na hora de construir o personagem. De acordo com o próprio, uma de suas principais preocupações era saber como a voz de Sonho (uma das mais destacadas formas gráficas da HQ, com seus balões negros), deveria soar. “Neil me falou que ele é a voz dentro da sua cabeça. Ele é a voz que te leva ao sono. A voz que o guia pelos seus sonhos”, relatou Sturridge em entrevista de lançamento da série.

O ator Boyd Holbrook faz o papel de  Coríntio

Profundidade filosófica

O ar soturno e solitário, as dúvidas com relação à complexidade das relações humanas, a perplexidade de Morpheus diante do comportamento dos mortais e tudo mais que configura esse cativante personagem estão devidamente transplantados dos quadrinhos e expressos na atuação de Tom Sturridge. Assim como no ritmo e estilo da narrativa, nos cenários e efeitos especiais e até na caracterização dos personagens. Mais do que tudo, a complexidade está na abordagem dos temas com profundidade filosófica em cada segmento.

Em síntese, “The Sandman” fez melhor nas telas o que já era muito bom nas páginas quadriculadas. A série tem muitos pontos positivos: não perdeu a essência e consertou falhas no enredo sem descaracterizar personagens ou promover mudanças drásticas ou incompatíveis com a trama original. As atuações individuais dos atores (em especial Morpheus, Lúcifer e Coríntio) não deixaram nada a desejar. A introdução (ainda incipiente) da instigante relação de Sonho com seus irmãos (os Perpétuos), em especial com a Morte e o Desejo, e o vasto material das histórias ainda não adaptadas, sugerem que a produção fará ainda mais sucesso no futuro e, provavelmente, marcará época. Para isto, basta não abandonar a receita bem-sucedida da primeira temporada.

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