Eva e Isabel, Isabel e Eva

 

Por Milena Schivittez     

Livro de Isabel Allende entrelaça aspectos biográficos na arte de contar histórias

 

         Lançado em 1987, romance representa mulheres latinas                Imagem: Divulgação 

Duas mulheres, latinas, itinerantes, que viram na contação de histórias uma chance de tornar a existência mais tolerável. De um lado, Isabel Allende, prima do ex-presidente chileno Salvador Allende, filha de diplomata, que viu sua família partir para o exílio logo após o golpe militar que instaurou a ditadura de Pinochet. Allende nasceu no Peru, mudou-se para o Chile, se exilou na Venezuela e depois migrou para os Estados Unidos. Viveu em tantos locais que não se considera pertencente a um só, apenas cidadã da América do Sul.

Do outro lado, “Eva Luna”, a personagem feminina mais icônica de Isabel. Filha de uma mãe branca e sem pátria e um pai indígena. Nascida sem lenço e sem documento, Eva não tinha um lar fixo, ou uma família, ou até mesmo uma certidão de nascimento. Era de lugar nenhum e, ao mesmo tempo, de todos os lugares.

As histórias de Eva e Isabel se entrelaçam, ainda que Isabel nunca tenha falado abertamente que se inspirou em si mesma para escrever Eva Luna.

Lançado em 1987, o romance, que podemos chamar de tragicômico, exibe uma protagonista tão singular e, ao mesmo tempo, tão universal que podemos enxergar um pouco de Eva nas trajetórias de nossas mães, avós e bisavós. Isabel tem o dom de representar, acima de qualquer coisa, a mulher latina, com suas particularidades, vivências e bagagens.

Narrado em primeira pessoa, acompanhamos Eva em seus percalços desde muito antes de nascer, começando pela infância de sua mãe, Consuelo, uma jovem órfã que nunca soube de onde veio. Consuelo foi criada nas Missões, passou pelo convento e depois foi entregue para ser empregada na casa de um médico estrangeiro. Nessa casa conheceu um nativo sul-americano, que, na beira da morte, implorou por alguns segundos de prazer. Assim foi concebida nossa protagonista, que recebeu o nome de Eva Luna em homenagem à vida e à tribo de seu pai. Consuelo não tinha dinheiro, bens ou sobrenome, então passou a Eva aquilo que tinha de mais sagrado: o dom de contar histórias.

Após ficar órfã, ainda criança, Eva foi entregue pela madrinha para trabalhar em casas de família. Não aprendeu a ler e escrever até os 15 anos, quando encontrou alguém disposto a ensiná-la. Foi empregada, babá, acompanhante de senhoras. Morou com solteiros, casados, imigrantes, comerciantes, militares e donos de bordel. Cada capítulo de sua vida se emaranhava a suas narrativas inventadas e, em certo momento, fica difícil distinguir se o acontecimento era verídico ou uma versão estendida, dramatizada pela própria Eva.

Ao longo da narrativa, Isabel vai emprestando seus personagens à sua protagonista para que ela possa torná-los personagens de suas próprias histórias, com desfechos trágicos, situações mirabolantes e uma pitada de realismo fantástico, outra característica semelhante entre Allende e Eva.

Em um certo momento, Eva Luna ganha a obra “As Mil e Uma Noites”, cujos contos ela leu e releu diversas vezes. Não é à toa que o enredo chama tanto a atenção de Eva, pois, assim como Sherazade, ela também contava histórias para sobreviver, mesmo que de forma simbólica.

          Isabel Allende viu sua família partir para o exílio logo após o golpe militar no Chile          Foto: Lori Barra/Divulgação

Ficção X Realidade

Com uma escrita poética, recheada de comentários cômicos, Isabel constrói um país sul-americano sem nome, assolado por uma ditadura, entre os anos 50 e 60, com jovens idealistas e dispostos a lutar por um sistema político mais igualitário. Ela representa fielmente os guerrilheiros inspirados pela Revolução Cubana, já que a própria autora conheceu Che e Fidel. Ela dá forma aos estudantes, sindicalistas, jornalistas e acadêmicos que foram às ruas pela volta da democracia. Allende retrata um lugar que poderia ser o Brasil, mas também a Argentina, Uruguai, Chile e qualquer outro país da América do Sul, não porque generaliza ou se utiliza de estereótipos para descrever esse local, mas porque realça os aspectos semelhantes da história de nosso continente e de nós mesmos.

Ainda que “Casa dos Espíritos” seja o romance mais conhecido de Isabel Allende e, consequentemente, o livro que fez a autora alcançar o prestígio, “Eva Luna” nos entrega uma trajetória nada simplista para menos de 300 páginas, com personagens que fogem da dicotomia entre o bom e o mau e, principalmente, apresenta uma das melhores protagonistas da literatura latino-americana.

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