A subversão de um universo racista

Por Gabriel Teixeira de Barros    

Série mistura terror, ficção e inspiração literária para falar sobre discriminação

No elenco,  Jurnee Smolet (Letitia) Jonathan Majors (Atticus) e Michael Kenneth Williams (George)     Foto: Divulgação

Em uma das mais recentes produções da HBO, baseada no romance literário de mesmo nome publicado em 2016 por Matt Ruff, a série “Lovecraft Country” aposta na mistura do terror dramático com a ficção científica, com inspiração na mitologia escrita por H.P. Lovecraft, conta a intensa história de uma família negra norte-americana que busca descobrir mais sobre sua herança sanguínea misteriosa enquanto lida com as problemáticas raciais durante a década de 1950.

História e Contexto

A história dá o ponto de partida quando o personagem central da trama, Atticus Freeman, um veterano da Guerra da Coreia, retorna à sua cidade natal de Chicago, Illinois, após receber uma carta misteriosa contendo pistas do paradeiro de seu pai, Montrose Freeman. Atticus, popularmente chamado por Tic, espera encontrar seu tio, George Freeman, e fazer-lhe algumas perguntas que possam direcioná-lo ao seu pai desaparecido. O personagem de George Freeman é um aventureiro, criador de guias para viagens exclusivo com rotas seguras para negros dentro do solo americano. Contextualizando historicamente, as leis discriminatórias de Jim Crow, estabelecidas em 1877, ainda eram veemente executadas pelos estados sulistas e por regências locais, exigindo a segregação racial na sociedade.

A primeira grande traçada referencial entre o material do escritor H.P. Lovecraft e o bruto contexto sociocultural realçado pela série é a desvendamento da carta escrita por Montrose Freeman para seu filho. Na carta, está descrito a localização de um distrito no interior do estado de Massachusetts, propositalmente alterado para Ardham. Levando em conta a obra literária do autor americano, a região de Arkham é uma cidade fictícia do que é chamado de Lovecraft Country, o ambiente onde estão situados os monstros e a maioria dos acontecimentos das histórias escritas pelo autor.

A série dá uma bruta introdução à ficção de monstros durante uma bem construída cena de suspense, na qual os personagens se encontram como vítimas de opressão policial e estão prestes a serem executados por crimes não cometidos. O terror da ficção vai de encontro direto com o drama racial ambientado, uma mistura muito bem trabalhada, transformadora de gênero, e peça integral do DNA da série. As aparições monstruosas, chamadas dentro da literatura de Lovecraft de Shoggoth, são criaturas metamórficas, que em sua mitologia eram serventes de seres maiores, e como um possível paralelo com o contexto negro da série, rebelaram-se contra seus mestres e os levaram à extinção.

Mitologia da série e passado obscuro

A partir da metade da série, um novo e importante elemento referencial obscuro é introduzido na trama, a histórica e pouco falada relação sombria das figuras de destaque ocidentais com as artes ocultistas.

Durante o século XIX, aconteceu uma grande ressurgência do misticismo na Europa, quando uma combinação de valores ocultistas, derivados de vertentes relacionadas às filosofias ocultas, como o hermetismo e o maniqueísmo, foram estudadas e somadas a elementos mágicos relativos à alquimia e também ao estudo da pseudociência da astrologia. Fundamentaram várias filosofias esotéricas, cada uma reservada para um exclusivo e diferente conjunto de homens brancos de renome e significância cultural.

E, com esse entendimento, a série constrói o enredo em torno da figura de Titus Braithwhite, um poderoso homem branco, influente comerciante de escravos, parente sanguíneo do protagonista Atticus. Ele secretamente lidera uma sociedade ocultista chamada de Order Of the Ancient Dawn, uma organização secreta formada por uma casta de homens brancos. Esse grupo busca, através de um fragmento no Necronomicon, livro ficcional inserido na mitologia de Lovecraft, utilizar a magia para alcançar a imortalidade.

História americana através de mitos

Para tornar a experiência histórica negra palpável, mas ao mesmo tempo autêntica, as chocantes e assombrosas marcas registradas por eventos catalisadores para a construção da identidade social negra não podem ser esquecidas, e a produção audiovisual faz questão de enfatizar este pensamento. A presença do trabalho ativista poético de artistas como Gil-Scott Heron, Sonia Sanchez e James Baldwin, fazem parte da atenção aos detalhes da construção interna e do empoderamento da imagem negra, espelhando-se no impacto social conquistado por estas figuras.

O programa televisivo faz um belo esforço metafórico para relacionar o expansivo enredo de ficção científica na contextualização das tragédias históricas do período. A dramaturgia utiliza o brutal assassinato do jovem negro Emmett Till, em 1955, após ser acusado de ter ofendido uma mulher branca dentro de uma loja. A vida e o símbolo do jovem viraram ícone por justiça nas reinvindicações das campanhas do movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, iniciada um ano antes de sua morte. E, no seriado, o legado de Emmett Till é utilizado como mais um exemplo do terror psicológico diário, e através dos protagonistas, explicitou toda a angústia, o ódio, e o medo sentidos por toda a esfera negra norte-americana.

E, no arco final da série, a necessidade de revisitar e presenciar um dos maiores atentados contra a humanidade, já registrados, revela o desfecho sombrio reservado pela drama, ou seja, retroceder a 1921. A frase, que também intitula o penúltimo episódio da temporada, remete aos protagonistas à necessidade de uma viagem no tempo, retornando ao ano de 1921, mais precisamente no distrito de Greenwood, cidade de Tulsa, onde, durante os dias de 31 de maio e 1º de Junho, foram massacrados entre 100 e 300 negros, no que ficou conhecido popularmente como Massacre de Tulsa. Para o enredo, o acontecimento marca o último registro, em que a família de Atticus Freeman possuía o fragmento mágico do livro que seria capaz de libertar o povo negro da submissão aos brancos, através da magia.

Na realidade, a tragédia representou o violento fim de um distrito majoritariamente negro, popularmente conhecida como Black Wall Street, que foi uma das comunidades afro-americanas mais bem sucedidas comercialmente dentro do solo norte-americano. A prosperidade financeira e o imenso e oportuno futuro que toda uma geração estava conquistando por merecimento tiveram seu fim. Houve uma conspiração por uma imensa armada de homens brancos, que fizeram de tudo para acabar com a história de todo um povo.

Por fim, “Lovecraft Country” utiliza de todos os artifícios existentes na ficção científica e no drama psicológico para construir um belo e profundo enredo a respeito do protagonismo negro, em uma dramaturgia popularmente branca, e como a luta pelo fim submissão negra e da violência racial atravessa os gêneros e distorce os campos da ficção e da realidade.

A primeira temporada de “Lovecraft Country” (2020) está disponível para assistir nos serviços de streaming disponibilizados pelo canal HBO, no Brasil através do HBO GO.

PRIMEIRA PÁGINA

COMENTÁRIOS

 

 

 

 

Comments

comments