Visão sombria da era cibernética

Texto de Lunara Duarte –

Televisão – Crítica – 

Série trata do efeito “narcotizante” das tecnologias e questiona suas consequências                  Foto: Reprodução

Uma das mais notáveis produções da Netflix, o lançamento da série britânica Black Mirror, em 2013, incontestavelmente quebrou paradigmas. O criador da série, Charlie Brooker, revelou em sua coluna no jornal The Guardian que o título se refere “aquele [espelho negro] que você encontra em toda parede, em cada mesa, na palma de todas as mãos: a tela fria e brilhante de uma TV, de um monitor, de um smartphone”. Uma alusão bastante familiar ao nosso contexto histórico.

A série destacou-se pela elaboração de um roteiro que abdica de uma das premissas das produções cinematográficas: a linearidade. Em oposição à maioria das séries, Black Mirror possui apenas sete episódios, cada um composto por um elenco e histórias diferentes. Apesar da ausência de linearidade, a temática gira em torno da relação dos seres humanos com as tecnologias em um futuro distópico, mesclando ficção científica com os dilemas contemporâneos.

A era do apogeu cibernético

Aqui a dependência tecnológica é levada às últimas consequências: as relações interpessoais passam a ser intermediadas por dispositivos e aplicativos. Tudo é mecanizado na cultura de massa (inclusive nós!). O que aguça ainda mais a curiosidade do espectador é o fato de que cada episódio nos convida a uma reflexão distinta sobre os impactos das tecnologias na psique humana. Os personagens, muitas vezes, são dotados de ambiguidade. O espectador não consegue apreender facilmente quem é o “vilão” e o “mocinho”. E as reviravoltas são arrebatadoras.

O efeito “narcotizante” das tecnologias provoca infindáveis questionamentos sobre os seus efeitos nocivos. Brooker sentencia: “Se a tecnologia é uma droga — e ela se assemelha a uma droga –, então quais são, exatamente, seus efeitos colaterais? Essa área, entre o deleite e o desconforto, é onde Black Mirror, minha nova série dramática, está situada.”

Sobre a decisão de tornar cada episódio independente, Brooker garante que o objetivo é romper com a familiaridade diante dos personagens, cenários e situações comuns às séries atuais. O espectador é estimulado a mergulhar em um mundo levemente diferente e a previsibilidade é deixada de lado. Sempre há uma surpresa. E, de fato, a sensação que nos causa é a de que cada episódio funciona como um filme de aproximadamente 50 minutos, com o roteiro e desfechos irretocáveis.

Os episódios “White Christmas”, “The Entire Story of You” e “Fifteen Million Merits” estão entre os que surpreenderam a audiência. Como os mais chocantes destaca-se o “The National Anthem” ou “White Bear” (o que nos deixa perplexos, particularmente). O Be Right Back é mais melancólico, mas escancara a destruição dos relacionamentos afetivos nesse cenário caótico.

Tecnologia e Sociedade do Espetáculo

Outro elemento constitutivo da trama é a referência aos realities shows, programas cujos índices de audiência ainda são bastante significativos ao redor do mundo, além dos famosos programas de auditório. Imediatamente, relacionamos a série aos conceitos do escritor francês Guy Debord – embora em dimensões muito mais catastróficas –, na qual o espetáculo torna-se um dos alicerces da contemporaneidade.

O espetáculo opera como um agravante na trama em virtude da hiperexposição dos indivíduos diante de plateias numerosas e telões. Em alguns episódios, situações do cotidiano tornam-se parte do show, de tal modo que não conseguimos distinguir a fronteira entre gestos espontâneos e calculados. A realidade e o show assumem proporções astronômicas (qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência).

 

O ônus e o bônus da tecnologia

Fato é que a tecnologia promoveu inúmeros progressos tais como a dissolução de fronteiras geográficas e difusão do conhecimento nas redes. Já cremos até na “imortalidade” dentro do ambiente virtual (condição pós-humana na qual os nossos perfis nas redes sociais simbolizariam a extensão de nossos corpos), então qual seria o outro lado desse apogeu tecnológico? Observamos com naturalidade o quanto a interação social no mundo “concreto” está comprometida devido a presença constante de smarthphones e tablets, mas não conseguimos refletir sobre os danos a longo prazo. Nem ousamos pensar com criticidade sobre isso.

A mensagem transmitida não se resume a uma visão meramente “tecnofóbica” (de aversão às tecnologias), não há apenas a tentativa de demonizá-las, e sim vê-las como um instrumento fruto de uma engenharia social, que tanto pode ser usada para o bem como para o mal. As tecnologias não nos corrompem, nós é que as corrompemos em benefício próprio. Não podemos exaltar o expansão tecnológica sem avaliar as consequências futuras. É disso que Black Mirror trata.

Visualmente a série também não decepciona. Com a produção, atuações e fotografia que dialogam com o que está sendo exibido, em pouquíssimo tempo nos sentimos cativados pelo enredo. Os movimentos de câmera às vezes fazem com que acreditemos que nós mesmos estamos “filmando” os personagens com a câmera dos nossos celulares.

A série retornou em outubro com seis novas tramas, em terceira temporada. Vale a pena conferir!

 Faixa indicativa: 16 anos.

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