Dica de leitura: “O deserto dos tártaros”.

BUZZATI, Dino. O deserto dos tártaros. Rio de Janeiro: Rio Gráfica, 1986.

O Deserto dos Tártaros conta a história de Giovanni Drogo, um jovem nomeado oficial, que deixa sua cidade natal para assumir o posto de tenente em um forte na fronteira, à margem de um deserto. A princípio, Drogo fica empolgado com a nova vida que irá iniciar, após anos de estudos, ainda que uma leve incerteza sobre o futuro o acompanhe.

Em direção ao forte, a cavalo, lentamente Giovanni Drogo vai se afastando de sua antiga vida; a intensa solidão e quietude no trajeto levam-no a imaginar como será o lugar para onde está indo. Ao se deparar com o forte, a expectativa se esvai ante a imagem desoladora de um lugar aparentemente abandonado ao silêncio. Tão logo adentra o ambiente, toma a decisão de não permanecer por muito tempo, já que o local é completamente inóspito, muito diferente da vida de alegrias que projetava com o início da carreira militar. E é para não prejudicá-la que Drogo se deixa convencer por um superior a aguardar quatro meses apenas, quando poderá requerer sua transferência para a cidade. Todavia, ao final do tempo determinado, nosso amigo já está entorpecido pelo mistério do lugar, acostumado à monotonia da rotina no forte, tanto que já se sente em casa. Na esperança de poder fazer algo nobre pelo seu país, guardando aquela fronteira, ainda que totalmente desabitada, Drogo toma a decisão de permanecer, afinal, ainda é jovem: “A vida parecia-lhe inesgotável”, o bom da vida pode esperar.

Assim, o tempo vai passando, cada dia exatamente igual ao outro, exceto raros eventos com suspeitas de invasão da fronteira deserta, que não se confirmam. Nas poucas visitas que faz à cidade, Drogo começa a sentir-se um estranho, pois o tempo lentamente trata de deixar-lhe esquecido pelos amigos e até mesmo pela família: “um mundo alheio em que seu lugar fora facilmente ocupado”. Sente que seu lugar agora é o forte, e passa a deixá-lo por menos períodos, chegando mesmo a retornar antes do prazo previsto, como se algo o prendesse àquele lugar e o chamasse ao seu posto, como se sua vida fosse esperar a invasão da fronteira que talvez nunca fosse acontecer.

Após trinta anos, o agora major Giovanni Drogo encontra-se enfraquecido e tomado por uma incômoda doença que não se revela totalmente, porém tira suas forças para combater, caso necessário. Nesse período de sua vida, a tão esperada guerra se apresenta, deixando a todos eufóricos com a possibilidade de finalmente combater e honrar seu país. Em lugar das glórias do combate, Drogo é conduzido para a cidade em uma carruagem, última deferência a um oficial moribundo em fim de carreira: “No fim ele estava só no mundo”.

A obra nos faz refletir acerca de nossas próprias vidas. Como Giovanni Drogo, quantos de nós deixamos a vida passar, esperando uma guerra, que talvez não venha e, se vier, pode nos encontrar já derrotados? Será que a tão esperada guerra já não está presente todos os dias e nós, na expectativa de algo mais grandioso, não a percebemos? O que estamos esperando para viver?

Falta muito? Não, basta atravessar aquele rio lá longe, no fundo, ultrapassar aquelas verdes colinas. Ou já não se chegou, por acaso? […] Por alguns instantes tem-se a impressão que sim, e quer-se parar ali. Depois ouve-se dizer que o melhor está mais adiante, e retoma-se despreocupadamente a estrada. Assim, continua-se o caminho numa espera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o sol brilha alto no céu e parece não ter mais vontade de desaparecer no poente.

Mas a uma certa altura, quase instintivamente, vira-se para trás e vê-se que uma porta foi trancada às nossas costas, fechando o caminho de volta. […] compreende-se que o tempo passa e que a estrada, um dia, deverá inevitavelmente acabar.

A um certo momento batem às nossas costas um pesado portão, fecham-no a uma velocidade fulminante, e não há tempo de voltar.

 

Kátia Rosita

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