Tudo isso vai passar, mas e ai?
Mês de emergência climática. Situação foi prevista pela ciência, mas não teve respaldo da classe governante que ampliou a devastação de áreas protegidas por conta de interesse imobiliários. População atingida luta para recompor suas vidas
Texto Carlos Dominguez e fotos Madu Lopes
Água. Por todos os lados a mesma cena. Água em excesso. Cidade sitiada pelos rios, canais, banhados e lagoas que nunca são lembrados. Só na seca e na enchente. O dia 27 de maio foi o de maior nível no Canal São Gonçalo, com 3m12cm, na ligação entre as lagos dos Patos e Mirim, que banha a cidade de Pelotas e que hoje é um imenso lago que praticamente une as duas lagoas da planície costeira do Rio Grande do Sul.
Para Sandra Alves, 55 anos, moradora da região do porto, considerada de risco pelo mapa da prefeitura, esta é a pior informação. O subir e baixar das águas, mudando centímetros para cima e para baixo, traz preocupações constantes.
– Não são só bens. Quando a gente fala que perdeu o cantinho da gente, perdemos pedaços da gente. Foram 20 anos fazendo a minha casa. É uma casa pequena, são poucos móveis, mas é o meu cantinho. Uns vão ter como se reerguer, outros não. Tudo isso vai passar, mas e ai? Vão sair dos abrigos, mas e ai? Vão para aonde? Vai piorar a miséria, vai piorar tudo. Eu não acredito que vai dar para recuperar. Cidades inteiras que foram destruídas. E a gente tem só meio ano. Nem estamos no inverno ainda. Mesmo sendo otimista a gente tem de ter o pé na realidade – afirma Sandra , sentada no auditório do Colégio Pelotense, esperando atendimento para se cadastrar no auxílio reconstrução do Governo Federal.
Apenas em Pelotas, são 1890 pessoas desabrigadas até o momento, entre os que buscaram abrigos público ou privados. Fora um número impreciso dos que deixaram suas casas para ir ficar com parentes ou amigos. Todos aguardando que as águas baixem para retornar aos “seus cantinhos”. Enquanto aguardam a chegada dos auxílios a população olha constantemente para os céus em buscas de indícios do desaparecido sol. E mudanças no vento.
O vento Sul salvou Pelotas neste mês de maio, duas vezes, extremamente chuvoso. Só nos últimos dias foram mais de 180 mm. Desde o início do mês, são 245 mm., segundo a estação de medição em tempo real da Embrapa Clima Temperado, onde fica a estação INMET. Em todo o ano, foram Nos dois episódios que o nível do Canal São Gonçalo se elevou de 3,2 metros, quando um aumento seria catastrófico para as áreas urbanas de Pelotas e Rio Grande, cidades cercados de uma imensa área inundada há mais de 3 semanas, com o solo completamente encharcado – ou seja, sem capacidade de absorver mais água – o que dificulta ainda mais que a água acumulada chegue ao lençol freático. Situação que é agravada pelo desmatamento, impermeabilização do solo com calçamento e a drenagem de banhados. Tudo pela ação do homem, movida pela expansão urbana irracional como ocorre em pelos desde 2008 de forma muito intensa. Segundo mapa divulgado pelo Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) publicou um mapeamento que mostra que o solo do Rio Grande do Sul está saturado a níveis da região do Rio Amazonas.
As mudanças no vento salvaram as cidades da inundação. Se subisse ainda mais o nível das águas, nada impediria que os já saturados sistemas de drenagens atuassem de forma a retirar o excesso de água da área urbana. No dia 16 de maio, chegando a 3,2 metros. No dia 27, chegou a 3,12 metros. A situação crítica foi evitada. Por um ou dois dias ao menos, no caso do dia 16. Na última marca, do dia 27, novamente o vento virou na madrugada. O ciclone extratropical pairou em cima da áraa urbana. O vento parou momentaneamente na madrugada. As nuvens baixas refletiam a iluminação, dando um aspecto alaranjado ao céu. No amanhecer, o vento sul soprou a chuva para longe. Ao meio dia havia fiapos de céu azul entre nuvens. No fim do dia o azul celeste dominava os céus que se encheram de estrela ao cair da noite.
O meteorologista Henrique Repinaldo CPPMET/UFPEL diz que os ventos sul/sudoeste “empilham a água da lagoa” nas margens leste e norte, o que alivia a região do deságue da lagoa no mar, passando por Pelotas e escoando na barra de Rio Grande. Já ensinavam os primeiros habitantes da região da planície costeira e da orla da lagoa. Minuanos e Charrua conheciam as mudanças ambientais e o aumento das áreas de inundação no decorrer dos anos. Viviam o ambiente, não os usavam para extrair vantagens de adquirir riquezas. A prepotência dos colonizadores europeus, cegos pela cobiça, destruíram as culturas que hoje poderiam ensinar como viver em harmonia com o ambiente, não em guerra de conquista com a natureza. O arqueólogo Rafael Milheira da UFPEL explica que as populações indígenas habitavam os ecossistemas de Mata Atlântica e do Pampa desde mais ou menos 5 mil anos atrás.
“De um ponto de vista ecológico, pode-se dizer que a relação entre as populações indígenas e o meio ambiente era de extremo equilíbrio, visto que, ao longo de aproximadamente 5 mil anos, foram explorados todos os ambientes dos referidos biomas, sem que nenhum tipo de distúrbio sistêmico negativo tenha se percebido, pelo contrário, nota-se que as áreas onde mais ocorrem sítios arqueológicos de ocupação indígena são áreas com ampla biodiversidade, como é o caso dos butiazais do sul do Brasil e Uruguai” explica o pesquisador do Laboratório de Antropologia e Arqueologia da UFPEL(Leparq).
De acordo com Milheira, Charruas e Minuanos viviam nos banhados, campos alagadiços e charcos ligados a grandes sistemas lagunares, como as lagoas dos Patos e Mirim.Estes foram os ambientes preferenciais de habitação desses povos. Havia muita fartura de comida. Atividades de caça, pesca, coleta e plantio de algumas espécies botânicas domesticadas como feijão, abóbora e milho. Além de plantarem, manejavam bosques de palmeiras e selecionavam várias espécies vegetais para uso doméstico, arquitetônico, ritual e medicinal. No que se refere às espécies animais, a pesca era variada, mas a corvina, a miraguaia, e os bagres eram os principais peixes consumidos, enquanto isso, a carne de mamíferos mais apreciada era de veado do veado-do-campo (Ozotoceros bezoarticus), cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus) e a preá (Cavia aperea).
Hoje, diante da devastação provocada pela expansão desordenada das populações, pouco resta de um sistema que tinha a sabedoria e a tecnologia para sobreviver as mudanças climáticas. Ainda não é tarde para recuperar estes ensinamentos.
“Quando a gente fica quando esta gente rica gentrifica. Como é que a gente fica! Tem tanta gente sem casa e tanta casa sem gente”– trecho de Não sei o que fica, “A Garota Não, Chullage” – In:https://open.spotify.com/intl-pt/track/4x6TXcj7HIu6yAIUrB8hZH?si=8e87188ff6414713
As águas da vida e da morte
Mapa publicado por geógrafos mostra que em 1966 já se sabia (e estavam mapeadas) as áreas úmidas e planícies de inundação de todos os cursos de água do estado do Rio Grande do Sul. Esta imagem, publicada por João Henrique Quoos, pelo IFSC, de Garopaba, indica que a expansão urbana das maiores regiões metropolitanos do estado, Porto Alegre, Vale do Rio dos Sinos e Taquari, Serra Gaúcha, e Zona Sul se deram exatamente nas áreas de inundações dos cursos de água. Não é por nada que a região foi batizada de Rio Grande do Sul. Tem muita água e muitos rios. Historicamente, o ciclo de catástrofes climáticas tem sido aceleradas pela devastação causada pela ocupação humana de áreas de proteção ambiental por empreendimentos imobiliários planejados sem considerar a realidade ambiental que não beneficiam à população, apenas a elite de sempre. O setor imobiliário alicia os poderes legislativos e prefeituras municipais para flexibilizarem à legislação ambiental. Sabe-se lá a que custo.
Em Pelotas, segundo o professor Marcelo Dutra, ecólogo da FURG, desde 2008 a legislação ambiental foi sendo alterada na Câmara de Vereadores em revisões do Plano Diretor que facilitou a ocupação das áreas úmidas e banhados pela construção civil de diversos condomínios de luxo, shopping center e outros empreendimentos.
– Isto tem haver com as nossas práticas seculares de uso e ocupação da terra e carbonização da atmosfera na qual não nos comportamos muitos bem. Sem nenhum respeito aos limites da natureza, seja no campo, seja na cidade. Muitas destas práticas ganharam força muito recentemente. Em Pelotas, avançaram sobre terrenos baixos, planos e úmidos em ambientes de margens sensíveis e vulneráveis nos últimos 14 anos. Com a alteração do Plano Diretor em 2008, estimulando o direcionamento da cidade na direção do Laranjal. E, em 2018, foram feitas alterações terríveis, com sucessivas alterações menores nas áreas de interesse ambiental, Na verdade, fizemos escolhas muito ruins. Temos de não mais permitir esta expansão nestes terrenos – explica Marcelo Dutra.
A ocupação desordenada dos banhados, sistemas ambientais que amenizam cheias funcionando como esponjas naturais, produziu um avanço na desigualdade de condições de moradia. Bairros de estrutura precárias, em áreas baixas e ocupações de áreas de risco são vizinhos de empreendimentos de luxo. Como no emblemático caso da instalação de bombas de drenagem pelo condomínio Lagos do São Gonçalo flagrado jogando água na direção de bairros populares. O caso levou a intervenção da polícia, Ministério Público, retirada do equipamento e abertura de processo judicial para responsabilizar os autores do que passou a ser denominado “racismo ambiental”.
De fato, balanço publicado pelo Instituto Metrópoles, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) mostra que as áreas mais alagadas na região metropolitana de Porto Alegre são de populações pobres. A análise foi feita pelo pesquisador André Augustin. Da mesma forma que é esta mesma população que tem necessidade de deixar suas casas e ocupar os abrigos públicos e privados. Refugiados climáticos é a expressão recorrente. Estima o estudo que 2,3 milhões de pessoas foram afetadas pelo emergência climática. E ocorreram mais de 188 mortes.
O mesmo velho colonialismo segue há 500 anos como o modelo principal de organização sócio-econômica do Brasil e demais países do continente. Nos oito últimos anos a fúria produtivista-financista devastou imensas áreas de proteção ambiental por todo o país. A destruição deixada pelo atraso de um modelo de desenvolvimento tornou a vida das pessoas pobre, doente, devastada, esgotada. Enquanto milionários das elites mais atrasadas do planeta deliciam-se com a riqueza roubada, a maioria da população é colocada em guetos de trabalho, periféricos, sem acesso à mobilidade social. Guetos do pós capitalismo do caos que exerce o controle digital de tudo e todos. Opiniões, desejos, satisfações, medos e rejeições. Tudo na palma de sua mão.
– Da mesma forma, as elites econômicas e políticas minimizam tais alertas e continuam a tomar decisões que comprometem a nossa segurança coletiva. O uso irracional dos recursos naturais, o comprometimento de biomas importantes e a manutenção de padrões de produção e de consumo insustentáveis seguirão comprometendo vidas e, também, os próprios empreendimentos privados – afirma André Moreira Cunha, vice-diretor da Faculdade de Ciências Econômicas.
Moreira tem falado publicamente sobre a calamidade, caminhos para a economia gaúcha, e escreveu um manifesto sobre o assunto denominado “A Reconstrução do Rio Grande do Sul”. Longe das análises, a vida dos que deixaram suas casas seguem precárias. A rede de solidariedade montado por organizações civis, sindicatos e voluntários, dá conforto, comida e dignidade a quem perdeu o pouco que tinha de recursos materiais e das insubstituíveis noções de pertencer à uma comunidade, ou, em outras palavras, humanidade. Humanidade que as cidades atuais repelem, fortalecendo individualismos e exclusivismos em locais fechados, como os condomínios de luxo que infestam os banhados de Pelotas. Cercados das áreas que são esquecidas pelo poder público na questão de infra-estrutura básica.
– A natureza se revoltou, parece. Mas faltaram providências, pois as áreas poderiam ter sido represadas. E ai tá todo mundo sendo penalizado. E a questão psicológicas das pessoas não vão ser em meio ano que se resolve. Demora, como a pandemia, que deixou sequelas. Até que ponto a gente vai ficar seguro? Tem gente que fica perguntando… para onde que eu vou se subir mais a água? A gente que ir para o nosso cantinho. E essa insegurança joga um ponto de interrogação lá na frente – projeta Sandra, preocupada com sua casa e da mãe de 80 anos, Isabel.