The Curse e o horror em tudo que é comum

Ninguém precisa de horrores além da compreensão quando o terrível cotidiano bate à sua porta.

Por Tobias Bernardo / Em Pauta.

 

The Curse é uma série bizarra, fascinantemente bizarra. Durante 10 episódios ficamos imersos no microcosmo cruelmente real do casal Asher (Nathan Fielder) e Whitney Siegel (Emma Stone). Em um estado de harmonia perfeitamente incômoda, acompanhamos o dia a dia deles à medida que tentam produzir um reality show ao estilo “Irmãos a Obra” sobre o projeto de casas sustentáveis “invisíveis” que o casal está tentando empreender. Quando ambas as coisas começam a falhar simultaneamente, os resultados são aterrorizantes, mas não de forma sobrenatural, e é justamente por isso que “The Curse” é tão impressionante e horrível (no melhor dos sentidos).

Quando pensamos em terror ou suspense os temas que podem surgir na nossa mente são coisas como: monstros, catástrofes de proporções bíblicas, horrores inimagináveis e lovecraftianos ou o incompreensível na sua forma mais abstrata, e com essas definições acredito que acabamos esquecendo (eu muitas vezes esqueço) que experienciamos todos os dias da nossa vida pequenos casos de terror. O medo que mora nas pequenas interações humanas, de ser ignorado, de ser mal interpretado, de escutar o ensurdecedor silêncio que fica na sala depois de um comentário que você fez, todo pequeno desconforto causado pelos deslizes que damos ao tentar seguir as normas sociais que nos cercam é angustiante, e “The Curse” sabe disso.

Poster The Curse / Divulgação: Paramount

O produtor, roteirista e ator principal da série, Nathan Fielder, conta no seu currículo com obras que gostam de descosturar a fina camada social que tecemos no nosso dia a dia. Em “Nathan For You” (2013), por exemplo, ele faz o cômico brotar do absurdismo da vida real. Meio documentário e meio reality show, essa série, protagonizada por Nathan como personagem dele mesmo, exemplifica bem a maneira como nos guiamos por aparências sensíveis, principalmente diante das câmeras. Ao passo que vemos o protagonista dar pitchings absurdos para negócios que desejam melhorar seu rendimento, também começamos a entender como nós assumimos papéis o tempo todo. Por mais insana e imoral que a ideia seja, os donos dos negócios ainda relutam em dizer não, e acabam, quase todas as vezes, tendo as suas vontades de lucrar mais e desejo de aparecer na TV sendo explorados por Nathan e expostos ao ridículo.

Os resultados da empreitada sempre me deixaram pensando “como e por que essas pessoas permitiram que chegasse nesse ponto?” e a resposta surge das implicações de uma outra pergunta: “eu também deixaria se estivesse no lugar deles?”. Provável que a minha ansiedade social me impedisse de dizer não para alguém em frente às câmeras, provável também que, mesmo profundamente constrangido, eu não criticaria o absurdismo da situação para não “estragar” o fluxo de um show que, se eu estivesse nesse cenário hipotético, eu não entenderia. Essa ansiedade, que se resume muito em medo de gerar desconforto, é a marca registrada do protagonista e co-roteirista de “The Curse”, e obviamente não fica de fora aqui.

 

Nathan For You/ Divulgação: Comedy Central

 

Na série de 2023, ao contrário de Nathan For You, as cenas são totalmente scriptadas. Isso não impede que elas sejam muito desconfortáveis de se ver. As atitudes dos personagens criam momentos nauseantes, misturando o discurso hipócrita de pessoas que querem estar moralmente corretas, com as reais intenções representativas da classe dominante. Os protagonistas Asher e Whitney são pessoas desesperadas por aprovação, e o caminho de desejo pelo controle do que o outro pensa sobre eles os tortura com interações desagradáveis ao passo que nos sufoca de agonia.

Whitney é obcecada em performar um moralismo ideal contanto que isso não afete seus privilégios e objetivos. Filha de um casal inescrupuloso do ramo imobiliário, ela tenta seguir o caminho “correto” na construção de casas que não agridem o meio ambiente, tampouco crie problemas para a comunidade carente que vive ali antes mesmo do empreendimento. Entretanto, tudo desmorona quando ela se depara com o abismo entre as suas expectativas e a dura realidade. Whitney acredita ser uma artista mesmo não entendendo de arte, acredita ser uma empresária mesmo com um projeto fracassado e acredita ser uma salvadora mesmo sendo a co-autora de todos os problemas da comunidade e do seu relacionamento frustrado.

Por outro lado, Asher vive em função de seu relacionamento. Outro obcecado, que  tenta performar quem ele acha que deve ser. O marido quer ser aceito por Whitney como um bom parceiro, contudo seus medos e superstições interferem nas suas decisões que, por sua vez, o distanciam do ideal que a esposa deseja. Asher é covarde e submisso, características que Whitney enxerga nele, despreza e mesmo assim reproduz em suas escolhas. Mesmo ambos estando equivalentes no âmbito comportamental, não conseguem se conectar um com o outro, seja por egoísmo ou pelo medo.

Asher e Whitney/ Divulgação: Paramount

“The curse” nos apresenta uma verdade crua que não costuma habitar o campo ficcional das séries e filmes. Somos expostos aos inconvenientes diários, verdades do cotidiano através de cenas longuíssimas nas quais nada “especial” ou “relevante” acontece, e é do vácuo deixado pela ausência de excepcionalidade que nós entendemos duas coisas. 

A primeira é a potência que a transposição da realidade para as telas têm. Essa edição recorta o essencial ao entretenimento, supera a factualidade e a transforma em algo extraordinário. Por exemplo, quando Dougie (Ben Safdie), o produtor do reality show dentro da série, entrega o resultado final do trabalho aos moldes e desejos de Whitney, ela compreende que exibir somente o que lhe é conveniente não engrandece o produto, sem conflito não há sequer um produto. E a segunda, intrinsecamente análoga à primeira, é que emulando o cotidiano a série devolve seu próprio argumento à medida que a exposição do absurdismo de uma produção de TV cresce. Não existe controle pleno sobre o mundo que nos cerca, a mídia pode interpretar muito bem a idealização disso, contudo falha quando tentamos excluir todas as partes inconvenientes, as consideradas descartáveis, se tornando entediante. 

Extrapolando essas ideias, “The Curse” opera em um nível estranhamente familiar e abre espaço para o desinteressante se reconstruir na nossa mente.  Ficamos ansiosos assistindo o banal, presos à contemplação excessivamente naturalista de uma situação amaldiçoada com o eterno comum. Uma ótima experiência para quem quer se sentir desconfortável.

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