Representações da webcultura Femcel no cinema e na música

Mais do que um contraponto ao movimento Incel, o nicho Femcel cresce como um fenômeno que abraça jovens mulheres com problemas para se envolver em relacionamentos.

Principais produções musicais e cinematográficas adotadas como símbolos pelas mulheres que simpatizam com a cultura Femcel.

Por Bruna Meotti / Agência Em Pauta

 

Um certo estereótipo se torno u comum entre mulheres da geração Z. Se você decorou o discurso da “Cool Girl” do filme Garota Exemplar, canta Teen Idle, da Marina, enquanto se lamenta por uma adolescência incompreendida, ou fantasia com romances irrealistas sob a trilha sonora da Lana Del Rey, é bem possível que você se identifique com muitas problemáticas abordadas no recente nicho da internet: as Femcels.

O significado do termo Femcel é frequentemente associado ao movimento Incel, que se traduz como “celibatário involuntário”. Esse grupo compreende homens que não se relacionam com mulheres por N motivos — desde uma ausência total de habilidades sociais, discursos misóginos, até uma aparência potencialmente fora do padrão —, eles as culpam pela “incapacidade” de ter relações, reforçam ideias sexistas e frequentemente proferem discursos de ódios contra diversas minorias.

Usuário de fórum na Deep Web manifesta indignação por ter que assumir tarefas “tradicionalmente femininas”.

 

O termo foi utilizado pela primeira vez por uma universitária canadense na década de 90, que criou um site para que pudesse compartilhar relatos com outras pessoas que não tinham relações sexuais. O espaço se chamava “Alana’s Involuntary Celibacy Project, e não restringia o conceito de Incel ao sexo masculino, tampouco havia qualquer culpabilização das mulheres dentro da comunidade. Com o tempo, a criadora explorou a sua identidade e veio a abandonar a atividade do site. O termo, então, passou gradativamente a descrever rapazes frustrados pela inatividade sexual.

Dentro dessas bolhas masculinas encontramos símbolos da cultura popular sendo adotados como representações de seus ideais e do “modelo” a ser seguido por um homem. Eles admiram produções cinematográficas como Matrix, Taxi Driver, Psicopata Americano, Peaky Blinders, Clube da Luta e uma infinidade de tramas que apresentam personagens com o comportamento almejado por esses jovens.

Patrick Bateman, protagonista do filme Psicopata Americano.

Diante da popularização do conceito de Incel como uma representação de um nicho masculino, algumas mulheres passam a se denominar Femcels. Sob uma análise rasa, alega-se que é uma mera “versão feminina” dos Incels, descrevendo mulheres que, apesar de almejarem relacionamentos, não os conseguem em virtude de deficiências físicas ou cognitivas, transtornos mentais, aparência fora do padrão ou até questões culturais.

Entretanto, com a difusão do movimento Femcel na cultura popular, é possível observar o conceito através de nuances e envolver um número maior de mulheres e uma diversidade maior de condições em que elas se encontram para determinar o que é, de fato, uma Femcel.

Algumas descrições englobam mulheres que sentem atração por homens e possuem plenas condições de se relacionar — e muitas vezes possuindo uma aparência tida como atraente pelo gênero oposto —, porém conscientemente não o fazem para se “proteger” do comportamento masculino ou em razão de traumas pré-existentes em relação a figuras masculinas.

Mesmo considerando a divergência entre alguns grupos de Femcels quanto ao conceito da subcultura poder ou não compreender mulheres que podem se relacionar, mas que simplesmente escolhem não fazer isso, algo é consenso: garotas que se identificam com a ideia possuem, pelo menos, dificuldades em interações sociais e personalidades comumente vistas como “exóticas”.

Indo além desta base, podemos observar a associação de alguns estereótipos como neurodivergências e alguns transtornos mentais e/ou de personalidade (depressão, ansiedade, borderline, transtorno do espectro autista e outros…), os famigerados daddy/mommy issues (problemas de convívio com o pai ou a mãe), e o consumo de obras que traduzem a excentricidade da personalidade dessas mulheres.

 

PEARL

 

O spin off do filme X, dirigido por Ti West, está entre a lista de produções de sucesso da A24. A história, que é do gênero slasher, tem como protagonista Pearl, a vilã de X, e a apresenta em sua juventude no interior do Texas, no ano de 1918, na busca de realizar o sonho de se tornar uma estrela e abandonar a fazenda da família.

Pearl, interpretada por Mia Goth.

Estrelado por Mia Goth, neta da atriz brasileira Maria Gladys, o filme expõe o cenário conturbado do passado de Pearl: a problemática relação com a mãe autoritária, a ambição doentia e a incapacidade de digerir rejeições, o que a leva a ceder a impulsos extremamente violentos. E assim é construída a personagem que, no filme precedente, cometeu tantas brutalidades.

Nicole, 21, que engaja bastante com as mídias ligadas ao nicho femcel, relata que se identifica com Pearl por alguns motivos: “Infelizmente mommy issues, dificuldades pra se relacionar, sentir tudo de maneira muito intensa e desesperadamente tentar correr atrás de sonhos que parecem ser tãooo distantes.”

Helena, 18, embora simpatize e tenha fortes relações com o femcel, diz que não se considera parte do grupo. Ela aponta questões em comum entre Pearl e o filme Virgens Suicidas: “Ambos são filmes que afetam bastante a minha percepção em relação às mulheres e a sociedade, até por conta de certo grau identidade que eu tenho com as protagonistas. Os filmes são perfeitas obras que mostram os extremos entre o sonho feminino de um amor perfeito e seus sacrifícios com conflito com os sonhos delas.”

 

ULTRAVIOLENCE

 

O terceiro álbum de estúdio da artista estadunidense Lana Del Rey foi produzido sob influências do rock psicodélico, sua versão padrão conta com 11 faixas, enquanto a deluxe possui 14. Assim como os trabalhos anteriores da cantora, adentra temáticas como relacionamentos problemáticos, melancolia, drogas, dinheiro, sexo e fama.

Capa do álbum Ultraviolence.

A história central do álbum trata de um relacionamento tóxico, onde o eu lírico tenta se convencer de que seu parceiro a faz bem, enquanto as letras das canções deixam claro que a sua situação é extremamente prejudicial. Especialmente na canção Ultraviolence, que faz referência à agressão doméstica.

Dentro da cultura femcel, Lana Del Rey é tida como um dos maiores símbolos, frequentemente tendo suas obras associadas a mulheres que possuem relações problemáticas com suas figuras paternas.

Helena, ao ser perguntada sobre artistas que relaciona ao femcel, fala um pouco da sua visão sobre Lana: “Eu considero a Lana Del Rey uma artista que tem características de femcel nas suas obras, principalmente no álbum Ultraviolence, que narra a dificuldade dela sair de um relacionamento tóxico e ingressar em uma nova rotina amorosa onde ela aceita qualquer migalha de atenção enquanto se ilude com as esperanças de um amor verdadeiro.”

 

ELECTRA HEART

 

Electra Heart é o segundo álbum de estúdio e trabalho mais popular da cantora galesa Marina (anteriormente conhecida como Marina and the Diamonds). A produção foi pioneira no que se conhece na cultura pop como “álbuns de conceito”, e além de ter dominado a estética do Tumblr a partir de seu lançamento, em 2012, influenciou diversos artistas, como Billie Eilish e Melanie Martinez (outro forte símbolo dentro do femcel).

Capa do álbum Electra Heart.

O álbum, que nasce como uma crítica ao papel social feminino no ocidente e a objetificação das mulheres na indústria, apresenta ao ouvinte a personagem Electra Heart, e acompanha a sua vida através de 4 arquétipos: a Teen Idle (adolescente desocupada), Beauty Queen (rainha da beleza), Housewife (dona de casa) e a Homewrecker (destruidora de lares). Todas essas fases da vida de Electra Heart são representadas por diferentes músicas dentro do álbum.

Marina Diamandis buscou diferentes inspirações para a produção das canções e a construção do conceito do álbum que busca fazer uma alusão ao sonho americano. As referências utilizadas vão desde a tragédia grega até filmes como Valley of the Dolls (O Vale das Bonecas), obra dos anos 60 que também é reivindicado pelo femcel e dá inspiração à canção homônima escrita por Marina. Já a construção da personagem foi influenciada por figuras femininas como Marilyn Monroe, Britney Spears, Madonna e a rainha francesa Maria Antonieta.

Marina no clipe de Primadonna.

Electra Heart é um álbum frequentemente ligado à cultura femcel justamente pela abordagem do sofrimento feminino diante dos papéis sociais que as mulheres são esperadas a executar e as consequências da pressão e das expectativas. Na canção Teen Idle, por exemplo, cuja pronúncia faz um jogo com a expressão “Teen Idol” (ídolo adolescente), o eu lírico expressa uma série de arrependimentos relacionados a uma adolescência conturbada e sexualizada, fazendo referência a problemas como alcoolismo e bulimia.

 

O QUE A CULTURA DE CONSUMO NOS DIZ SOBRE O FEMCEL?

 

É interessante analisarmos a adesão de alguns produtos midiáticos dentro do nicho femcel como formas de representatividade. Sobretudo quando pensamos no que tipicamente é associado aos incels. Quando observamos um grupo que tem como ícones Amy Dunne e Pearl, em oposição a um grupo que se sente representado por figuras como Tyler Durden e Patrick Bateman, podemos dizer que eles são essencialmente diferentes, mesmo que possuam propósitos distintos?

Em termos práticos, enquanto o cerne do incel é a culpabilização da mulher pela infelicidade ou frustração dos homens, é possível dizer que a cultura femcel assume um papel de acolhimento para jovens mulheres que buscam formas de externar e lidar com seus traumas e a pressão sofrida diariamente em virtude do que se espera socialmente delas.

Nicole afirma que a comunidade femcel não promove ódio aos homens, mas se concentra em enfrentar e superar problemas que possam ter se originado através de figuras masculina ou através das dificuldades de convívio características das mulheres que se identificam com o movimento. “No fundo a gente só é um monte de mulher esquisitinha, meio solitária, que quer ser amada de algum jeito e achou esse grupo que nos acolhe e ajuda a transformar tudo isso de sentimento ruim em piada, em estética, em um jeito de viver.”

Ela também diz que, apesar da semelhança no nome, o femcel contraria totalmente o incel, que é conhecido por apontar como negativo tudo o que se relaciona às mulheres, e conclui: “Incel é sobre ódio, femcel é sobre acolhimento.”

         Contudo, é importante esclarecer que, apesar de serem grupos baseados em motivações diferentes com formas distintas de lidar com as próprias dificuldades, não significa que o femcel não é potencialmente prejudicial, como qualquer outra bolha na internet.

Para Taiane Volcan, doutora em linguística e pesquisadora, a tendência de radicalização é um problema a ser levado em consideração, pois ideias que inicialmente se mostram pouco relevantes possuem o poder de escalar dentro de grupos homogêneos. “Embora esses grupos possam representar espaços de acolhimento, nem sempre isso é algo positivo”.

“A sociedade em rede tem por característica a produção de câmaras de eco, que são espaços de trocas onde os sujeitos se isolam a ponto de apagar (metaforicamente) o que está fora da câmara de eco e amplificar o que está dentro. Com isso, as pessoas passam a assimilar determinados contextos como a realidade do mundo, ignorando que aquilo representa apenas um fragmento. Esse tipo de “eco” é bastante prejudicial, pois tem potencial de distorcer perigosamente a realidade para os sujeitos que fazem parte desses grupos.”, explica Taiane.

Especificamente sobre a adoção de símbolos dentro dessas culturas, a doutora nos diz que obras como Pearl e Psicopata Americano apresentam personagens que foram pensados para representar o adoecimento humano, e não figuras que devem ser tomadas como modelos. “Eles evidenciam problemas da sociedade que resultaram naqueles comportamentos, ou seja, são personalidades que funcionam como alerta sobre as consequências de problemas que podemos ou devemos evitar e não seguir ou adotar como modelo.”

E quanto a identificação da cultura femcel na música, Taiane acredita que, enquanto expressão artística, a música deve nos fazer refletir, e que essa reflexão é importante para a evolução do sujeito e, logo, da sociedade. Mas que esse consumo é problemático quando ocorre a reprodução sem o fator crítico, algo comum e problemático dentro de grupos radicalizados.

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