Pela diversidade e inclusão étnica, cultural e de gênero no interior do RS

Patrono da Semana da Cultura de Piratini 2023 é um retrato dos temas da edição deste ano do evento, que focou na promoção da diversidade e inclusão no município.

Por Julia Barcelos / Agência Em Pauta

Niry, Patrono da Semana da Cultura de Piratini 2023, durante apresentação no Baile da Senhorita no Clube Sociedade Recreio de Piratini. Foto: Julia Barcelos

Piratini é popularmente conhecida por sua participação na história de nosso estado e suas raízes tradicionalistas gaúchas. Assim como na maioria das cidades pequenas do interior, na Primeira Capital Farroupilha predominam a cultura e os valores conservadores, considerados tradicionais na sociedade. Porém, a Semana da Cultura deste ano, surge com dois temas que focaram na promoção de uma maior diversidade e inclusão étnica, cultural e de gênero na cidade. O Patrono escolhido pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo para representar a cidade nessa semana de eventos é um verdadeiro retrato dessas duas temáticas, somadas ao ponto principal: a cultura.

Cedenir Urubatan da Luz Silveira, popularmente conhecido como Niry, nasceu na cidade de Rio Grande, mas se estabeleceu em Piratini há mais de 20 anos. Niry é cabeleireiro, tendo salão próprio em sua casa na Primeira Capital Gaúcha. Além de seu trabalho com a estética, o riograndino se destaca por sua forte ligação com a cultura e a dança, no carnaval, no samba e em suas apresentações artísticas de interpretação, como Drag Queen.

Muitos anos de Carnaval

As paixões pela música e dança o acompanham desde quando era jovem em Rio Grande. Niry conta que, nesta época, sua cidade natal era recheada de escolas de samba e blocos de carnaval, os quais ele participava ativamente desde seus 18 anos. Começou a concorrer por títulos ainda em Rio Grande, no bloco Marilu, conhecido devido aos seus participantes se vestirem como mulheres, como brincadeira de Carnaval — usarem um vestido por cima da roupa. Porém, Niry explica que apesar de não se tratar de um bloco LGBT, eram os membros dessa comunidade que concorriam à rainha, madrinha, primeira-princesa e segunda-princesa.

Desde sua primeira participação, o riograndino sempre ganhou algum título. No entanto, ele afirma que seu amor pelos concursos e desfiles não é ancorado na conquista das faixas, mas sim na emoção de participar dessas manifestações artísticas. Ainda, Niry se emociona ao relembrar quando foi a primeira rainha LGBTQIA+ incluída na corte da escola de samba Castelo Branco, de Rio Grande, em 2012: “Para mim foi muito gratificante… Nossa, você não tem ideia, cada vez que lembro vem uma emoção muito grande”, ele embarga a voz.

Nos dias atuais, Niry brilha no Carnaval de Piratini, desfilando pela escola de samba Gambada, na qual foi coroado como Musa LGBTQIA+ do carnaval piratiniense deste ano. Ele conta que recebeu o título com muita honra: “Nunca imaginei poder estar dentro de uma sociedade repleta de pessoas amigas, tendo elas e, até as autoridades máximas da cidade, aplaudindo a minha arte”.

Participação como Patrono na Semana da Cultura de Piratini 2023

Niry revela ter recebido com surpresa o convite da Secretaria de Cultura e Turismo. Ao dar detalhes sobre esse momento, ele se emociona falando sobre a cautela dos organizadores do evento ao lhe perguntarem como queria ser tratado, nos pronomes masculinos ou femininos, ou seja, como Patrono ou Patronesse: “Na hora eu me emocionei, me segurei para não chorar. Respondi rapidamente que, sem sombra de dúvidas, seria o Patrono. No masculino, já que sou um homem gay. Isso foi muito emocionante para mim”.

Niry no Coquetel de Abertura da Semana da Cultura de Piratini 2023. Foto: Divulgação/Prefeitura de Piratini

O riograndino resume um pouco como foi receber esse título: “Para mim, é de uma importância muito grande, porque eu sempre menosprezei a minha arte“. Niry revela que sempre inferiorizou suas expressões artísticas em relação à cultura e tradição gaúcha, que é muito forte em Piratini. Esse sentimento aumenta ainda mais devido ao fato de que a cultura do carnaval não é muito comum na cidade e as artes de interpretação menos ainda. Enquanto a tradição gaúcha está presente o ano inteiro e celebra vários eventos na cidade. Para Niry, era como se sua arte no carnaval fosse vista pelas pessoas apenas como uma diversão, não como cultura. Até mesmo ele próprio duvidava disso, mas hoje percebe que sua arte e cultura são tão válidas e importantes quanto as tradicionais gaúchas.

Com muito orgulho, o Patrono afirma que a Semana da Cultura de Piratini deste ano teve uma proposta que possibilitou que as mais variadas tradições e culturas se fundissem e habitassem o mesmo espaço. Essa pluralidade é percebida inclusive nas escolhas do carnavalesco Niry, como Patrono, e do tradicionalista José Danilo de Ávila, como homenageado póstumo: “Quando colocam de um lado um homem extremamente tradicionalista e do outro um LGBT, negro, pobre, de família humilde, ambos sendo homenageados a este nível… Para mim, a emoção aflora! É muito importante e significativo”, declara em meio a sorrisos.

 Intitulado como Patrono da Semana da Cultura, Niry prestigiou e participou dos mais diversos eventos culturais na cidade, sempre ao lado de sua filha adotiva, Emilly Victória, de 6 anos de idade. Dentre os eventos, destaca-se sua apresentação artística no baile que escolhia a nova Corte Municipal, no qual ele e Emilly interpretaram uma sequência de três músicas: “Encontrei uma chance de fazer um show que eu realizaria apenas nos encontros LGBT, como nas boates ou paradas gays de Pelotas e Rio Grande”. Com essa premissa, Niry e sua filha dançaram e dublaram as músicas “Não Deixe o Samba Morrer”, de Alcione, e “Tá Escrito”, do Grupo Revelação. Porém, a performance que mais impressionou a comunidade piratiniense foi a interpretação de “É Disso Que o Velho Gosta”, de Berenice Azambuja. A escolha da terceira música foi uma oportunidade de Niry experimentar novos ritmos, já que foi a primeira vez que realizou a apresentação de uma música gaúcha.

Niry durante apresentação no Baile da Senhorita no Clube Sociedade Recreio Piratiniense. Foto: Julia Barcelos

Além da interpretação gauchesca, outro aspecto que chamou a atenção do público foram os figurinos, os quais Niry e Emilly trocavam atrás de uma cortina, no meio salão do Clube Sociedade Recreio Piratiniense (SRP). Foram quatro trajes, iguais para pai e filha. Os primeiros tratavam-se de vestidos pretos longos com brilhos prateados, luvas e saltos altos, expressando a elegância e poder de Alcione. Os segundos eram vestidos de strass também na cor prata para representar uma música mais agitada, do Grupo Revelação. Já os terceiros eram roupas brilhosas de carnaval nos tons quentes de vermelho, laranja e amarelo. As fantasias estavam por baixo dos vestidos anteriores e foram retirados pela dupla ainda no meio da coreografia de “Tá Escrito”. Por fim, a última troca de roupa transforma Niry em Berenice Azambuja, que se movimenta belamente pelo salão com sua gaita. Nesta coreografia, Emilly está pilchada com vestido de prenda azul claro, dançando e atuando com outras crianças no centro do clube. “Quis entrar num vestido longo de veludo, naquele jeito mais chique com salto scarpin e depois ir para um samba mais agitado do carnaval. Então, sair daquela personagem do carnaval para outra gaúcha, mostrando a tradição e que é possível convivermos em sociedade. Só basta um detalhe: o respeito”, ele contextualiza sua ideia com animação.

Niry e Emilly Victória durante apresentação no Baile da Senhorita no Clube Sociedade Recreio Piratiniense. Fotos: Julia Barcelos

O artista afirma estar muito satisfeito com o desempenho dele e de sua filha na apresentação. As performances da dupla receberam chuvas de elogios já durante o baile e ainda mais nas redes sociais. Era nítido o foco da plateia presente no Clube SRP, que respondia a cada movimento com sorrisos e aplausos. Niry ainda confirma que os dois foram convidados pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo para repetir as apresentações do baile em um evento que fará alusão ao Dia da Consciência Negra, em novembro. O ato deve receber mais divulgação da Prefeitura de Piratini em breve.

Quanto à participação de sua filha nas atividades e eventos artísticos, o Patrono nos confirma que as iniciativas sempre partiram dela, que desde muito pequena imitava o pai dançando. Além de desfilar ao lado de Niry no carnaval de Piratini, Emilly também faz aulas de balé e participa de uma invernada. Niry revela que aprendeu a gostar dessas duas outras artes e passou a frequentar ambientes novos por conta do interesse da filha. Também afirma que apesar de sempre ter sido aceito pela comunidade Piratini, começou a se sentir mais bem-visto aos olhos da população após a adoção e sua história com pequena Emilly: “Dizem que minha filha tirou a sorte grande, mas quem tirou a sorte grande fui eu, por ter ela em minha vida”, completa ele.

Niry e Emilly Victória durante apresentação no Baile da Senhorita no Clube Sociedade Recreio Piratiniense. Foto: Julia Barcelos

O Patrono ainda revela como foi a sensação de estar se apresentando junto da filha no evento do Baile da Senhorita: “Estar com ela no palco foi emocionante, ela parecia uma adulta! Você não faz ideia do quanto eu já me emocionei e chorei vendo os vídeos dela no baile. Ela é uma criança muito amada por mim e por toda minha família e amigos”.

Educação em primeiro lugar

Em um último momento de entrevista, Niry faz um apelo aos pais para que invistam na educação de seus filhos e os incentivem a prestigiar e participar de atividades culturais, não apenas na Semana da Cultura, mas de modo geral: “A arte, a cultura e a educação salvam vidas. Tem muita gente jogada na marginalidade por não ter uma oportunidade. Quando estamos envolvidos com arte, preenchemos nossa mente de coisas boas”, afirma ele.

Além disso, também reforça a riqueza cultural de Piratini e as possibilidades artísticas que a cidade proporciona, como a Escola de Música do Rotary Clube Piratini, a Fábrica de Gaiteiros, as invernadas, o Carnaval, o balé, a Semana Farroupilha e muito mais: “Nem tudo depende de dinheiro, as aulas de música (do Rotary Clube Piratini) e a Fábrica de Gaiteiros são gratuitas. Porém, também é importante repensar os valores gastos com os seus filhos. Ao invés de comprarem brinquedos caros, que logo enjoam, coloquem eles nas atividades culturais, invistam na educação das suas crianças. Vale muito mais a pena!“, aconselha o Patrono.

A Semana da Cultura de Piratini deste ano está acabando, mas deixa um legado de representatividade de culturas e identidades. Espera-se que cada vez mais a diversidade se faça presente não apenas em Piratini, mas em todo o nosso estado, ainda tão conservador e preconceituoso.

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