Festival Ruídos Queer+ encerra 2ª edição em Pelotas reafirmando o cinema como armamento simbólico e espaço de resistência LGBTQIAPN+
Encerramos a 2ª edição do FIRQ+ com 28 filmes de 12 países, muita arte insurgente e afetos em movimento. Em pleno Rio Grande do Sul, estado mais letal para pessoas LGBTQIAPN+, o festival se firmou como um ato político, abrigo simbólico e trincheira estética.
Por Eduarda Saraiva
Entre os dias 23 e 25 de julho de 2025, Pelotas (RS) recebeu a 2ª edição do Festival Internacional de Cinema Ruídos Queer+ (FIRQ+), evento que transformou o CineUFPel em um território de escuta radical, sensibilidade coletiva e insurgência estética. Idealizado pela Coletiva Transperformática Ruidosa Alma, o festival exibiu 28 filmes de 12 países nas categorias Ficção, Documentário, Experimental e Vídeo Musical, e promoveu debates, oficinas e apresentações artísticas com foco em corpos em risco e imagens em disputa.
Mais do que um festival de cinema, o FIRQ+ se coloca como um dispositivo estético-político que responde de forma direta à violência estrutural que atravessa a vida da população LGBTQIAPN+, especialmente no contexto do Rio Grande do Sul, o estado brasileiro com maior número de crimes contra pessoas queer em 2024, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Tabela de registros de crimes contra a população LGBTQIAPN+. Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2024
“Nossa arte não é ornamento. É armamento. Um escudo simbólico que denuncia, mas também protege. Que acolhe e convoca à reflexão. Que cria redes de sobrevivência e possibilidades de futuro”, afirma a Coletiva Transperformática Ruidosa Alma, por meio das vozes de Sá de Moraes Pretto, Eduard de Moraes Pretto e Ruya Carlo, que responderam em nome do coletivo.
Ruído como estética da ruptura
Inspirado na metáfora do “ruído” como interferência criativa, o festival adota uma curadoria que desorganiza o discurso dominante, priorizando obras que perturbam gramáticas normativas e dão centralidade à corpos e vozes historicamente silenciados. A mostra competitiva reuniu filmes com forte presença de autorias dissidentes: 18 produções com protagonismo ou direção de pessoas trans, e 11 com centralidade em questões raciais negras. Dois filmes indígenas também integraram a seleção, trazendo a interseccionalidade entre gênero, etnia e território como base narrativa e epistemológica.
“A curadoria não busca apenas filmes sobre diversidade. Ela garante que quem narra essas histórias esteja no controle do visível”, destaca Sá de Moraes Pretto, diretora de curadoria.
Após cada sessão, o público participou de mediações críticas que expandiram os debates levantados pelas obras. Todos os textos curatoriais estão disponíveis gratuitamente no catálogo oficial, acessível no site ruidosqueer.com.

Debate após exibição do filme, com curadores (Adler Flores, Raquel Fachel e Matheus Armas) e com o roteirista, Danilo Pessôa. Foto: Fede Akabani
Poéticas emergentes, afetos em movimento
A programação extrapolou a tela. Entre os destaques estiveram as apresentações musicais de Leu Kalunga, a oficina de produção audiovisual com Adler Flores e a exposição “Reminiscências do Sul Solar”, do artista visual Madu Lopes, que propôs uma imersão sensível em memórias e fabulações do sul queer.
A acessibilidade também foi ponto central: desde a escolha das locações até a logística dos eventos, tudo foi pensado como parte de um corpo coletivo que busca escutar, conter e reagir frente às opressões cotidianas.
Arte como abrigo e fronteira de reinvenção
Reconhecida pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) como referência comunitária de acolhimento, a Ruidosa Alma vem atuando como espaço de apoio para pessoas LGBTQIAPN+ migrantes e refugiadas no Rio Grande do Sul. Durante o festival, redes solidárias de serviços foram ativadas, reafirmando que a arte também é abrigo.

Organização reconhecida pelo ACNUR. Fonte: Mapa das Redes Comunitárias e de Serviços para Pessoas Refugiadas e Migrantes LGBTQI+/ACNUR
“Fazer o FIRQ+ é um gesto político. É sobre existir onde querem que não existamos. É sobre criar espaços de cuidado e reinvenção. É uma recusa performativa ao apagamento”, afirma a Coletiva.
O Festival Ruídos Queer+ encerrou sua segunda edição como uma experiência que transcende a exibição de filmes. É um chamado coletivo para refletir, reagir e reconstruir com afeto, coragem e imaginação. Em um estado que lidera os índices de violência contra a comunidade LGBTQIAPN+, o FIRQ+ reafirma que fazer cinema é também um ato de resistência viva.
Premiações: entre o júri técnico e o júri popular
A cerimônia de encerramento revelou os vencedores do festival, que celebraram desde o refinamento técnico até a potência de narrativas plurais. Destaques da premiação incluem:
Melhor Filme do Festival: Son (Irã/Curdistão)
Melhor Ficção: God’s Daughter Dances – Byun (Coreia do Sul)
Melhor Documentário: Neon – Daniel Petrillo (Brasil)
Melhor Filme Experimental: Ebó de Xuxu – Myra Gomes (Brasil)
Melhor Vídeo Musical: Lamento da Força Travesti – Renna Costa (Brasil)
Melhor Atuação: Valéria Barcelos em Mãe – João Monteiro (Brasil)
Melhor Direção: Desesquecer – Mayara Ferrão (Brasil)
Melhor Roteiro: A Cura dos Corpos – Diego Trevisan (Brasil)
Além disso, o Júri Popular destacou obras que ressoaram fortemente com o público:
Se Eu Tô Aqui É Por Mistério – Clari Ribeiro (Sessão Inéditos Viáveis)
A Cura dos Corpos – Diego Trevisan (Sessão Corpo Fronteira Saúde e Luta)
God’s Daughter Dances – Byun (Sessão Atos para (Re)Existir)
Desesquecer – Mayara Ferrão (Sessão Fogueira em Alto Mar)
Quarta-feira – Maria Odara (Sessão Encantarias Encarnadas)
Mãe – João Monteiro (Sessão Tramas Parentais)
O FIRQ+ encerrou sua segunda edição consolidado como espaço de enfrentamento, invenção e abrigo. Em um país que lidera globalmente o assassinato de pessoas trans, o festival não se limita a exibir filmes: ele transforma a linguagem audiovisual em trincheira política, fabulação coletiva e reexistência cotidiana.



