Carolina, a voz que ecoou na Feira do Livro e foi silenciada pelo tempo

Escritora Carolina Maria de Jesus (segunda da dir. p/ esq) esteve presente na primeira Feira do Livro de Pelotas em 1960. Fonte: Acervo histórico da Livraria Mundial / Em Pauta
Luiza Ribeiro Costa / Em Pauta
Há 65 anos acontecia, na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, a primeira Feira do Livro do município. O grande evento ocorreu no centro da cidade, mais especificamente na Praça Coronel Pedro Osório. Ao longo de todo o cronograma do evento, a feira contou com a presença de personalidades importantíssimas, como as lideranças municipais do período e alguns escritores, tornando-se um marco cultural e um chamado à participação da população até os dias de hoje, estando atualmente em sua 51ª edição.
Nesse contexto, uma das personalidades presentes foi a célebre escritora brasileira Carolina Maria de Jesus, que possibilitou ao público experienciar, por meio de seu livro O Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, parte do que é a vida cotidiana das pessoas faveladas em São Paulo diante de toda a desvalorização e pejotização da população periférica no Brasil. Ficou evidente, assim, a importância de sua participação como uma das principais escritoras presentes na primeira Feira do Livro de Pelotas, ocorrida em 1960.
Famosa por transformar sua vivência diária dentro da favela do Canindé em um best-seller, Carolina, ao escrever seu dia a dia em cadernos comuns, registrava cada momento de sua luta contra a fome em meio a uma realidade precária, sendo mãe solo de três filhos: João José, José Carlos e Vera Eunice, nessa ordem de nascimento.
Sob essa perspectiva, a narrativa descrita pela escritora em sua obra mostra que, mesmo estando dentro de um estereótipo desconsiderado como válido para ser tratada como um ser humano com direitos, Carolina Maria de Jesus, mulher, negra, pobre, favelada e semianalfabeta, rompeu muitos os paradigmas que a sociedade esperava que jamais fossem ultrapassados.
Segundo trechos de seu livro Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-Favelada, publicado em 1961, a autora relata sua vinda ao município de Pelotas no dia 30 de novembro de 1960, para realizar a primeira sessão de autógrafos de O Quarto de Despejo no estado do Rio Grande do Sul. Ela detalha o momento de sua chegada até sua volta para São Paulo, onde residia.
De forma espetacular, Carolina transforma o pequeno trecho de seu livro, no qual cita a cidade de Pelotas, em uma imersão literária repleta de detalhes: desde sua estadia no Hotel Rex, no centro da cidade, até a sessão de autógrafos na praça onde ocorria o evento e o almoço com o prefeito do município e sua esposa, entre outros presentes. Carolina expõe ainda sua surpresa com a beleza da cidade, mas, ao mesmo tempo, deixa claro o preconceito existente no sul do país.
Em seu diário publicado e em jornais da época, como o Diário Popular, ficou o registro de sua escrita durante a passagem, mas, mais do que isso, permanece o testemunho do apagamento histórico que Carolina sofria, mesmo com todo o reconhecimento que tinha como escritora renomada, sendo frequentemente associada, de forma pejorativa, ao período em que morou na favela.
Dentre todos os locais visitados em Pelotas, a autora de livros inesquecíveis esteve também no clube destinado a pessoas negras “Fica Ahí”, localizado até hoje na Rua Marechal Deodoro, número 368 o que, hoje, inspira esta matéria.
Ao analisar, mesmo que superficialmente, as vivências de Carolina Maria de Jesus em consonância com sua escrita e suas percepções registradas em entrevistas e obras, fica claro que, além de escritora, mãe, dona de casa e catadora de papel, Carolina também era uma pensadora nata, uma socióloga formada pela vida, que cumpria seu papel analisando criticamente a sociedade em que estava inserida e questionando tudo o que lhe era ou não proposto.
“A dona Heloísa, esposa do prefeito, dizia: ‘O que admiro é que a Carolina foi de favela e sabe comer de faca e garfo.’” Esse trecho, retirado de Casa de Alvenaria, mostra como Carolina foi recepcionada pela esposa do prefeito João Carlos Gastal durante seu almoço no restaurante Willy, logo após chegar à cidade, revelando a forma hostil de tratamento recebida por ela, uma rotina em sua trajetória.
Análises semelhantes podem ser feitas em outros momentos, antes, durante e após a vinda da escritora à cidade, evidenciando que, mesmo com toda a fama e relevância conquistadas por suas obras, que a levaram a estar em Pelotas, Carolina não foi tratada de maneira minimamente receptiva, respeitosa ou acolhedora. Desde a escrita incorreta de seu nome na matéria que antecedeu sua visita até comentários como o da esposa do prefeito e os insultos recebidos, como ser chamada de “negra feia” durante seus autógrafos, somados ao esquecimento de sua presença pela cidade, tornam factual o apagamento histórico e a banalização de sua vida.

Carolina Maria de Jesus com os três filhos: Carolina e os filhos João José, José Carlos e Vera Eunice. fonte: Câmara Municipal de São Paulo / Em Pauta
Ao constatar que uma das maiores escritoras brasileiras esteve na cidade de Pelotas, no interior do Rio Grande do Sul, tornou-se evidente que poucos tinham conhecimento desse fato e, entre os que sabiam, havia pouco interesse em divulgar a informação. A ausência de registros amplamente conhecidos e o questionamento sobre o motivo desse silêncio revelam que a questão central é o apagamento.
Ao serem questionadas sobre o episódio, diversas pessoas demonstraram conhecer a obra e reconheceram a importância da autora, sentindo-se impactadas por sua escrita. Ainda assim, muitas não associavam o nome Carolina Maria de Jesus nem tinham conhecimento ou interesse por sua visita à cidade. A análise dos documentos disponíveis sobre sua passagem por Pelotas evidencia uma realidade preocupante, marcada por um contexto social em que, mesmo em uma cidade universitária, fatos como a visita de uma das maiores figuras da literatura brasileira não receberam a devida atenção pública.
Em síntese, as pesquisas sobre a presença da autora do livro mais vendido do Brasil durante seis meses após sua publicação seguem em andamento e, junto a elas, ocorre um movimento de resgate histórico sobre Carolina Maria de Jesus, sua relevância e representatividade para a cidade de Pelotas e para as demais Carolinas que ainda surgirão. Esta análise é desenvolvida sob a perspectiva de uma estudante de jornalismo.



