A vida secreta de uma comunidade Daimista
Por Giordanna Benkenstein Vallejos
Nenhum som de automóvel ecoa por aqui, a menos que seja alguém convidado ou perdido. Os raios de sol passam tímidos pela densa mata que abriga a comunidade de Céu de São Miguel de olhares curiosos e do caos das cidades.
A aproximadamente 15 km do centro de Sapiranga, existe uma comunidade religiosa que se baseia nos princípios de amor, caridade e fraternidade, da religião Daimista. As pessoas que aqui residem como Rosa Maria, Alancardino, Alexandre e Eronilda entre outras, são todas praticantes da religião e por isso, tem um estilo singular de vida.
Ao entrar pelo portão simples e branco, logo se pode ver os pés de rainhas , a casa geral, a igreja e as casas sem cercas. Cães e gatos andam tranquilos na estrada de terra, e no topo de grandes árvores às vezes é possível enxergar bugios e pássaros de todas as cores.
Nesse ambiente de paz e natureza, Rosa Maria costura as fardas para o próximo trabalho, já Alancardino, como dirigente, faz a entrevista com pessoas que desejam participar da religião. Alexandre prepara o chá de Santo Daime na casa de feitio e Eronilda varre a igreja e mexe uma grande panela de carreteiro. Chega o meio dia, todos que vivem na comunidade se reúnem na casa geral para almoçarem juntos, e sempre existe lugar para mais um na mesa. As mulheres sentam com suas saias longas e coloridas, e todos têm expressões tão calmas, como se tivessem acabado de sair de uma meditação. Conversam sobre o que precisa ser feito para os próximos trabalhos e sobre as visões que tiveram com o chá de Santo Daime no último trabalho. Compartilham suas experiências e buscam o significado de suas visões, aplicando os ensinamentos delas para o cotidiano. Mas nem tudo são flores, assim como qualquer convivência social, ocorrem problemas e intrigas, mas elas tendem a ser contornadas mais facilmente pelo fato da comunidade ser religiosa, e as pessoas muito próximas.
A religião que eles praticam, se originou na Floresta Amazônica, com o neto de escravos Raimundo Irineu Serra. O Mestre Irineu, como é conhecido por seus seguidores ao beber o chá, recebeu uma doutrina de cunho cristão e eclético, reunindo tradições católicas, espíritas, esotéricas, caboclas e indígenas, ou seja, muito rica culturalmente e que prega a tolerância religiosa. A doutrina de Irineu é tão singular que tem praticamente um vocabulário específico para denominar cada coisa, e por isso todos os termos são explicados ao longo da narrativa.
A doutrina se baseia majoritariamente em crenças cristãs, as quais são passadas por meio dos hinários, que são orações cantadas junto ao som de violão e maracás ao longo de todos os trabalhos. Os trabalhos por sua vez são os cultos da igreja, e existem tipos diferentes de trabalhos, e para cada tipo de trabalho, uma farda, que é a vestimenta típica do Daimismo e cada detalhe da farda tem um significado. Todos os moradores têm um papel na comunidade e na administração da igreja, e tudo é regido por regras internas.
Confira a entrevista com Alancardino Vallejos, Juiz aposentado e dirigente da comunidade Céu de São Miguel:
1. Quais são as coisas que você faz diferente na sua rotina por ser Daimista e morar na comunidade?
R. Na comunidade há regras de conduta, porque exemplo, não se pode ingerir bebida alcoólica nas áreas comuns, não se deve fazer barulho após 22h, a indumentária para se andar na comunidade é discreta (não se deve usar short nem bermudas curtas ou blusas regatas muito cavadas).
2. Você já enfrentou ou conhece alguém que já sofreu algum tipo de preconceito por ser Daimista?
R. Sim, há diversos casos narrados. Nós mesmos na nossa comunidade temos um Sargento da Brigada Militar cuja esposa é evangélica e ele já teve problemas com ela e com pessoas que frequentam a igreja dela. Há casos narrados na internet, também.
3. Quais são as regras para poder tomar o chá de Santo Daime?
R. Nossa igreja matriz exige que a pessoa compareça antes a um ritual sem ingerir o Santo Daime, um ritual chamado Oração, onde ele acompanhará, por uns 40 minutos um ritual preliminar, poderá fazer perguntas e deverá preencher uma anamnese (perguntas sobre saúde, experiências espirituais, se toma medicamentos, o que pretende ao vir conhecer o Santo Daime). Após isso, no próximo ritual poderá vir e ingerir o Santo Daime. Também recebe instruções de qual a indumentária é permitida no salão.
4. O Daimismo mistura elementos de algumas outras linhas religiosas. Em sua opinião, quais são algumas das características de cada religião no Daime e quais culturas estão inseridas nesse contexto?
R. Sim, o Daimismo é sincrético e eclético. Foi fundado pelo negro neto de escravos Raimundo Irineu Serra, que era de origem católica. quando ele desenvolveu a doutrina do Santo Daime, por volta de 1925, na força do chá, e trouxe para dentro algumas orações católicas, como o Pai-Nosso, a Ave-Maria e o Credo, bem como a Salve Rainha. Além disso o mestre Irineu, como é conhecido, participou do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, de onde trouxe para a religião do Santo Daime a Consagração do Aposento e a Chave da Harmonia. Como vivia na floresta, também acabou colhendo alguns elementos indígenas, principalmente a crença nos encantados (seres espirituais da floresta). segundo ele ele teve uma visão de Nossa Senhora da conceição, a qual lhe disse para fundar a doutrina e curar pessoas com a força do chá, o que ele passou a fazer em casa, inicialmente. Depois, ela apareceu novamente e disse que era para ele cantar a doutrina e que ele abrisse a boca que ela cantaria com ele. Assim, estruturou-se a doutrina com cantos, apenas. Nos hinos estão a doutrina, os ensinamentos, considerados santas doutrinas.
5. O que é um trabalho, quais os tipos que existem e como eles são organizados?
R. Um trabalho de Santo Daime é onde as pessoas devotas e simpatizantes se reúnem para tomar Santo Daime e acessam o inconsciente, colhendo informações e ensinamentos de vida através da força (efeito da bebida) na psiquê. Existem basicamente trabalhos de bailado, com farda branca (considerada farda de cerimônias) e sentado, com farda azul. Ambos são trabalhos de natureza mediúnica e espiritualista, com dois efeitos: no individual, trazendo informações ao devoto, e grupal, participando da corrente como um todo. Existe em cada igreja um Conselho doutrinário e os trabalhos ficam a cargo de alguém escolhido pela irmandade para dirigir os trabalhos espirituais. Existe um casal de fiscais (que auxiliam os presentes nas suas passagens espirituais) e auxiliam o Comando do Trabalho. No bailado, todos ficam em pé, as filas são por hierarquia de altura normalmente e o bailado pode ser retangular ou sextavado. Nos trabalhos sentados entre 7 a 12 pessoas ficam na mesa central e os demais sentados. O salão é dividido em ying e yang, homens à esquerda do Comando e mulheres, à direita. Homens não podem passar para o lado feminino e vice-versa, a não ser em casos excepcionais.
6. O que significam as roupas e acessórios usados para os trabalhos?
R. A roupa branca é considerada a roupa de gala, usada para bailados (chamada farda branca), com adereços. Nos homens, a calça tem duas listas verdes do bolso até a bainha, simbolizando a presença da floresta. Nas mulheres, há as alegrias (tiras de cetim colorido como o arco-íris) e saiote verde sobre o vestido branco, plissado, representando os matizes das árvores na floresta. A farda azul é considerada a farda mais comum aos trabalhos, havendo dois trabalhos de bailado que se faz com essa farda: Sexta-feira da paixão e Finados. É saia azul marinho plissada para mulheres e blusa branca, e para os homens calça azul marinho e camisa branca, bem como as mulheres usam, nesta farda, uma gravata tope e os homens, gravata azul marinho. Ambos os sexos usam uma estrela ritual, quando são fardados. O mestre Irineu dizia que era o Batalhão da Rainha da Floresta e, portanto, há um viés militar na estrutura Daimista.
7. Como ocorre o preparo do Santo Daime e a consumação desse chá?
R. O chá é feito num local próprio, chamado Casa de Feitio, através do cozimento de 45kg de jagube (o cipó que auxilia na miração – visões que a bebida dá) e 10kg de folha rainha, a folha que possibilita a miração. Existe um Feitor e os homens dedicam-se a cortar, raspar (limpar) o jagube e tirar e por as panelas no fogo, e as mulheres dedicam-se especialmente às rainhas, colhendo folhas, limpando as folhas e mandando para o Feitor. Também se responsabilizam pela cozinha geral.
8. Conte alguma experiência que você teve ao utilizar o Santo Daime e como isso mudou sua vida.
R. Eu desde cedo reconheci que tinha um pendor devocional, andei por várias linhas religiosas e seitas, mas quando tomei o Santo Daime pela primeira vez vi que era ali que eu tinha que ficar, porque tudo o que eu estudava e meditava sem ter a sensação de ter “tocado” naquilo, com o Santo Daime eu vi, toquei, vivi experiências espirituais marcantes. Como ele abre a consciência de uma forma inusitada, a leitura da Bíblia, por exemplo, se torna viva e a experiência de Cristo, verdadeira. Importante dizer que o Santo Daime é para todos, mas nem todos são para Santo Daime.
9. Explique o que é o Daimismo e a comunidade do Céu de São Miguel com suas palavras.
R. Como já disse nossa religião apoia-se no Santo Daime como veículo para entrar no espiritual, receber informações, lições, conhecimentos. O núcleo dos ensinamentos é cristão, pois Deus, Jesus, estão no centro dos ensinamentos, mas como é eclético, tem elementos espíritas, caboclos, católicos (crença nos santos, na Virgem Maria, nos Anjos). Nossa comunidade Céu de São Miguel foi fundada em 1998, temos uma igreja, uma casa geral, uma pousada e seis famílias residentes na comunidade. As crianças aqui são ensinadas a respeitar a natureza, mananciais de água, os mais velhos a cuidar dos mais novos, as casas não têm cerca e busca-se um respeito mútuo entre todos os comunitários.