A importância da Lei de Cotas em meio às fraudes na UFPel
Por: Maiara Marinho
O Brasil tem uma história marcada pela colonização. Realidade essa que nos fez viver séculos de genocídio aos índios e negros. Com isso, a resistência ao estupro, à exploração, à colonização dos corpos, das terras e até mesmo do saber, por exemplo, foi a reação que esses povos viram necessária para sua própria sobrevivência e por uma sociedade mais igualitária. Até chegarmos aos dias de hoje, com alguns avanços, negros e negras, no mundo todo, não puderam frequentar escolas e universidades, tinham de viver separadamente das pessoas brancas, temendo a cada momento sofrer ataques e atentados como os recorrentes durante o apartheid. Muita coisa mudou por consequência da organização e luta de movimentos negros no mundo todo, no entanto, ainda hoje no Brasil o racismo existe mesmo com mais da metade da população brasileira sendo negra. Dentro das lutas desses movimentos estão as políticas públicas, responsáveis por reparar o que os grupos de privilégio retiram dos pobres, negros/as, indígenas, mulheres, trans e homossexuais, entre tantas outras representatividades oprimidas pela desigualdade social e opressão. Assim surgiram também as ações afirmativas, que atuam como reserva de vagas exclusivas em concursos públicos, por exemplo, assim como em universidades, tema deste texto.
O projeto Cotas: um diálogo afirmativo entre a universidade e a escola surgiu em 2015 na UFPel, no Departamento de História, coordenado pela professora Alessandra Gasparotto. Desde então vem sendo responsável por diversas atividades nas escolas públicas de Pelotas e região, bem como com atividades na universidade para ampliar o debate e desconstruir mitos sobre o assunto. Por consequência da divulgação, estudantes da escola Mário Quintana, da rede privada, organizaram um encontro para debater o tema. Segundo Elizabeth Thiel, uma das organizadoras, “a maioria dos meus colegas se posicionam contra as cotas. E se posicionam dessa maneira também porque por vezes alguns professores estimulam esse pensamento em aula, afirmando que todos têm as mesmas condições de chegar ao mesmo lugar. Já ouvi de uma colega que ninguém convenceria ela de que um negro pensa menos que ela, portanto cotas são inúteis. É bem triste, a gente acaba arrumando muita briga”. Essa realidade infelizmente não é exclusiva da turma da Eliza e tampouco da escola em que ela estuda. Nas escolas públicas, nas regiões periféricas da cidade e região, também se escuta tal argumento. Na tentativa de possibilitar um espaço mais amplo pro debate, Elizabeth e outros estudantes pensaram em “criar um seminário, com gente que realmente entende do assunto, gente que utiliza as ações afirmativas, gente que tem propriedade pra falar sobre, para que o debate deixe de ser raso e baseado apenas em ‘achismos’”. Com isso, convidaram diversos representantes da cidade pra falar sobre o tema e alguns integrantes do projeto como a estudante Pietra Dolamita, representando a luta indígena e José Resende, do movimento negro.
A importância do debate sobre a temática tem-se feito fundamental principalmente após a denúncia do movimento negro da UFPel de que estudantes que não se encaixam nas cotas raciais, estariam se utilizando delas para ingressar no curso de medicina, o mais concorrido da universidade. Após o caso, a Universidade Federal de Uberlândia também foi notificada pelo Ministério Público sobre fraudes. A UFPel foi uma das primeiras universidades do país a criar uma comissão de avaliação das cotas. Os/as estudantes processados pelo uso indevido das cotas se basearam no texto da lei em que fala de autodeclaração. A subjetividade do texto possibilitou, com isso, o ingresso de não-negros através das cotas raciais. Ainda que a UFPel tenha afastado 24 estudantes em 2016, a justiça concedeu liminar para 7 destes estudantes que já retornaram às aulas. De fato, as cotas enquanto política pública são necessárias em um cenário de exclusão social e racismo como no Brasil. Outro problema que se pode enfrentar por consequência das fraudes, além do fato de não serem os/as negros/as a ingressarem pelas cotas raciais, é a forma como a mídia tradicional tem tratado esse assunto. Sem jamais mencionar histórias de cotistas ou demonstrar como funciona na prática, agora noticia as fraudes sem contextualização histórica. Mas, para o estudante de História da UFPel, José Resende, estar dentro da universidade provocando a reflexão sobre isso é uma tarefa importante. Para ele, quando ingressou na universidade, imaginava que na academia teria a oportunidade de se aproximar da história do seu povo. “No meu imaginário, os cursos em protagonismo de matriz das humanidades, teriam em aberto um discurso muito mais pós-estruturalista com embasamento marxista do debate de classes e também com os recortes e perspectivas dos grupos excluídos de forma mais palpável no currículo. Desta forma, saciaria todas minhas curiosidades a respeito da minha história, como homem preto, latino, brasileiro, gaúcho, reforçando dessa forma a minha representatividade. Mas logo de cara, na minha primeira aula, fui vítima de racismo(naquele momento comecei a refletir a forma estrutural do racismo) e entendi que pra ser preto e sair com diploma não bastava estudar, tinha que lutar e resistir”, afirma o estudante que nos concedeu uma entrevista.
Ser extensionista em um projeto sobre ações afirmativas é uma prática política pra ti?
A partir do momento em que iniciei o processo de descolonizar minhas ideias, entendi que ser preto é um ato político de resistência. Portanto: Sim e sem dúvidas que o Projeto Cotas, como projeto de extensão que debate políticas de ações afirmativas, alicerça a voz da população preta da universidade. Desta forma, sustenta as pautas do movimento e além de debater isso dentro do ambiente acadêmico, trabalha nas escolas de forma externa, compreendendo a ciclicidade da educação e como suas ramificações estão interligadas e não devem segregar-se.
As políticas públicas de reparação social para negros e negras necessitam de algumas melhorias. Poderias citar enquanto indivíduo negro, organizado no movimento social que representa tua história, o que é mais urgente não só enquanto melhoria nas políticas existentes, como também de discussões que permeiam a sociedade mas ainda não avançaram institucionalmente?
São muitas pautas, mas as que tenho mais contato e considero de extrema urgência e cujas quais já participo das modificações: a) reestruturar a política de cotas de forma a não deixar brecha no ingresso das subcotas raciais na autodeclaração. As cotas foram uma conquista do movimento negro e do fórum cotas sim na UFPEL, portanto, para serem usufruídas pela população preta. b) desconstruir o eurocentrismo curricular, através de métodos de estudos (grupos, auto-organizados, setoriais) onde possamos trabalhar protagonismo negro nas bibliografias (autores e autoras negros e negras).
O mundo acadêmico é, muitas vezes, paralelo à realidade social. Seus moldes de pesquisa, ensino e extensão nem sempre cumprem um papel de responsabilidade social. Levando em consideração essa realidade, qual a importância da população negra e pobre ocupá-lo?
Na minha opinião é para isso que as cotas servem. É de suprema importância a presença da população negra e da deselitização da universidade. Para mudar o que a universidade produz, precisamos diversificar quem a permeia. Quando preto/a pobre trabalha na universidade, trabalha para a sua própria realidade social e assim cumpre com o objetivo social da Universidade, que também é dialogar com o meio. A Universidade deve servir ao seu entorno, fazer parte do ambiente, e não servir como contraste social de um imaginário inalcançável.