Nelson Rodrigues: o gênio óbvio
por Vinicius Colares
1. Nelson Rodrigues completaria 103 anos ontem, dia 23 de agosto. O centenário do escritor foi tratado, três anos atrás, como “o ano Nelson Rodrigues”. Ao bater estas notas venho corrigir esse erro. Nelson é atemporal. Nunca existiu um ano dele. O homem de gênio não é um morto-vivo que, aleatoriamente, ressurge, dá os ares da sua graça e morre novamente. O dramaturgo que mudou a história do teatro brasileiro não há de ser considerado morto nunca.
2. Não escrevo um texto assim por um acaso. Nas suas “Memórias”, assinadas no Correio da Manhã em 1967, os parágrafos eram assim, numerados. Dentro das minhas limitações, hoje, imito Nelson Rodrigues. Falei hoje? Engano meu. Sempre fiz isso. Não apenas eu, mas toda a imprensa pós-rodrigueana sofreu influência sua, assim como nasceu dele toda uma geração de dramaturgos, segundo Paulo Francis. Ele está certo.
3. O maior medo de Nelson enquanto escrevia para o jornal era que o adjetivo morresse. Que a emoção fugisse como um ladrão de galinhas das mãos do cronista. Imaginem! Como dar força suficiente para as tantas tragédias shakespearianas que perseguem nossa vida real sem usar, no mínimo, um pontinho de exclamação?! Como?!
4. “Almir, nosso Pelé branco”; “Coutinho não é nome de jogador de futebol!”; “Narciso às avessas”; “O mais belo futebol da Terra”. São títulos de textos assinados por Nelson Rodrigues sobre a nossa paixão eterna, o futebol. Foi depois dele – influenciadíssimo pelo irmão Mário Filho – que a crônica esportiva brasileira adotou de vez o adjetivo. Ainda bem.
5. Hoje, segunda-feira, por exemplo. Quero que você, leitor, arrisque gritar o nome de um programa que cobriu o fim de semana de esportes e não falou de uma jogada maravilhosa ou de uma atuação terrível. Pois agradeçam a Nelson! O futebol não vive sem emoção. E a emoção não se passa através da objetividade, essa doença.
6. Quem nunca amou mais um cachorro de rua do que um jornalista de economia? O primeiro vive uma vida de Raskólnikov, dramática, feroz, incerta; o segundo, na ânsia pela imparcialidade, me parece um robô programado para fazer, eternamente, o mesmo processo. O faz bem, claro. Mas é uma máquina, ainda assim. É uma máquina. Não me imagino chorando dentro de um galpão da Volkswagen, emocionado com uma linha de montagem como uma tia gorda se emociona com a novela.
7. E o teatro rodrigueano? Vou poupar meus pontos de exclamação ou gasto todos aqui, antes mesmo de começar. Pois alguns dão a Oswald de Andrade o título de revolucionário do teatro brasileiro. Não vou desvalorizar o autor paulista, é claro. Mas ando ao lado de Hélio Pellegrino que dá a Nelson os créditos de “fundador do teatro brasileiro”. Sua peça Vestido de Noiva, para Hélio, “funda o teatro moderno brasileiro”. Nesse ponto uma grande parte da crítica, de antes e de agora, concorda. O texto de Nelson – nas mãos do diretor Ziembinski e da primeira companhia de teatro moderno do país, Os Comediantes – transtornaram a intelligenzia brasileira. Os aplausos foram coletivos, quase unânimes.
8. Dorotéia, Senhora dos afogados e Álbum de família. Mesmo que muito se fale de Vestido de Noiva, Nelson Rodrigues prova seu valor nessas três peças tanto quanto na primeira. Nelson tratou do “absurdo” antes mesmo de Beckett e Ionesco. Mas a falta de conhecimento – eu prefiro acreditar que é falta de informação à preguiça – faz com que ainda existam as antas que o definem apenas como “reacionário”, “pornógrafo” e o rotulem (risos?) a uma voz da direita.
9. Antas, eu repito. Foi Nelson Rodrigues um dos homens que mais sofreu com a ditadura durante seu período mais brutal. Foi a repressão ditatorial que lhe deu a fama de tarado e abominável, na voz de Carlos Lacerda, a priori. Foram esses repressores que barraram suas peças e que as teriam destruído não fosse a coragem de críticos como Álvaro Lins e Prudente de Moraes Neto.
10. A vida pessoal de Nelson Rodrigues não caberia aqui. As suas memórias (reeditadas novamente esse ano pela Nova Fronteira como Memórias: a Menina Sem Estrela) dão conta da dramaticidade de sua existência. Sua voz é ouvida também na biografia escrita por Ruy Castro, O Anjo Pornográfico.
11. Em entrevista a Paulo Francis, Nelson escreveu: “Quero ser esquecido para sempre.”. Numa espécie de arroubo, bradava para si mesmo que a posteridade não o pertencia. Seu medo era, na época, não ter notoriedade com seu teatro. Pois teve. Em vida e postumamente, Nelson Rodrigues não foge da alcunha de gênio.
12. E não culpo, vejam, aqueles que não conseguem ver a genialidade de Nelson Rodrigues. Mas a defendo com a força com que Dom Quixote defende sua Dulcinea. Sou possuído por um espírito rodrigueano. Ergo os dois punhos e me pende dos lábios uma baba bovina, elástica. Com o dedo indicador em riste, me transformo em um Settembrini de Thomas Mann. Brado, sem pudor, uma das maiores máximas de Nelson Rodrigues. Assim como afirmou o homem que melhor entendeu o brasileiro, grito que só os profetas enxergam o óbvio! O óbvio – ululante! – nos escapa muitas vezes e só quem não entende o Brasil, não entende Nelson Rodrigues.