Linha tênue entre a arte de amar e o silêncio

“Retrato de uma Jovem em Chamas” fala de uma época quando os sentimentos das protagonistas eram invisibilizados        

Por Giovana Costa       

 

Excelentes imagens do filme conduzem espectadores pelas emoções  de Heloïse (Adèle Haenel)  em cada olhar               Fotos: Divulgação

 

O começo do filme “Retrato de uma Jovem em Chamas” (2019 – disponível no Prime Video) é lento, silencioso e carrega um mistério nos olhares das personagens Marianne e Heloïse. Durante a trama, esse silêncio é persistente e a relação das duas é incerta. A diretora francesa Céline Sciamma retorna ao século XVIII para explorar a relação de Marianne (Noémie Merlant) e Heloïse (Adèle Haenel), que, ao longo da história, constroem uma amizade e tornam-se amantes. O enredo traz ao público um convite para compreender o amor e o desejo feminino, mergulhando na história instigante das duas.

A narrativa começa com a chegada da jovem pintora Marienne à mansão de Heloïse. Ela tem a tarefa de pintar um retrato de Heloïse para seu casamento, mas sem deixar clara essa finalidade. Marienne finge ser apenas uma acompanhante de caminhada para Heloïse, que vive em silêncio e não aceita ser pintada. Durante a trama, percebe-se a lamentação de Heloïse sobre a morte da irmã, que caiu de um penhasco, sem que fosse revelado no decorrer do filme o motivo e a forma dessa morte trágica. No entanto, é mencionado que a irmã não gritou e nem pediu ajuda durante a sua queda. Diante disso, é imaginável que a sua morte tenha sido um suicídio.

Através desta situação, o casamento arranjado torna-se uma responsabilidade de Heloïse, que sofre em silêncio com a ideia de se casar com um desconhecido.  O começo da história é vagaroso, mas essa lentidão é a chave para mostrar a construção da relação de Marienne com Heloïse.

A fotografia e as cores das imagens são essenciais para sentir e vivenciar a mesma época que as personagens. Outra coisa chamativa durante o filme são as cores fortes presentes nas roupas das protagonistas. As duas caminham pelo penhasco enquanto o vento forte bate em seus cabelos, além de elas usarem os cachecóis para cobrir o rosto contra o frio. Os olhos delas ficam bem destacados e, apesar do silêncio, é notável uma faísca saindo do olhar de uma para outra. A partir disso, a conexão é construída entre Marienne e Heloïse.

 

Marianne (Noémie Merlant) e Heloïse (Adèle Haenel) são protagonistas em filme sob direção de Céline Sciamma

 

Logo de início, percebe-se que Céline Sciamma trata a presença feminina de forma protagonista na obra, tanto que durante as duas horas de filme poucos homens aparecem. Quando eles estão na tela, a sua presença não é significante e muito menos desenvolvida. E o feminino é presente na obra não somente com a relação das duas personagens principais, mas com outras também. Por exemplo, no começo, Marienne cria uma relação de amizade com a empregada da mansão, a jovem Sophie, a qual presenciou a morte da irmã de Heloïse. Durante a interação delas, uma cena representa bastante a dinâmica do filme. Ao longo da história, Sophie se depara com uma gravidez indesejada e, diante disso, as mulheres juntam-se para ajudá-la. A partir dessa sequência de cenas, é notável o que Céline Sciamma quer passar nesta obra. Apesar da falta de diálogos durante as cenas, há uma linha de conexão entre essas mulheres. O silêncio é algo gritante. A expressão, em cada olhar de ajuda, solta faíscas.

A obra “Retrato de uma Jovem em Chamas” é um convite para mergulhar na conexão do feminino, do desejo, na construção do amor de Marienne e Heloïse, essa paixão que se desenvolve de forma lenta, silenciosa, com impactos em cada interação das personagens ao longo das duas horas de filme. Outra questão é como um amor invisível entre duas mulheres no século XVIII passa a ser notável na obra de Céline Sciamma. A autora consegue desenvolver essa relação com sutilezas, mas de forma bem visível. E, então, aquilo que parece ser impossível de existir em uma época tão conservadora, torna-se viável nas possibilidades de fazer um filme como “Retrato de uma Jovem em Chamas”.

 

História contada na tela com reconstituição do  século XVIII  tem o poder da transcendência

 

Outro ponto importante é a forma como os enquadramentos são trabalhados. A presença frequente do close-up, faz com que o espectador observe e sinta de perto a relação de Marienne e Heloïse sendo construída. O filme faz o público mergulhar no desejo feminino, na sexualidade, no prazer, e todas essas sensações são bem desenvolvidas durante cada minuto do filme. A forma lenta na qual foi construído faz com que a obra se torne tão bonita. Toda combinação de cores, enquadramentos, palavras não ditas, faz o espectador ficar mais conectado durante o longa-metragem.

O “Retrato de uma Jovem em Chamas” é um convite para conhecer o amor de Marienne e Heloïse, essa relação proibida na época, e que, apesar das circunstâncias, cria faíscas a cada segundo do filme e faz o público incendiar com o enredo. Uma história bem contada na tela tem o poder da transcendência.  

Ficha técnica

Direção: Céline Sciamma

Roteiro: Céline Sciamma

Elenco: Noémie Merlant, Adèle Haenel, Luàna Bajrami, Valeria Golino, Christel Baras, Armande Boulanger, Guy Delamarche, Clément Bouyssou

Duração: 121 min.

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