Com realismo reconhecível para quem é da região, o filme de Gianluca Cozza revela o vazio e a resistência de quem vive o Balneário Cassino fora da temporada
por Maria Clara Goulart

História fala de um lugar para além dos rótulos turísticos Fotos: Divulgação
O silêncio que toma conta do Balneário Cassino no inverno não é apenas climático: ele se infiltra nas calçadas vazias, nas casas fechadas à espera da próxima temporada e na paisagem estagnada de uma cidade que, fora do verão, parece suspensa no tempo. Cassino, o maior balneário do mundo em extensão, é também um lugar de contrastes, entre a agitação da alta temporada e a inércia do resto do ano, entre as casas dos veranistas e os bairros mais afastados onde vivem os que ficam o ano inteiro. Apesar de não ser um documentário, o filme de curta-metragem “Cassino” apresenta um realismo reconhecível para quem é desta região do Rio Grande do Sul: cada plano parece extraído do cotidiano, como se o diretor tivesse captado o que há de mais íntimo e inconfundível na experiência de viver ali.
É desse segundo “Cassino”, muitas vezes invisível nas narrativas turísticas, que vêm Daniel, Tando e Soninho. Moradores da cidade, incorporam uma juventude que convive com o excesso de ociosidade, com a distância simbólica em relação aos privilégios que as casas de veraneio representam e com a vontade, ainda difusa, de emergir. Em “Cassino”, dirigido por Gianluca Cozza, acompanhamos os três em suas caminhadas noturnas, quando invadir residências se torna uma espécie de passatempo, não por necessidade, mas por tédio, curiosidade e uma busca silenciosa por algo que não sabem nomear.
O filme se estrutura de forma fragmentada, sem um arco narrativo tradicional, como se refletisse a própria rotina dos personagens. Eles andam, conversam, dividem cigarros, contam histórias e revelam frustrações. E é nesse fluxo aparentemente banal que “Cassino” revela sua densidade: um retrato sem adornos da juventude periférica em suspensão, à espera de algo que talvez nunca venha.
Os diálogos, por vezes marcados por grosseria e humor áspero, são atravessados por um vocabulário típico de seu entorno. Não se trata apenas de brutalidade emocional, mas de um modo de se expressar condicionado pela realidade em que vivem, por uma cultura pela qual a dureza é aprendida cedo e a sensibilidade tem pouco espaço para se manifestar. Há, nos personagens, uma mistura de indiferença e inquietação que parece comum a muitos papareias, moradores do extremo sul do país. Entre eles, a ideia de sair da cidade, de tentar a vida em outro lugar, costuma ser vista não só como um desejo, mas como o único caminho possível para escapar da rotina repetitiva, da falta de perspectivas e da sensação de que nada muda.
A breve viagem de Soninho a São Paulo reforça essa tensão: é uma tentativa de deslocamento físico e simbólico, de sair da condição em que está, ainda que sem saber bem o que encontrar do outro lado. Esse gesto de fuga dialoga diretamente com as invasões de casas: adentrar espaços que não lhes pertencem é, em alguma medida, experimentar outras possibilidades de vida, mesmo que de forma provisória, silenciosa, quase clandestina.

Filme reflete rotina dos personagens que vivenciam seus sonhos, desafios e contradições
Por fim, Soninho revela o motivo de sua volta ao Rio Grande, momento em que a conversa toma outro rumo. Ele conta, com um certo constrangimento, que a viagem não saiu como esperado, em parte por causa de uma desilusão amorosa. Mas em vez de zombarem ou reforçarem o fracasso, seus amigos o acolhem, dizendo que ele não deveria ter saído e que vão ajudá-lo a reconstruir a vida ali mesmo, no Cassino. É um momento de escuta e apoio, que rompe, mesmo que brevemente, o código da camaradagem masculina.
A ambientação é um dos grandes trunfos da obra. As ruas vazias, filmadas à noite com luz natural e planos longos, traduzem um sentimento de desamparo e familiaridade. Há uma estranheza reconhecível ali: quem já caminhou pelo Cassino fora de temporada sabe o que é estar sozinho entre quarteirões apagados. A praia, curiosamente, mal aparece, e essa ausência parece proposital. O filme não quer retratar o balneário como destino turístico, mas como um espaço de intervalo, onde o vazio se torna paisagem predominante.
“Cassino” é, acima de tudo, um filme sobre o inverno, não apenas o do clima, mas o das relações, das oportunidades, das perspectivas. Um tempo de hiato em que a juventude se desloca lentamente, à deriva. Gianluca Cozza aposta em uma narrativa econômica, sem respostas fáceis nem grandes reviravoltas, sustentada por uma observação atenta e sem filtros. Seus personagens não são heróis nem vilões, mas jovens atravessando um espaço e um tempo que pouco lhes oferecem.
Ficha Técnica:
Direção: Gianluca Cozza
Produção: João Fernando Chagas, Nica Maleoa, Pedro Guindani
Roteiro: André Berzagui, Eleonora Loner, Gianluca Cozza
Montagem: André Berzagui
Direção de Arte: Luciana Abbud, Richard Tavares
Empresa(s) produtora(s): Saturno Filmes
Elenco: Leandro Gomes, Daniel Guimarães, Anderson Campos
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