Edição mais recente aconteceu no dia 22 de fevereiro e a próxima está programada para 13 abril
Por Vitória Scheffer e Arthur Rezer

Edição recente aconteceu no Kilombo Urbano Canto de Conexão Foto: Amanda de Abreu
Entre pulsações de batidas eletrônicas e entrelaçar de corpos em meio à pista de dança, A Coisinha toma forma como um espaço onde arte e resistência caminham juntas. Não é apenas um evento, mas um território onde grupos historicamente marginalizados podem existir sem concessões. Em Pelotas, mesmo que a cena underground ainda enfrente barreiras a respeito da visibilidade e acesso, a Coisinha age como um ato político: Representa um manifesto de liberdade e pertencimento.
No dia 22 de fevereiro, mais uma edição reuniu música, performances e artes visuais no Kilombo Urbano Canto de Conexão. E a próxima já tem data: dia 13 de abril, na Praça Darci Pinho (Bairro Balsa), às 16h. Mas o que faz esse evento ser mais do que uma festa? Para entender sua força, é preciso olhar para quem o constrói e para a história que ele carrega.
Uma arte que se move e se reinventa
A Coisinha não surgiu de um plano estruturado, mas de necessidades urgentes e de um impulso criativo incontrolável. Amanda de Abreu, artista e produtora, mestranda em Artes Visuais pela UFPel (Universidade Federal de Pelotas), começou a explorar performances como forma de dialogar com o espaço que ocupava e, ao mesmo tempo, criar uma forma de sustento. Suas exposições sempre declararam uma manifestação, um ato de resistência política em meio à desigualdade econômica e social que observa.
O evento nasceu como um meio de subsistência, transformando-se gradualmente em um espaço de criação coletiva, no qual diferentes formas de arte passaram a coexistir. A festa cresceu, expandiu-se para outros territórios e consolidou-se como um refúgio para quem, muitas vezes, não encontra espaço dentro das estruturas tradicionais da cultura.

A artista visual e produtora Amanda de Abreu foi a criadora de A Coisinha Foto: Vitória Scheffer
A música eletrônica, que pertence à identidade da Coisinha, também carrega essa marca de ressignificação. Por muito tempo, foi apropriada por setores elitizados que apagaram suas origens. Mas a história é outra: a música eletrônica nasceu da comunidade negra, periférica e queer. É dessa história que a Coisinha se apropria. “Para resgatar isso, para nos reeducarmos, para entender que isso também é nosso, que isso também é popular, que a música eletrônica é negra”, enfatiza Tom Nunes, DJ residente, uma das vozes que constroem o evento.
Música como ato político
Na Coisinha, cada batida é um manifesto. A pista não é apenas um local de entretenimento, mas um espaço onde a existência de corpos dissidentes se impõe. Marmo, DJ residente, viu sua trajetória artística transformada pelo evento. Vinda de um som mais experimental e ruidoso, encontrou na festa um território para mesclar essas influências com o techno e outras sonoridades periféricas. Para ela, a música não pode ser desvinculada das vivências e dos corpos que a constroem.
“A produção de arte e cultura no Brasil é historicamente tratada como algo descartável”, explica Marmo. “Manter um evento como a Coisinha é garantir que corpos dissidentes tenham onde criar e sobreviver”. Ela ressalta que o futuro da música eletrônica passa pela presença trans e pela inovação que emerge das margens da cena.
Hell, também DJ residente, vê a sua presença na Coisinha como parte de um ciclo de construção e pertencimento. “Ser DJ residente é mais do que tocar. É criar uma identidade sonora, manter a energia da pista e fortalecer a cena underground”, diz. Para ela, ser residente significa não apenas garantir uma continuidade musical e evoluir junto com a festa, mas também educar, experimentar e fortalecer a cultura local. “No fim das contas, ser residente é ser a alma sonora do evento, um guardião da sua identidade e um elo entre a música e a comunidade”, reflete.

Ideia é tratar diferenças ideológicas com arte Imagem: Reprodução:Arueira
Mais do que isso, Hell percebe que sua participação na Coisinha é uma via de mão dupla: enquanto a festa se transforma e consolida identidade do evento, ela também sente a própria identidade artística e pessoal se modificando. “É uma relação de retroalimentação extremamente potente. Isso diz muito sobre o impacto que a Coisinha causa, não só na vida daqueles que a experienciam na pista, mas também naqueles que estão por trás, fazendo com que ela aconteça”, completa. Para ela, no fim das contas, a essência do evento está em manter viva essa experiência que faz as pessoas voltarem a cada edição.
E essa conexão se amplia a cada edição. Ryan, que tocou na Coisinha pela primeira vez, sentiu essa entrega. Escolher as músicas certas para abrir a noite foi um desafio, mas, ao ver o público responder, soube que estava no lugar certo.
Para além da pista: arte e comunidade
Se a pista de dança é o coração da Coisinha, a comunidade é sua alma. A festa não existe isolada – ela se conecta a diferentes expressões culturais e sociais. Niara é criadora da marca independente Front, e encontrou no evento um espaço para expandir seu trabalho, tal qual dialogar diretamente com outras formas de arte. Essa troca, que vai além da música, faz da Coisinha um território de construção coletiva de arte.

Festa se articula com diferentes expressões culturais e sociais Foto/Reprodução: Vitória Scheffer
O impacto do evento, no entanto, vai além das expressões artísticas e culturais, abrangendo também ações que fortalecem a rede de apoio local. Durante a Coisinha, a Ocupa Canto de Conexão tem a oportunidade de montar bar e cozinha no evento, gerando uma renda extra para suas próprias iniciativas. Além disso, a arrecadação de alimentos contribui diretamente para a cozinha solidária do Kilombo Urbano, que oferece refeições para pessoas em situação de vulnerabilidade.
Sônia, voluntária da cozinha, vê na Coisinha uma rede de suporte que transcende a festa. “Ela movimenta o povo, traz gente, traz arte. Mas também fortalece nossa cozinha, garantindo que possamos continuar alimentando quem mais precisa”, explica.
A cozinha aceita doações diretamente no Kilombo Urbano, reforçando a importância de um circuito alternativo que se sustenta coletivamente. A Coisinha não apenas ocupa espaços, mas redistribui recursos, fortalecendo iniciativas que existem à margem das políticas públicas.

O A Coisinha visa criar espaços de expressão em locais diversos Foto: Vitória Scheffer
Resistir é criar
Manter um evento independente como a Coisinha é um ato de resistência. O financiamento é sempre um desafio, e a estrutura da cidade impõe barreiras para eventos alternativos. Ainda assim, a Coisinha segue se reinventando. Editais como a Lei Paulo Gustavo e o Procultura têm ajudado a viabilizar algumas edições, mas o desejo é que esse espaço se mantenha vivo independentemente de apoios institucionais.
“A arte não precisa estar aprisionada em galerias. O underground sempre vai encontrar um jeito de existir”, afirma Amanda.

Evento promove encontro entre música, moda, artesanato e artes visuais Foto: Vitória Scheffer
E a Coisinha segue pulsando. A cada edição, se fortalece como um espaço onde a arte não precisa pedir licença para existir. Onde corpos dissidentes não apenas ocupam, mas transformam. Onde a música, a dança e o underground andam juntos, garantindo que esse território não se apague. Enquanto houver quem acredite nisso, ela seguirá existindo.
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